Senhor,
Posto que o Capit�o-mor desta vossa frota, e assim os outros capit�es escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navega��o se achou, n�o deixarei tamb�m de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer.
Tome Vossa Alteza, por�m, minha ignor�ncia por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, n�o porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e singraduras do caminho n�o darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o n�o saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar come�o e digo:
A partida de Bel�m, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de mar�o. S�bado, 14 do dito m�s, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Can�rias, mais perto da Gr�- Can�ria, e ali andamos todo aquele dia em calma, � vista delas, obra de tr�s a quatro l�guas. E domingo, 22 do dito m�s, �s dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ata�de com sua nau, sem haver tempo forte nem contr�rio para que tal acontecesse. Fez o capit�o suas dilig�ncias para o achar, a uma e outra parte, mas n�o apareceu mais!
E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, at� que, ter�a-feira das Oitavas de P�scoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 l�guas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que d�o o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manh�, topamos aves a que chamam fura-buxos.
Neste dia, a horas de v�spera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra ch�, com grandes arvoredos: ao monte alto o capit�o p�s nome - o Monte Pascoal e � terra - a Terra da Vera Cruz.
Mandou lan�ar o prumo. Acharam vinte e cinco bra�as; e ao sol posto, obra de seis l�guas da terra, surgimos �ncoras, em dezenove bra�as -- ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E � quinta-feira, pela manh�, fizemos vela e seguimosem direitos � terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove bra�as, at� meia l�gua da terra, onde todos lan�amos �ncoras em frente � boca de um rio. E chegar�amos a esta ancoragem �s dez horas pouco mais ou menos.
Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.
Ent�o lan�amos fora os bat�is e esquifes, e vieram logo todos os capit�es das naus a esta nau do Capit�o-mor, onde falaram entre si. E o Capit�o-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele come�ou de ir para l�, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos tr�s, de maneira que, ao chegar o batel � boca do rio, j� ali havia dezoito ou vinte homens.
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas m�os traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.
Ali n�o p�de deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapu�a de linho que levava na cabe�a e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, mi�das, que querem parecer de aljaveira, as quais pe�as creio que o Capit�o manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu �s naus por ser tarde e n�o poder haver deles mais fala, por causa do mar.
Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez ca�ar as naus, e especialmente a capit�nia. E sexta pela manh�, �s oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capit�o levantar �ncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os bat�is e esquifes amarrados � popa na dire��o do norte, para ver se ach�vamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demor�ssemos, para tomar �gua e lenha. N�o que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos.
Quando fizemos vela, estariam j� na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capit�o aos navios pequenos que seguissem mais chegados � terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
E, velejando n�s pela costa, obra de dez l�guas do s�tio donde t�nhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram tamb�m, obra de uma l�gua do recife, e ancoraram em onze bra�as.
E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capit�o, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, j� de noite, ao Capit�o, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.
A fei��o deles � serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso t�m tanta inoc�ncia como em mostrar o rosto. Ambos traziam os bei�os de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma m�o travessa, da grossura dum fuso de algod�o, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do bei�o; e a parte que lhes fica entre o bei�o e os dentes � feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que n�o os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.
Os cabelos seus s�o corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados at� por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detr�s, uma esp�cie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o touti�o e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confei��o branda como cera (mas n�o o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e n�o fazia m�ngua mais lavagem para a levantar.
O Capit�o, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pesco�o, e aos p�s uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Sim�o de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e n�s outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no ch�o, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas n�o fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capit�o nem a ningu�m. Por�m um deles p�s olho no colar do Capit�o, e come�ou de acenar com a m�o para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Tamb�m olhou para um casti�al de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o casti�al como se l� tamb�m houvesse prata.
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capit�o traz consigo; tomaram-no logo na m�o e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: n�o fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: n�o lhe queriam p�r a m�o; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhes ali de comer: p�o e peixe cozido, confeitos, fart�is, mel e figos passados. N�o quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lan�aram fora. Trouxeram-lhes vinho numa ta�a; mal lhe puseram a boca; n�o gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a �gua em uma albarrada. N�o beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lan�aram fora.
Viu um deles umas contas de ros�rio, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lan�ou-as ao pesco�o. Depois tirou-as e enrolou-as no bra�o e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capit�o, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tom�vamos n�s assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto n�o o quer�amos n�s entender, porque n�o lho hav�amos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.
