A RUA
Paulo Barreto, o Jo�o do Rio
Eu
amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria
revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para
julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por
todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos
e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos,
com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela
e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável
e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste
às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia � o
amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais
dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis
e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações
cada vez maior, o amor da rua.
A rua! Que é
a rua? Um cançonetista de Montmartre fá-la dizer:
Je
suís la rue, femme êternellement verte,
Je n�ai jamais trouvé
d�autre carrière ouverte Sinon d�être la rue, et, de tout
temps, depuis Que ce pénible monde est monde, je la suis...
A
verdade e o trocadilho! Os dicionários dizem: "Rua, do latim ruga, sulco.
Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia".
E Domingos Vieira, citando as Ordenações: "Estradas e rua
pruvicas antiguamente usadas e os rios navegantes se som cabedaes que correm continuamente
e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas". A obscuridade
da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados
fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro,
abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei infolios especiais
de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se
anda nas povoações.
Ora, a rua é mais
do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benares
ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos,
nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os
desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses
enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso
dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. Não
paga ao Tamagno para ouvir berros atenorados de leão avaro, nem à
velha Patti para admitir um fio de voz velho, fraco e legendário. Bate,
em compensação, palmas aos saltimbancos que, sem voz, rouquejam
com fome para alegrá-la e para comer. A rua é generosa. O crime,
o delírio, a miséria não os denuncia ela. A rua é
a transformadora das línguas. Os Cândido de Figueiredo do universo
estafam-se em juntar regrinhas para enclausurar expressões; os prosadores
bradam contra os Cândido. A rua continua, matando substantivos, transformando
a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras
que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico
dos léxicons futuros. A rua resume para o animal civilizado todo o conforto
humano. Dá-lhe luz, luxo, bem-estar, comodidade e até impressões
selvagens no adejar das árvores e no trinar dos pássaros.
A
rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na
argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço
exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer
as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopéia
tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente
nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a
mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas.
A rua criou todas as blagues todos os lugares-comuns. Foi ela que fez a
majestade dos rifões, dos brocardos, dos anexins, e foi também ela
que batizou o imortal Calino. Sem o consentimento da rua não passam os
sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam lhe resumem a banalidade,
são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de sabão.
A rua é a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à
noite, treme com a febre dos delírios, para ela como para as crianças
a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste,
quando o sol desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações,
é, no encanto da vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostálgico
dos pregões � tão modesta, tão lavada, tão risonha,
que parece papaguear
com o céu e com os anjos...
A
rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que
vive em cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico
que tem dos gnomos e dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos
e de lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono
e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino
e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais sabida e cética
que os velhos de setenta invernos, mas cuja ingenuidade é perpétua,
voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca teve preocupações,
criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir,
francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d�ouro que
se faz lama e torna a ser poeira � a rua criou o garoto!
Essas
qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia da
rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol
e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de
curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível,
é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais
interessante dos esportes � a arte de flanar. É fatigante o exercício?
Para
os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horácio, a pé,
não fez outra coisa nos quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe
a profunda virtude, e Balzac fez todos os seus preciosos achados flanando. Flanar!
Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que
não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é
ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus
da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí,
de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça,
admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador
do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte
das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas
da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti de casaca aplaudirem o
maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver
os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um
pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem
fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio
lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão,
por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de
amor causa inveja.
É vagabundagem? Talvez. Flanar
é a distinção de perambular com inteligência. Nada
como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur
ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis,
que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela como Paul Adam, admira
o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua;
à porta do café, como Poe no Homem da Multidões, dedica-se
ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações
e até os crimes dos transeuntes. É uma espécie de secreta
à maneira de Sherlock Holmes, sem os inconvenientes dos secretas nacionais.
Haveis de encontrá-lo numa bela noite numa noite muito feia. Não
vos saberá dizer donde vem, que está a fazer, para onde vai. Pensareis
decerto estar diante de um sujeito fatal? Coitado! O flâneur é
o bonhomme possuidor de uma alma igualitária e risonha, falando
aos notáveis e aos humildes com doçura, porque de ambos conhece
a face misteriosa e cada vez mais se convence da inutilidade da cólera
e da necessidade do perdão.
