A gente passa por ali todos os dias e a
casa está lá. Antiga, ainda exibe aquelas varandinhas onde se recebiam
as visitas; vê-se o telhado com o forro aparecendo abaixo dos beirais;
as infiltrações mancham as paredes - antes de alvura cuidada, hoje de
um branco sujo do abandono - como uma dessas insidiosas e graves doenças
de pele.
Estão lá a casa e seu passado. E minha
curiosidade e imaginação, que tentam decifrar esse passado: quem,
quando e como viveu ali? Passo por essas casas e me detenho, reverente,
diante dos enigmas de vidas vividas que fico tentando adivinhar.
Outro dia, uma dessas casas velhas
desapareceu de meu caminho. Eu a vira na véspera, com sua dignidade de
passado. Agora não estava mais lá. Montes de escombros envoltos numa
nuvem de poeira, eis tudo o que restava depois do ataque de rápidas e
eficientes máquinas de demolição.
Essas destruições me entristecem, mas
outro tipo de curiosidade surge. Em lugar da casa, e antes mesmo dos
engenheiros e mestres-de-obra, com seus cruéis bate-estacas que acabarão
com o sono dos vizinhos por semanas, aparecem os primeiros operários que
erguem uma grande parede de madeira. Ela vai esconder, do olhar curioso
dos passantes, o terreno e os movimentos de terra que transformarão um
antigo quintal num lodaçal e num depósito de madeiras, ferros e tudo o
que será necessário para a obra começar.
Nessa grande paliçada de tábuas é
construído um stand, que torna o mais palatável possível, num ambiente
confortável para os potenciais compradores, a aceitação dos minúsculos
apartamentos que comporão o edifício.
Isso durante o dia. Depois, e também
nos fins de semana, tudo pertence ao guardião da obra.
O homem de que falo não é aquele que dá
duro, se esfalfa cavando, carregando, pregando - força bruta a serviço
da exploração, de um salário de fome. É outro. Falo do vigia - fidelíssimo
protetor do que se guarda e do que vai surgindo atrás da paliçada.
Sentado num banco tosco, olha a rua. Seu
olhar quase sempre trai a condição de migrante. Um olhar aguçado e, ao
mesmo tempo, perdido: atento à bela mulher que passa, ao cãozinho de
madame super bem tratado, aos carros reluzentes, aos ônibus apinhados...
Porém, no fundo desse olhar assustadiço
há uma caatinga ressequida; há uma moreninha pequenina, alvo dos
primeiros beijos, ainda bem inocentes. Nesse olhar se refletem um pai
sertanejo, de pele enrugada e mãos calejadas; u'a mãe parideira que
carrega a água difícil da cacimba distante, sempre com um menino novo
no colo de mulher envelhecida muito antes do tempo.
Dia desses, observei quanta verdade há
em se dizer que a carne é fraca: olhando para um lado e para o outro, o
guardião deixou entrar uma mulher nem feia nem bonita, de olhar
igualmente perdido e rosto pálido, metida num vestido barato e muito
curto. Desviei os olhos pensando no paupérrimo ninho daquele contato
fugaz e superficial - certamente uma cama tosca feita com a madeira da
obra, ou até um dos sofás do stand providencialmente afastado para
longe dos olhares dos passantes.
Neste domingo volto e lá está ele, o
guardião da obra. Luta com um aparelho de som portátil, tentando mexer
em botões cuja função não compreende. Os dedos calosos vão mudando
os sons: um comentarista de futebol, uma pregação evangélica, um
programa de piadas chulas…
De repente, o som de uma sanfona inunda
nossos ouvidos e a rua deserta neste fim de tarde. E quase tenho a
certeza de que um xaxado, que parece vir de uma terra distante, bate no
coração saudoso e umedece os olhos tristes do guardião - apenas um
chuvisco de emoção, que só lava a alma, porém mais intenso até do
que a chuva real por que sonham e rezam os homens do sertão.
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