Ent�o estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais n�o eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capit�o lhes mandou p�r por baixo das cabe�as seus coxins; e o da cabeleira esfor�ava-se por n�o a quebrar. E lan�aram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
Ao s�bado pela manh� mandou o Capit�o fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete bra�as. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis bra�as - ancoragem dentro t�o grande, t�o formosa e t�o segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capit�es vieram a esta nau do Capit�o-mor. E daqui mandou o Capit�o a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapu�a vermelha e um ros�rio de contas brancas de osso, que eles levaram nos bra�os, seus cascav�is e suas campainhas. E mandou com eles, para l� ficar, um mancebo degredado, criado de D. Jo�o Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para l� andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos assim de frecha direitos � praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas m�os. Aqueles que n�s lev�vamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas n�o se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo sa�ram os que n�s lev�vamos, e o mancebo degredado com eles. E sa�dos n�o pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de �gua doce, de muita �gua que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, al�m do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o levou at� l�. Mas logo tornaram a n�s; e com ele vieram os outros que n�s lev�ramos, os quais vinham j� nus e sem carapu�as.
Ent�o se come�aram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os bat�is, at� que mais n�o podiam; traziam caba�os de �gua, e tomavam alguns barris que n�s lev�vamos: enchiam-nos de �gua e traziam-nos aos bat�is. N�o que eles de todos chegassem � borda do batel. Mas junto a ele, lan�avam os barris que n�s tom�vamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascav�is e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a m�o. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapu�as de linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar.
Dali se partiram os outros dois mancebos, que os n�o vimos mais.
Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos bei�os. E alguns, que andavam sem eles, tinham os bei�os furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam tr�s daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. A� andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua pr�pria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles tr�s ou quatro mo�as, bem mo�as e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas esp�duas, e suas vergonhas t�o altas, t�o cerradinhas e t�o limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, n�o t�nhamos nenhuma vergonha.
Ali por ent�o n�o houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se n�o entendia nem ouvia ningu�m.
Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram-se al�m do rio. Sa�ram tr�s ou quatro homens nossos dos bat�is, e encheram n�o sei quantos barris de �gua que n�s lev�vamos e tornamo-nos �s naus. Mas quando assim v�nhamos, acenaram-nos que torn�ssemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e n�o quiseram que ficasse l� com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou tr�s carapu�as vermelhas para l� as dar ao senhor, se o l� houvesse. N�o cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo. Mas ent�o Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu , � vista de n�s, �quele que da primeira vez agasalhara. Logo voltou e n�s trouxemo-lo.
Esse que o agasalhou era j� de idade, e andava por lou�ainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebasti�o. Outros traziam carapu�as de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas mo�as era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era t�o bem-feita e t�o redonda, e sua vergonha (que ela n�o tinha) t�o graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais fei��es, fizera vergonha, por n�o terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como n�s. E com isto nos tornamos e eles foram-se. � tarde saiu o Capit�o-mor em seu batel com todos n�s outros e com os outros capit�es das naus em seus bat�is a folgar pela ba�a, em frente da praia. Mas ningu�m saiu em terra, porque o Capit�o o n�o quis, sem embargo de ningu�m nela estar. Somente saiu -- ele com todos n�s -- em um ilh�u grande, que na ba�a est� e que na baixa-mar fica mui vazio. Por�m � por toda a parte cercado de �gua, de sorte que ningu�m l� pode ir, a n�o ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos n�s outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe mi�do, n�o muito. Ent�o volvemo-nos �s naus, j� bem de noite.
Ao domingo de Pascoela pela manh�, determinou o Capit�o de ir ouvir missa e prega��o naquele ilh�u. Mandou a todos os capit�es que se aprestassem nos bat�is e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilh�u armar um esperavel, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos n�s outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devo��o.
Ali era com o Capit�o a bandeira de Cristo, com que saiu de Bel�m, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e n�s todos lan�ados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa prega��o da hist�ria do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obedi�ncia viemos, o que foi muito a prop�sito e fez muita devo��o. Enquanto estivemos � missa e � prega��o, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados n�s � prega��o, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e come�aram a saltar e dan�ar um peda�o. E alguns deles se metiam em almadias -- duas ou tr�s que a� tinham -- as quais n�o s�o feitas como as que eu j� vi; somente s�o tr�s traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam n�o se afastando quase nada da terra, sen�o enquanto podiam tomar p�.