O flâneur é
ingênuo quase sempre. Pára diante dos rolos, é o eterno "convidado
do sereno" de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se
simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço
da história, como se sabe a história dos amigos (quase sempre mal),
acaba com a vaga idéia de que todo o espetáculo da cidade foi feito
especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe ao meio-dia
no Castelo, sobe para seu prazer; as bandas de música tocam nas praças
para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões
chorosos, a serenata e os violões estão ali para diverti-lo. E de
tanto ver que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete.
As observações foram guardadas na placa sensível do cérebro;
as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur
deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo,
ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas.
E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível
futilidade dos pedestres da poesia de observação...
Eu
fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim
um ser vivo e imóvel.
Balzac dizia que as ruas de
Paris nos dão impressões humanas. São assim as ruas de todas
as cidades, com vida e destinos iguais aos do homem.
Por
que nascem elas? Da necessidade de alargamento das grandes colmeias sociais, de
interesses comerciais, dizem. Mas ninguém o sabe. Um belo dia, alinha-se
um tarrascal, corta-se um trecho de chácara, aterra-se lameiro, e aí
está: nasceu mais uma rua. Nasceu para evoluir, para ensaiar primeiros
passos, para balbuciar, crescer, criar uma individualidade. Os homens têm
no cérebro a sensação dessa semelhança, e assim como
dizem de um rapagão:
� Quem há de pensar que
vi este menino a engatinhar!
Murmuram:
�
Quem há de dizer que esta rua há dez anos só tinha uma casa!
Um
cavalheiro notável, ao entrar comigo certa vez na Rua Senador Dantas, não
se conteve:
� É impossível passar por aqui
sem lembrar que a velhice começa a chegar. Quando vim da província
esta rua tinha apenas duas casas no antigo jardim do Convento, e eu tomava chopps
no Guarda Velha a três vinténs!
 |
Eu sorria,
mas o pobre sujeito importante dizia isso como se recordasse os dois primeiros
dentes de um homenzarrão, com uma dentadura capaz atualmente de morder
as algibeiras de uma sociedade inteira. Era a recordação, a saudade
do passado começo.
Há nada mais enternecedor
que o princ�pio de uma rua? � ir v�-lo nos arrabaldes. A princ�pio capim, um
bra�o a ligar duas art�rias. Percorre-o sem pensar meia d�zia de criaturas.
Um dia cercam � beira um lote de terreno. Surgem em seguida os alicerces de
uma casa. Depois de outra e mais outra. |
Um
combustor tremeluz indicando que ela j� se n�o deita com as primeiras sombras.
Tr�s ou quatro habitantes proclamam a sua salubridade ou o seu sossego. Os
vendedores ambulantes entram por ali como por terreno novo a conquistar. Aparece
a primeira reclama��o nos jornais contra a lama ou o capim. � o batismo. As
notas policiais contam que os gatunos deram num dos seus quintais. � a estr�ia
na celebridade, que exige o cal�amento ou o prolongamento da linha de bondes. E
insensivelmente, h� na mem�ria da produ��o, bem n�tida, bem pessoal, uma
individualidade topogr�fica a mais, uma individualidade que tem fisionomia e
alma.
Algumas dão
para malandras, outras para austeras; umas são pretensiosas, outras riem
aos transeuntes e o destino as conduz como conduz o homem, misteriosamente, fazendo-as
nascer sob uma boa estrela ou sob um signo mau, dando-lhes glórias e sofrimentos,
matando-as ao cabo de um certo tempo.
Oh! sim, as ruas têm
alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres,
delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história,
ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma
cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas,
spleenéticas,
snobs,
ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam
sem pinga de sangue...
Vede a Rua do Ouvidor. É a
fanfarronada em pessoa, exagerando, mentindo, tomando parte em tudo, mas desertando,
correndo os taipais das montras à mais leve sombra de perigo. Esse beco
inferno de pose, de vaidade, de inveja, tem a especialidade da bravata. E fatalmente
oposicionista, criou o boato, o "diz-se..." aterrador e o "fecha-fecha" prudente.
Começou por chamar-se Desvio do Mar. Por ela continua a passar para todos
os desvios muita gente boa. No tempo em que os seus melhores prédios se
alugavam modestamente por dez mil réis, era a Rua do Gadelha. Podia ser
ainda hoje a Rua dos Gadelhas, atendendo ao número prodigioso de poetas
nefelibatas que a infestam de cabelos e de versos. Um dia resolveu chamar-se do
Ouvidor sem que o senado da câmara fosse ouvido. Chamou-se como calunia,
e elogia, como insulta e aplaude, porque era preciso denominar o lugar em que
todos falam de lugar do que ouve; e parece que cada nome usado foi como a antecipação
moral de um dos aspectos atuais dessa irresponsável artéria da futilidade.
