A manhã ainda não dissolveu a bruma na copa das árvores; espera o brilho e o calor do sol para isso. O bairro acorda devagar, modorrento. E eu me encanto com esta calma; respiro a plenos pulmões este ar de serras e florestas. Estou no Cosme Velho, mas sinto-me também em outro lugar, que é o mesmo de um passado aristocrático ainda impregnado nos casarões.
O Largo do Boticário - esse bibelô arquitetônico sem igual - atrai minha visão saudosista. Enquanto o bairro desperta para gente, carros, ruídos, mergulho em devaneios que tentam decifrar a alma deste lugar singular.
Inevitavelmente, o olhar se ergue e lá está: o Cristo Redentor reina imponente sobre o bairro, sobre a cidade.
Porém, aqui, estão absolutamente próximos esses eflúvios, como se bênçãos descessem do céu como a bruma desce do contraforte da serra.
Ladeiras, muitas: do Ascurra, do Cerro Corá, dos Guararapes. Desenhadas caprichosa e tortuosamente pelas encostas, como muitas ruas, permitem tanto descer quanto subir, numa metáfora da vida apresentada na geografia singular desse bairro tão especial.
A Estrada de Ferro do Corcovado lança seu apelo irresistível, e lá vou eu em meio a turistas boquiabertos, cujas indefectíveis máquinas e filmadoras vão registrando a exuberância de um verde aqui, um ângulo belíssimo do Cristo acolá. Um miquinho assustado vira atração enquanto foge para seu sossego encarapitado na árvore imponente de folhas verde-musgo, uma entre muitas que ainda formam esse cinturão verdejante que resiste bravamente às agressões do bicho-homem, ser incomparável quando se trata de substituir a brisa fresca pelo ar pesado e poluído ou a exuberância do verde pelo triste cinza do concreto.
Dia bonito. Gente demais aos pés do Cristo. Retempero-me olhando minha querida cidade, como faço de vez em quando subindo a este mirante privilegiado, e desço logo, deixando para trás o vozerio de Babel, as poses e as exclamações óbvias dos turistas estrangeiros ou mesmo de brasileiros justificadamente encantados.
Vou descendo e chego à praça que se chama São Judas Tadeu. Mais abaixo, em sua igreja, esse santo trabalha aos pés do Cristo, como se houvesse escolhido essa posição reverencial ao Pai maior.
O bairro já se movimenta em sua dinâmica cotidiana - lugar moderno, bem servido de tudo, bom para morar - porém guardando uma atmosfera de calma e serenidade, sentida nas ruas arborizadas, em muitos prédios pequenos e antigos, que guardam um Rio que combinava o cosmopolitismo do centro com o provincianismo de muitos de seus bairros.
Estou na Rua Cosme Velho. Ando próximo ao antigo número 18. Silêncio, agora. As musas e todos os anjos inspiradores vagam por estas ruas, como a guardar um santuário imaginário: o lugar onde morou Machado de Assis.
O menino mulato, pobre, doentio cumpriu uma trajetória inigualável desde o Morro do Livramento até este lugar, onde, num palacete assobradado, terminou seus dias em glória, mercê de seu talento imenso, até hoje incontestado.
Bentinho, talvez roído em ciúmes ainda anda por aqui; Capitu desfila sua exuberante beleza instigando nossa imaginação; Quincas Borba, Brás Cubas e tantos outros personagens caminham por tramas bem urdidas pelo bruxo - o "Bruxo do Cosme Velho".
As palavras e frases genialmente encadeadas; as cenas magistralmente construídas; as situações de vida, muitas delas mantendo sua atualidade, nos rondam e acompanham nesse passeio pelo Cosme Velho, bairro que acolheu o gênio, que parece nos olhar de algum lugar - uma janela de casa antiga, uma porta entreaberta, um muro parcialmente coberto pela generosa folhagem -, fazendo seu olhar penetrante, por detrás do pince nez, penetrar até o fundo de nossa alma, desvendando-a por inteiro.
Perto, muito perto, a doce Carolina, sua amantíssima esposa, ainda vela por seu amado, cercando-o dos cuidados do amor de uma vida inteira.
Cosme Velho: um bairro abençoado e inspirador, recanto admirável em nosso inigualável Rio de Janeiro.
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