Acabada a prega��o, voltou o Capit�o, com todos n�s, para os bat�is, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em dire��o � terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do Capit�o, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e n�s todos, obra de tiro de pedra, atr�s dele.
Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos � �gua, metendo-se nela at� onde mais podiam.
Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo p�r em terra; e outros n�o.
Andava a� um que falava muito aos outros que se afastassem, mas n�o que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, esp�duas, quadris, coxas e pernas at� baixo, mas os vazios com a barriga e est�mago eram de sua pr�pria cor. E a tintura era assim vermelha que a �gua a n�o comia nem desfazia, antes, quando sa�a da �gua, parecia mais vermelha.
Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam caba�as de �gua, e acenavam aos do esquife que sa�ssem em terra.
Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capit�o; e viemo-nos �s naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opress�o. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por ent�o ficaram.
Neste ilh�u, onde fomos ouvir missa e prega��o, a �gua espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto a� est�vamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camar�es grossos e curtos, entre os quais vinha um t�o grande e t�o grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Tamb�m acharam cascas de berbig�es e am�ijoas, mas n�o toparam com nenhuma pe�a inteira.
E tanto que comemos, vieram logo todos os capit�es a esta nau, por ordem do Capit�o-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que n�s agora pod�amos saber, por irmos de nossa viagem.
E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto conclu�ram. E tanto que a conclus�o foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por for�a um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados.
Sobre isto acordaram que n�o era necess�rio tomar por for�a homens, porque era geral costume dos que assim levavam por for�a para alguma parte dizerem que h� ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informa��o da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ningu�m entende. Nem eles t�o cedo aprenderiam a falar para o saberem t�o bem dizer que muito melhor estoutros o n�o digam, quando Vossa Alteza c� mandar. E que, portanto, n�o cuidassem de aqui tomar ningu�m por for�a nem de fazer esc�ndalo, para de todo mais os amansar e apacificar, sen�o somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui part�ssemos.
E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado. Acabado isto, disse o Capit�o que f�ssemos nos bat�is em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e tamb�m para folgarmos.
Fomos todos nos bat�is em terra, armados e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, � boca do rio, para onde n�s �amos; e, antes que cheg�ssemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que sa�ssemos. Mas, tanto que os bat�is puseram as proas em terra, passaram-se logo todos al�m do rio, o qual n�o � mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, por�m, a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapu�as de linho ou por qualquer coisa que lhes davam.
Passaram al�m tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam.
Ent�o o Capit�o fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava n�o seria mais que a costumada. E tanto que o Capit�o fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, n�o porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que n�o entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava j� para aqu�m do rio.
Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas j� ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas.
Ent�o tornou-se o Capit�o aqu�m do rio, e logo acudiram muitos � beira dele. Ali ver�eis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.
Tamb�m andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres mo�as, nuas como eles, que n�o pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho at� o quadril, e a n�dega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua pr�pria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e tamb�m os colos dos p�s; e suas vergonhas t�o nuas e com tanta inoc�ncia descobertas, que nisso n�o havia nenhuma vergonha.
Tamb�m andava a� outra mulher mo�a com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (n�o sei de qu�) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da m�e e o resto n�o traziam pano algum.
Depois andou o Capit�o para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado � praia. Ali esperou um velho, que trazia na m�o uma p� de almadia. Falava, enquanto o Capit�o esteve com ele, perante n�s todos, sem nunca ningu�m o entender, nem ele a n�s quantas coisas que lhe demand�vamos acerca de ouro, que n�s desej�vamos saber se na terra havia.
Trazia este velho o bei�o t�o furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco. O Capit�o lha fez tirar. E ele n�o sei que diabo falava e ia com ela direito ao Capit�o, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e ent�o enfadou-se o Capit�o e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, n�o por ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois houve-a o Capit�o, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza.
Andamos por a� vendo a ribeira, a qual � de muita �gua e muito boa. Ao longo dela h� muitas palmas, n�o muito altas, em que h� muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.
Ent�o tornou-se o Capit�o para baixo para a boca do rio, onde hav�amos desembarcado.
Al�m do rio, andavam muitos deles dan�ando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas m�os. E faziam-no bem. Passou-se ent�o al�m do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacav�m, que � homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dan�ar, tomando-os pelas m�os; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dan�arem, fez-lhes ali, andando no ch�o, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.
E ent�o o Capit�o passou o rio com todos n�s outros, e fomos pela praia de longo, indo os bat�is, assim, rente da terra. Fomos at� uma lagoa grande de �gua doce, que est� junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar � apaulada por cima e sai a �gua por muitos lugares.