A
Rua da Misericórdia, ao contrário, com as suas hospedarias lôbregas,
a miséria, a desgraça das casas velhas e a cair, os corredores bafientos,
é perpetuamente lamentável. Foi a primeira rua do Rio. Dela partimos
todos nós, nela passaram os vice-reis malandros, os gananciosos, os escravos
nus, os senhores em redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a
flor da influência jesuítica. Índios batidos, negros presos
a ferros, domínio ignorante e bestial, o primeiro balbucio da cidade foi
um grito de misericórdia, foi um estertor, um ai! tremendo atirado aos
céus. Dela brotou a cidade no antigo esplendor do Largo do Paço,
dela decorreram, como de um corpo que sangra, os becos humildes e os coalhos de
sangue, que são as praças, ribeirinhas do mar. Mas, soluço
de espancado, primeiro esforço de uma porção de infelizes,
ela continuou pelos séculos afora sempre lamentável, e tão
augustiosa e franca e verdadeira na sua dor que os patriotas lisonjeiros e os
governos, ninguém, ninguém se lembrou nunca de lhe tirar das esquinas
aquela muda prece, aquele grito de mendiga velha: � Misericórdia!
Há
ruas que mudam de lugar, cortam morros, vão acabar em certos pontos que
ninguém dantes imaginara � a Rua dos Ourives; há ruas que, pouco
honestas no passado, acabaram tomando vergonha � a da Quitanda. Essa tinha mesmo
a mania de mudar de nome. Chamou-se do Açougue Velho, do lnácio
Castanheira, do Sucusarrará, do Tomé da Silva, que sei eu? Até
mesmo Canto do Tabaqueiro. Acabou Quitanda do Marisco, mas, como certos indivíduos
que organizam o nome conforme a posição que ocupam, cortou o marisco
e ficou só Quitanda. Há ruas, guardas tradicionais da fidalguia,
que deslizam como matronas conservadoras � a das Laranjeiras; há ruas lúgubres,
por onde passais com um arrepio, sentindo o perigo da morte � o Largo do Moura
por exemplo. Foi sempre assim. Lá existiu o Necrotério e antes do
Necrotério lá se erguia a Forca. Antes da autópsia, o enforcamento.
O velho largo macabro, com a alma de Tropmann e de Jack, depois de matar, avaramente
guardou anos e anos, para escalpelá-los, para chamá-los, para gozá-los,
todos os corpos dos desgraçados que se suicidam ou morrem assassinados.
Tresanda a crime, assusta. A Prainha também. Mesmo hoje, aberta, alargada
com prédios novos e a trepidação contínua do comércio,
há de vos dar uma impressão de vago horror. À noite são
mais densas as sombras, as luzes mais vermelhas, as figuras maiores. Por que terá
essa rua um aspecto assim? Oh! Porque foi sempre má, porque foi sempre
ali o Aljube, ali padeceram os negros dos três primeiros trapiches do sal,
porque também ali a forca espalhou a morte!
Há
entretanto outras ruas, que nascem íntimas, familiares, incapazes de dar
um passo sem que todas as vizinhas não saibam. As ruas de Santa Teresa
estão nestas condições. Um cavalheiro salta no Curvelo, vai
a pé até o França, e quando volta já todas as ruas
perguntam que deseja ele, se as suas tenções são puras e
outras impertinências íntimas. Em geral, procura-se o mistério
da montanha para esconder um passeio mais ou menos amoroso. As ruas de Santa Teresa,
é descobrir o par e é deitar a rir proclamando aos quatro ventos
o acontecimento. Uma das ruas, mesmo, mais leviana e tagarela do que as outras,
resolveu chamar-se logo Rua do Amor, e a Rua do Amor lá está na
freguesia de S. José. Será exatamente um lugar escolhido pelo Amor,
deus decadente? Talvez não. Há também na freguesia do Engenho
Velho uma rua intitulada Feliz Lembrança e parece que não a teve,
segundo a opinião respeitável da poesia anônima:
Na
Rua Feliz Lembrança Eu escapei por um triz De ser mandado à
tábua. Ai! que lembrança infeliz Tal nome pôr nesta
rua!
