Alma Carioca

Um guardião de olhos tristes

J.Carino

A gente passa por ali todos os dias e a casa está lá. Antiga, ainda exibe aquelas varandinhas onde se recebiam as visitas; vê-se o telhado com o forro aparecendo abaixo dos beirais; as infiltrações mancham as paredes - antes de alvura cuidada, hoje de um branco sujo do abandono - como uma dessas insidiosas e graves doenças de pele.

Estão lá a casa e seu passado. E minha curiosidade e imaginação, que tentam decifrar esse passado: quem, quando e como viveu ali? Passo por essas casas e me detenho, reverente, diante dos enigmas de vidas vividas que fico tentando adivinhar.

Outro dia, uma dessas casas velhas desapareceu de meu caminho. Eu a vira na véspera, com sua dignidade de passado. Agora não estava mais lá. Montes de escombros envoltos numa nuvem de poeira, eis tudo o que restava depois do ataque de rápidas e eficientes máquinas de demolição.

Essas destruições me entristecem, mas outro tipo de curiosidade surge. Em lugar da casa, e antes mesmo dos engenheiros e mestres-de-obra, com seus cruéis bate-estacas que acabarão com o sono dos vizinhos por semanas, aparecem os primeiros operários que erguem uma grande parede de madeira. Ela vai esconder, do olhar curioso dos passantes, o terreno e os movimentos de terra que transformarão um antigo quintal num lodaçal e num depósito de madeiras, ferros e tudo o que será necessário para a obra começar.

Nessa grande paliçada de tábuas é construído um stand, que torna o mais palatável possível, num ambiente confortável para os potenciais compradores, a aceitação dos minúsculos apartamentos que comporão o edifício.

Isso durante o dia. Depois, e também nos fins de semana, tudo pertence ao guardião da obra.

O homem de que falo não é aquele que dá duro, se esfalfa cavando, carregando, pregando - força bruta a serviço da exploração, de um salário de fome. É outro. Falo do vigia - fidelíssimo protetor do que se guarda e do que vai surgindo atrás da paliçada.

Sentado num banco tosco, olha a rua. Seu olhar quase sempre trai a condição de migrante. Um olhar aguçado e, ao mesmo tempo, perdido: atento à bela mulher que passa, ao cãozinho de madame super bem tratado, aos carros reluzentes, aos ônibus apinhados...

Porém, no fundo desse olhar assustadiço há uma caatinga ressequida; há uma moreninha pequenina, alvo dos primeiros beijos, ainda bem inocentes. Nesse olhar se refletem um pai sertanejo, de pele enrugada e mãos calejadas; u'a mãe parideira que carrega a água difícil da cacimba distante, sempre com um menino novo no colo de mulher envelhecida muito antes do tempo.

Dia desses, observei quanta verdade há em se dizer que a carne é fraca: olhando para um lado e para o outro, o guardião deixou entrar uma mulher nem feia nem bonita, de olhar igualmente perdido e rosto pálido, metida num vestido barato e muito curto. Desviei os olhos pensando no paupérrimo ninho daquele contato fugaz e superficial - certamente uma cama tosca feita com a madeira da obra, ou até um dos sofás do stand providencialmente afastado para longe dos olhares dos passantes.

Neste domingo volto e lá está ele, o guardião da obra. Luta com um aparelho de som portátil, tentando mexer em botões cuja função não compreende. Os dedos calosos vão mudando os sons: um comentarista de futebol, uma pregação evangélica, um programa de piadas chulas…

De repente, o som de uma sanfona inunda nossos ouvidos e a rua deserta neste fim de tarde. E quase tenho a certeza de que um xaxado, que parece vir de uma terra distante, bate no coração saudoso e umedece os olhos tristes do guardião - apenas um chuvisco de emoção, que só lava a alma, porém mais intenso até do que a chuva real por que sonham e rezam os homens do sertão.

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