E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos bat�is. E levaram dali um tubar�o, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lan�ou na praia.
Bastar� dizer-vos que at� aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma m�o para outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem n�o lhes ousa falar de rijo para n�o se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar.
O Capit�o ao velho, com quem falou, deu uma carapu�a vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapu�a que lhe deu, tanto que se apartou e come�ou de passar o rio, foi-se logo recatando e n�o quis mais tornar de l� para aqu�m.
Os outros dois, que o Capit�o teve nas naus, a que deu o que j� disse, nunca mais aqui apareceram - do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso t�o esquiva. Por�m e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que s�o como aves ou alim�rias monteses, �s quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que �s mansas, porque os corpos seus s�o t�o limpos, t�o gordos e t�o formosos, que n�o pode mais ser.
Isto me faz presumir que n�o t�m casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem n�s ainda at� agora vimos nenhuma casa ou maneira delas.
Mandou o Capit�o aquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou l� um bom peda�o, mas � tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e n�o o quiseram l� consentir. E deram-lhe arcos e setas; e n�o lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes - disse ele - que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo ap�s, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e ent�o mandaram-no vir. Disse que n�o vira l� entre eles sen�o umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos �s naus, j� quase noite, a dormir.
� segunda-feira, depois de comer, sa�mos todos em terra a tomar �gua. Ali vieram ent�o muitos, mas n�o tantos como as outras vezes. J� muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de n�s; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abra�avam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com mo�as e mulheres. E trouxeram de l� muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capit�o h� de mandar amostra a Vossa Alteza.
E, segundo diziam esses que l� foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais � nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta fei��o, como em panos de armar, e todos com os bei�os furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos.
Alguns traziam uns ouri�os verdes, de �rvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns gr�os vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados at� cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos.
E o Capit�o mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem l� andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem l� esta noite. Foram-se l� todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma l�gua e meia a uma povoa��o, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram t�o compridas, cada uma, como esta nau capit�nia. Eram de madeira, e das ilhargas de t�buas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma s� pe�a, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.
Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra h� e eles comem. Mas, quando se fez tarde fizeram-nos logo tornar a todos e n�o quiseram que l� ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.
Resgataram l� por cascav�is e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapu�as de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas ver�, porque o Capit�o vo-las h� de mandar, segundo ele disse.
E com isto vieram; e n�s torn�mo-nos �s naus.
� ter�a-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.
Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para n�s, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos bat�is. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.
Enquanto cort�vamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.
Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles n�o tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram l�.
Era j� a conversa��o deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no que hav�amos de fazer.
O Capit�o mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem l� � aldeia (e aoutras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, n�o viessem dormir �s naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram.
Enquanto and�vamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas �rvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haver� muitos nesta terra. Por�m eu n�o veria mais que at� nove ou dez. Outras aves ent�o n�o vimos, somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu n�o as vi. Mas, segundo os arvoredos s�o mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, n�o duvido que por esse sert�o haja muitas aves!
Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que ainda n�o dei conta aqui a Vossa Alteza da fei��o de seus arcos e setas. Os arcos s�o pretos e compridos, as setas tamb�m compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza ver� por alguns que - eu creio -- o Capit�o a Ela h� de enviar.
� quarta-feira n�o fomos em terra, porque o Capit�o andou todo o dia no navio dos mantimentos a despej�-lo e fazer levar �s naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram � praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que l� foi, seriam obra de trezentos.
Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capit�o ontem mandou que em toda maneira l� dormissem, volveram-se, j� de noite, por eles n�o quererem que l� ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a n�o ser que tinham o bico branco e os rabos curtos.
Quando Sancho de Tovar se recolheu � nau, queriam vir com ele alguns, mas ele n�o quis sen�o dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de len��is, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite.
E assim n�o houve mais este dia que para escrever seja.
� quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manh�, e fomos em terra por mais lenha e �gua. E, em querendo o Capit�o sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois h�spedes. E por ele ainda n�o ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos h�spedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lac�o cozido, frio, e arroz.
N�o lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o n�o bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco mont�s, bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no bei�o, e, porque se lhe n�o queria segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adere�o detr�s para ficar segura, e meteu-a no bei�o, assim revolta para cima. E vinha t�o contente com ela, como se tivesse uma grande j�ia. E tanto que sa�mos em terra, foi-se logo com ela, e n�o apareceu mais a�.