Há ruas que têm as blandícias de
Goriot e de Shylock para vos emprestar a juro, para esconder quem pede e paga
o explorador com ar humilde. Não vos lembrais da Rua do Sacramento, da
rua dos penhores? Uma aragem fina e suave encantava sempre o ar. Defronte à
igreja, casas velhas guardavam pessoas tradicionais. No Tesouro, por entre as
grades de ferro, uma ou outra cara desocupada. E era ali que se empenhavam as
jóias, que pobres entes angustiados iam levar os derradeiros valores com
a alma estrangulada de soluços; era ali que refluíam todas as paixões
e todas as tristezas, cujo lenitivo dependesse de dinheiro...
Há
ruas oradoras, ruas de meeting � o Largo do Capim que assim foi sempre,
o Largo de S. Francisco; ruas de calma alegria burguesa, que parecem sorrir com
honestidade � a Rua de Haddock Lobo; ruas em que não se arrisca a gente
sem volver os olhos para trás a ver se nos vêem �a Travessa da Barreira;
ruas melancólicas, da tristeza dos poetas; ruas de prazer suspeito próximo
do centro urbano e como que dele muito afastadas; ruas de paixão romântica,
que pedem virgens loiras e luar.
Qual de vós já
passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já
sentiu o mistério, o sono, o vício, as idéias de cada bairro?
A
alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias. Há
trechos em que a gente passa como se fosse empurrada, perseguida, corrida � são
as ruas em que os passos reboam, repercutem, parecem crescer, clamam, ecoam e,
em breve, são outros tantos passos ao nosso encalço. Outras que
se envolvem no mistério logo que as sombras descem � o Largo de Paço.
Foi esse largo o primeiro esplendor da cidade. Por ali passaram, na pompa dos
pálios e dos baldaquins d�ouro e púrpura, as procissões do
Enterro, do Triunfo, do Senhor dos Passos; por ali, ao lado da Praia do Peixe,
simples vegetação de palhoças, o comércio agitava
as suas primeiras elegâncias e as suas ambições mais fortes.
O largo, apesar das reformas, parece guardar a tradição de dormir
cedo. À noite, nada o reanima, nada o levanta. Uma grande revolução
morre no seu bojo como um suspiro; a luz leva a lutar com a treva; os próprios
revérberos parece dormitarem, e as sombras que por ali deslizam são
trapos da existência almejando o fim próximo, ladrões sem
pousada, imigrantes esfaimados... Deixai esse largo, ide às ruelas da Misericórdia,
trechos da cidade que lembram o Amsterdão sombrio de Rembrandt. Há
homens em esteiras, dormindo na rua como se estivessem em casa. Não nos
admiremos. Somos reflexos. O Beco da Música ou o Beco da Fidalga reproduzem
a alma das ruas de Nápoles, de Florença, das ruas de Portugal, das
ruas da África, e até, se acreditarmos na fantasia de Heródoto,
das ruas do antigo Egito. E por quê? Porque são ruas da proximidade
do mar, ruas viajadas, com a visão de outros horizontes.
Abri uma dessas
pocilgas que são a parte do seu organismo. Haveis de ver chineses bêbados
de ópio, marinheiros embrutecidos pelo álcool, feiticeiras ululando
canções sinistras, toda a estranha vida dos portos de mar. E esses
becos, essas betesgas têm a perfídia dos oceanos, a miséria
das imigrações, e o vício, o grande vício do mar e
das colônias...
Se as ruas são entes vivos,
as ruas pensam, têm idéias, filosofia e religião. Há
ruas inteiramente católicas, ruas protestantes, ruas livres-pensadoras
e até ruas sem religião. Trafalgar Square, dizia o mestre
humorista Jerome, não tem uma opinião teológica definitiva.
O mesmo se pode dizer da Praça da Concórdia de Paris ou da Praça
Tiradentes. Há criatura mais sem miolos que o Largo do Rocio? Devia ser
respeitável e austero. Lá, Pedro I, trepado num belo cavalo e com
um belo gesto, mostra aos povos a carta da independência, fingindo dar um
grito que nunca deu. Pois bem: não há sujeito mais pândego
e menos sério do que o velho ex-Largo do Rocio. Os seus sentimentos religiosos
oscilam entre a depravação e a roleta. Felizmente, outras redimem
a sociedade de pedra e cal, pelo seu culto e o seu fervor. A Rua Benjamin Constant
está neste caso, é entre nós um tremendo exemplo de confusão
religiosa. Solene, grave, guarda três templos, e parece dizer com circunspecção
e o ar compenetrado de certos senhores de todos nós conhecidos:
�
Faço as obras do Coração de Jesus, creio em Deus, nas orações,
nos bentinhos e só não sou positivista porque é tarde para
mudar de crença. Mas respeito muito e admiro Teixeira Mendes...
