Sempre passava das tr�s da madrugada quando Dorival, 55 anos de vida e 15 de viuvez, apagava a luz do quarto, ajustava a cabe�a no travesseiro e puxava o cobertor para o pesco�o.
Fazia isso como mero h�bito; j� tinha perdido qualquer esperan�a de dormir e n�o mais acordar. H� meses nutria a expectativa de morrer dormindo. Seu problema era que n�o admitia deixar a vida com sofrimento - corpo esmagado por um viaduto, bala perdida ou certeira, ser encontrado por c�es farejadores, muito menos perceber a express�o de alguma enfermeira denotando caso encerrado. Dorival queria apenas n�o acordar, mas para isso tinha que dormir. E sempre que dormia passava pelo desespero do despertar, pela frustra��o e constrangimento de n�o ter conseguido. O ac�mulo de fracassos fez Dorival temer o pr�prio ato de adormecer, diante da perspectiva de mais um horr�vel despertar. Caso complicado at� para o Freud.
Dorival morava com S�lvia, 27, sua filha �nica, solteira e charmosa, em uma casa pequena, mas bonita e aconchegante, na margem de uma movimentada rodovia e no sop� de um morro da regi�o serrana que abrigava uma bel�ssima mostra de mata atl�ntica. Foi sobre press�o irresist�vel da filha que terminou em um psiquiatra do SUS que diagnosticou depress�o e ansiedade, receitou uns comprimidos e encerrou o assunto. Os comprimidos at� melhoraram a ansiedade, mas o pre�o deles aumentou a depress�o. Com a filha dedicada, Dorival, sob protesto, seguiu para um psic�logo, mas usou o seu direito constitucional de permanecer em sil�ncio.
O passo seguinte foi uma igreja reconhecida pelos espantosos milagres televisados. E, realmente, um milagre ocorreu � Dorival adormeceu tranquilamente durante a prega��o de um pastor monoc�rdio. O cochilo durou pouco mais de 15 minutos mas encheu S�lvia de esperan�a. Rapidamente, ela conseguiu tr�s horas de grava��es da igreja e montou um est�dio de som para embalar o papai. O efeito foi surpreendente � o pastor gravado n�o era o monoc�rdio e conquistou o cora��o e a mente de Dorival. Ele n�o perdeu o medo de morrer sofrendo, mas ampliou a vontade de morrer para estar logo na presen�a do Salvador. Antes, queria apenas deixar de existir, agora, estava obcecado por uma nova exist�ncia. Dorival queria dormir s� e acordar na presen�a dEle.
O sofrimento seguia sua rotina quando S�lvia viajou a servi�o da empresa em que trabalhava, e Dorival ficou s� na casa bonita e aconchegante, mas j� estava acostumado �s aus�ncias eventuais da filha.
N�o se sabe se Dorival sentiu alguma dor naquela madrugada de quarta-feira, nem sequer se acordou com a trovoada ou quando o morro inteiro veio abaixo e soterrou sua casa e a rodovia. Seu corpo foi encontrado cinco dias depois por um c�o farejador da pol�cia, estava mais esmagado que baga�o de cana em usina de �lcool. Retiraram de S�lvia um pouco de sangue para identifica��o por DNA, embora ela tivesse certeza que aquele baga�o de corpo era de seu pai devido aos restos de um pijama que fora seu presente de anivers�rio para ele.
O resultado do DNA foi explosivo, simplesmente mostrou que S�lvia n�o era filha de Dorival. Houve provas e contraprovas no exame, mas finalmente foi aceita a evid�ncia cient�fica. S�lvia conseguiu barrar o estado de choque concentrando-se nas lembran�as de sua m�e, morta quando ela tinha apenas 10 anos. Mesmo entrando em depress�o, foi forte e esperta para agir e receber uma pequena indeniza��o do governo e a pens�o de Dorival - o DNA dizia uma coisa, mas a certid�o de nascimento dizia outra, e a lei � clara sobre a mat�ria.
S�lvia sentiu agravamento no seu quadro psicol�gico e buscou assist�ncia especializada. Um psiquiatra receitou o mesmo comprimido de Dorival, e uma psic�loga aconselhou-a a tentar encontrar seu verdadeiro pai pelo facebook. S�lvia n�o tomou os comprimidos, mas iniciou a busca no face. At� agora nada encontrou, mas j� tem 440 amigos, entre v�timas de deslizamentos, depressivos variados, impactados por DNA, suicidas potenciais, indignados com a desordem urbana e revoltados em geral. S�lvia j� est� quase curada da depress�o e considera-se uma garota de sorte, dividindo um apartamento com uma amiga de inf�ncia.
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