Ilha da Boa Viagem em Niterói

A fé e os canhões sempre andaram juntos. Muitas vezes porque os canhões troaram em nome da fé. Noutras porque o desespero e o sofrimento presentes nas batalhas acabavam invocando as forças sobrenaturais: fundar uma casa de Deus para que este socorresse os que a construíram e destruísse seus inimigos.

Com a Ilha da Boa Viagem, a história foi diferente. Antes de ser fortificação, ela foi altar. Isto: primeiro veio uma igreja, depois, bem depois, o pragmatismo militarista usou-a para assentar canhões e defender as possessões portuguesas neste outrora paraíso chamado Baía de Guanabara.

Lá pelos meados do século XVII, Diogo Carvalho de Fontoura ordenou que se construísse uma capela dedicada a Nossa Senhora da Boa Viagem. Somente por volta de 1702 o capitão-governador Luís Cesar de Menezes construiria o denominado “Forte da Barra”, em verdade umas modestas posições de artilharia que, não obstante, nessa situação privilegiada na baía, adquiriam a condição de um importante ponto de defesa, nas encarniçadas lutas por estas terras brasileiras, tão belas, tão fartas, tão cobiçadas.

Confesso que quando passo pela ilha os canhões nunca ecoam em minha memória. Não consigo pensar no alarido, na fumaceira, no cheiro da pólvora, nas imensas bolas de ferro lançadas à distância pelos canhões, ou nas que, em revide, caíam na ilha, causando destruição e morte, lá e cá, porém mantendo, milagrosamente intacta a morada de Nossa Senhora da Boa Viagem. Penso mais na ilha como baluarte de fé.

A Ilha de Boa Viagem tem mesmo vocação de altar. Um altar até para céticos e ateus. Um altar de rocha encoberta de verde, recortado contra o céu azul e eternamente plantado na direção da entrada da barra.



A igrejinha branca mais parece uma bandeira, alva e imóvel, secularmente lembrando a paz.

A pequena ponte que liga a ilha ao continente, embora obra relativamente recente, integra-se perfeitamente à paisagem. É como se a Virgem, do alto desse pequeno outeiro, tivesse resolvido, séculos depois, que os passantes do calçadão moderno de hoje também devessem se irmanar com aqueles aguerridos combatentes de outrora, todos juntos num ato de fé.

Boa viagem! Gosto de pensar nessa ilha também a partir desta exclamação tão tocante. Expressão que junta saudade antecipada, esperança e desejo. Desejar boa viagem é sempre isso: conformar-se com a partida inevitável, mas superar o egoísmo e querer o melhor para quem vai de partida.



Viajantes registraram que a capela erguida em louvor a Nossa Senhora da Boa Viagem era, até o final do século XIX, um local de peregrinação de pescadores e marinheiros. Aos homens das guerras de conquista, do passado remoto, juntaram-se os combatentes de outras lutas, as batalhas diárias contra os perigos do mar. E essa Nossa Senhora da ilha acolheu a todos, deu-lhes o alento baseado na fé. A modesta capela transformou-se num repositório de ex-votos, quadros e outros ícones religiosos, testemunhando a gratidão dos marujos. As paredes também transformaram-se em belos murais, igualmente eloqüentes testemunhos figurativos de crença.

Nos seus tempos áureos, a alegria, a música e a dança invadiram a pequena ilha, numa algazarra de felicidade muito diferente do fragor das batalhas. Ao invés do ruído dos canhões, o som de coros sacros ou de modinhas laicas.



Hoje, esses símbolos materiais da fé e essas ingênuas festinhas locais ficaram no passado, roídos pelo descaso, esquecidos pela desmemoriada cultura nacional, vencidos pela barulheira da comunicação de massa, ultrapassados pela modernice insensível. Mas a ilha, sua igreja e as ruínas da fortificação continuam lá, graças ao zelo admirável de meia dúzia de abnegados.

Quando passo pela ilha, muitas vezes apressado pelos compromissos do dia-a-dia, às vezes imagino uma voz, de santa ou de meu próprio desejo, a dizer com carinho:

- Boa viagem!

Texto e fotos de J.Carino.

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