Andariam na praia, quando sa�mos, oito ou dez deles; e de a� a pouco come�aram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, � praia quatrocentos ou quatrocentos e cinq�enta.
Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapu�as ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes d�vamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o n�o podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beber�o de boa vontade.
Andavam todos t�o dispostos, t�o bem-feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos bat�is. Andavam j� mais mansos e seguros entre n�s, do que n�s and�vamos entre eles.
Foi o Capit�o com alguns de n�s um peda�o por este arvoredo at� uma ribeira grande e de muita �gua que, a nosso parecer, era esta mesma, que vem ter � praia, e em que n�s tomamos �gua.
Ali ficamos um peda�o, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que � tanto, tamanho, t�o basto e de tantas prumagens, que homens as n�o podem contar. H� entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.
Quando sa�mos do batel, disse o Capit�o que seria bom irmos direitos � Cruz, que estava encostada a uma �rvore, junto com o rio, para se erguer amanh�, que � sexta-feira, e que nos pus�ssemos todos de joelhos e a beij�ssemos para eles verem o acatamento que lhe t�nhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que a� estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beij�-la.
Parece-me gente de tal inoc�ncia que, se homem os entendesse e eles a n�s, seriam logo crist�os, porque eles, segundo parece, n�o t�m, nem entendem em nenhuma cren�a.
E portanto, se os degredados, que aqui h�o de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, n�o duvido que eles, segundo a santa inten��o de Vossa Alteza, se h�o de fazer crist�os e crer em nossa santa f�, � qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente � boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-� ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que n�o foi sem causa.
Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa f� cat�lica, deve cuidar da sua salva��o. E prazer� a Deus que com pouco trabalho seja assim.
Eles n�o lavram, nem criam. N�o h� aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alim�ria, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem sen�o desse inhame, que aqui h� muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as �rvores de si lan�am. E com isto andam tais e t�o rijos e t�o n�dios, que o n�o somos n�s tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Neste dia, enquanto ali andaram, dan�aram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que s�o muito mais nossos amigos que n�s seus.
Se lhes homem acenava se queriam vir �s naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Por�m n�o trouxemos esta noite �s naus, sen�o quatro ou cinco, a saber: o Capit�o-mor, dois; e Sim�o de Miranda, um, que trazia j� por pajem; e Aires Gomes, outro, tamb�m por pajem.
Um dos que o Capit�o trouxe era um dos h�spedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irm�o; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colch�es e len��is, para os mais amansar.
E hoje, que � sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manh�, sa�mos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capit�o o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.
Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos n�s outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de prociss�o.
Eram j� a� alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la p�r onde havia de ficar, que ser� do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinq�enta ou mais.
Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao p� dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses j� ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinq�enta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como n�s.
E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em p�, com as m�os levantadas, eles se levantaram conosco e al�aram as m�os, ficando assim, at� ser acabado; e ent�o tornaram-se a assentar como n�s. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como n�s est�vamos com as m�os levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devo��o.
Estiveram assim conosco at� acabada a comunh�o, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capit�o com alguns de n�s outros.
Alguns deles, por o sol ser grande, quando est�vamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinq�enta ou cinq�enta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando n�s assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o C�u, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e n�s assim o tomamos.
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Ap�stolos, cujo dia hoje �, tratando, ao fim da prega��o, deste vosso prosseguimento t�o santo e virtuoso, o que nos aumentou a devo��o.
Esses, que � prega��o sempre estiveram, quedaram-se como n�s olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a prega��o, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lan�asse a cada um a sua ao pesco�o. Pelo que o padre frei Henrique se assentou ao p� da Cruz e ali, a um por um, lan�ava a sua atada em um fio ao pesco�o, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as m�os. Vinham a isso muitos; e lan�aram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinq�enta.
Isto acabado - era j� bem uma hora depois do meio-dia - viemos �s naus a comer, trazendo o Capit�o consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostran�a para o altar e para o C�u e um seu irm�o com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.
E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente n�o lhes falece outra coisa para ser toda crist�, sen�o entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como n�s mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adora��o t�m. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos ser�o tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se algu�m vier, n�o deixe logo de vir cl�rigo para os batizar, porque j� ent�o ter�o mais conhecimento de nossa f�, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje tamb�m comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram, n�o veio mais que uma mulher mo�a, a qual esteve sempre � missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Por�m, ao assentar, n�o fazia grande mem�ria de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inoc�ncia desta gente � tal, que a de Ad�o n�o seria maior, quanto a vergonha.
Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inoc�ncia vive se converter� ou n�o, ensinando-lhes o que pertence � sua salva��o.
Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.
Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se sa�ram desta nau no esquife, fugidos para terra. N�o vieram mais. E cremos que ficar�o aqui, porque de manh�, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos at� � outra ponta que contra o norte vem, de que n�s deste porto houvemos vista, ser� tamanha que haver� nela bem vinte ou vinte e cinco l�guas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda ch� e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, � toda praia parma, muito ch� e muito formosa.
Pelo sert�o nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, n�o pod�amos ver sen�o terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, at� agora, n�o pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Por�m a terra em si � de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os ach�vamos como os de l�.
�guas s�o muitas; infindas. E em tal maneira � graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-� nela tudo, por bem das �guas que tem.
Por�m o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que ser� salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lan�ar.
E que a� n�o houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navega��o de Calecute, bastaria. Quando mais disposi��o para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa f�.
E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim p�r pelo mi�do.
E pois que, Senhor, � certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso servi�o for, Vossa Alteza h� de ser de mim muito bem servida, a Ela pe�o que, por me fazer singular merc�, mande vir da ilha de S�o Tom� a Jorge de Os�rio, meu genro - o que d'Ela receberei em muita merc�.
Beijo as m�os de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha
Nota INFORMATIVA:
A carta que o escriv�o Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei d. Manuel � considerada o primeiro documento da nossa hist�ria, e tamb�m como o primeiro texto liter�rio do Brasil.
Esta cr�nica do nascimento do Brasil, redigida em forma de di�rio, vem motivando um volumoso n�mero de estudos e edi��es, desde quando o padre Manuel Aires de Casal a publicou pela primeira vez na Corografia braz�lica. O original desse precioso documento, em sete folhas de papel manuscritas, cada uma em quatro p�ginas, num total de 27 p�ginas de texto e mais uma de endere�o, encontra-se guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, (gaveta 8, ma�o 2, n.2).
A carta de Caminha caracteriza-se pela descri��o da tipicidade humana do ind�gena. Observou Carlos Malheiro Dias que "Caminha n�o era um cosm�grafo. O que ele redigiu para recreio e esclarecimento do rei foi uma narrativa impressionista em que revela aquela cultura liter�ria t�o pr�pria dos portugueses da sua grande �poca, e aquela capacidade de observa��o, e aquela capacidade de compreender e descrever judiciosamente, que constituem o mais espl�ndido encanto dos cronistas". A preocupa��o em traduzir gestos, a caracteriza��o corporal, a sua alimenta��o e abrigo, enfim, o seu modo de existir, demonstra o valor dessa carta narrativa como documento e obra liter�ria. Refer�ncias: . Corografia braz�lica, ou rela��o hist�rico-geogr�fica do reino do Brazil. Composta e dedicada a sua Magestade Fidel�ssima pelo presb�tero Manuel Aires de Casal. Rio de Janeiro: Impress�o R�gia, 1817, volume 1, p�g. 12-34. . Cortes�o, Jaime. A Carta de Pero Vaz de Caminha. 3 ed., Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994, p. 191. . Seguro, Visconde de Porto (Francisco Adolfo de Varnhagen). Nota acerca de como n�o foi na Coroa Vermelha, na enseada de Santa Cruz, que Cabral primeiro desembarcou e em que fez dizer a primeira missa. In: Revista Trimensal do Instituto Hist�rico, Geogr�fico e Etnogr�fico do Brasil. Rio de Janeiro: Garnier, 1877. Vol. XL, Parte 2, p.12. . Abreu, Jo�o Capistrano de. O descobrimento do Brasil. Nota liminar de Jos� Hon�rio Rodrigues. 2 ed, Rio de Janeiro: Civiliza��o Brasileira; Bras�lia: INL, 1976, p.167. . Dias, Carlos Malheiro. A semana de Vera Cruz. In: Hist�ria da coloniza��o portuguesa do Brasil. Porto: Litografia Nacional, 1923. Vol. 2, p. 77. . Pereira, Paulo Roberto. Os tr�s �nicos testemunhos do descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. O texto da carta, assim como a nota informativa e as refer�ncias, basearam-se no livro - Os tr�s �nicos testemunhos do descobrimento do Brasil, de Paulo Roberto Pereira. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. ( MCG)
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