Nós,
os homens nervosos, temos de quando em vez alucinações parciais
da pele, dores fulgurantes, a sensação de um contacto que não
existe, a certeza de que chamam por nós. As ruas têm os rolos, as
casas mal assombradas, e há até ruas possessas, com o diabo no corpo.
Em S. Luís do Maranhão há uma rua sonâmbula muito menos
cacete que a ópera célebre do mesmo nome. Essa rua é a Rua
de Santa Ana, a lady Macbeth da topografia. Deu-se lá um crime horrível.
Às dez horas, a rua cai em estado sonambúlico e é só
gritos, clamores: sangue! sangue!
Ruas assim ainda mostram
o que pensam. Talvez as outras tenham maiores delírios, mas são
como os homens normais � guardam dentro do cérebro todos os pensamentos
extravagantes. Quem se atreveria a resumir o que num minuto pensa de mal, de inconfessável,
o mais honesto cidadão? Entre as ruas existem também as falsas,
as hipócritas, com a alma de Tartufo e de Iago. Por isso os grandes mágicos
do interior da África Central, que dos sertões adustos levavam às
cidades inglesas do litoral sacos d�ouro em pó e grandes macacos tremendos,
têm uma cantiga estranha que vale por uma sentença breve de Catão:
O
di ti a uê, chê F�u, a uá ny Odé, odá,
bi ejô Sa lo dê
Sentença que
em eubá, o esperanto das hordas selvagens, quer dizer apenas isto:
rua foi feita para ajuntamentos. Rua é como cobra. Tem veneno. Foge da
rua!
Mas o importante, o grave, é ser a rua a causa
fundamental da diversidade dos tipos urbanos. Não sei se lestes um curioso
livro de E. Demolins, Comment la route crée le type social. É
uma revolução no ensino da Geografia. "A causa primeira e decisiva
da diversidade das raças, diz ele, é a estrada, o caminho que os
homens seguirem. Foi a estrada que criou a raça e o tipo social. Os grandes
caminhos do globo foram, de qualquer forma, os alambiques poderosos que transformaram
os povos. Os caminhos das grandes estepes asiáticas, das tundras siberianas,
das savanas da América ou das florestas africanas insensivelmente e fatalmente
criaram o tipo tártaro-mongol, o lapão-esquimó, o pele-vermelha,
o índio, o negro".
A rua é a civilização
da estrada. Onde morre o grande caminho começa a rua, e, por isso, ela
está para a grande cidade como a estrada está para o mundo. Em embrião,
é o princípio, a causa dos pequenos agrupamentos de uma raça
idêntica. Daí, em muitos sítios da terra as aldeias terem
o único nome de rua. Quando aumentam e crescem depois, ou pela devoção
da maioria dos habitantes ou por uma impressão de local, acrescentam ao
substantivo rua o complemento que das outras as deve diferençar. Em Portugal
esse fato é comum. Há uma aldeia de 700 habitantes no Minho que
se chama modestamente Rua de S. Jorge, uma outra no Douro que é a Rua da
Lapela, e existem até uma Rua de Cima e uma Rua de Baixo.
Nas
grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral dos seus habitantes,
a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos, opiniões
políticas. Vós todos deveis ter ouvido ou dito aquela frase:
�
Como estas meninas cheiram a Cidade Nova!
Não é
só a Cidade Nova, sejam louvados os deuses! Há meninas que cheiram
a Botafogo, a Haddock Lobo, a Vila Isabel, como há velhas em idênticas
condições, como há homens também. A rua fatalmente
cria o seu tipo urbano como a estrada criou o tipo social. Todos nós conhecemos
o tipo do rapaz do Largo do Machado: cabelo à americana, roupas amplas
à inglesa, lencinho minúsculo no punho largo, bengala de volta,
pretensões às línguas estrangeiras, calças dobradas
como Eduardo VII e toda a snobopolis do universo. Esse mesmo rapaz, dadas
idênticas posições, é no Largo do Estácio inteiramente
diverso. As botas são de bico fino, os fatos em geral justos, o lenço
no bolso de dentro do casaco, o cabelo à meia cabeleira com muito óleo.
Se formos ao Largo do Depósito, esse mesmo rapaz usará lenço
de seda preta, forro na gola do paletot, casaquinho curto e calças
obedecendo ao molde corrente na navegação aérea � calças
à balão.
Esses três rapazes da mesma
idade, filhos da mesma gente honrada, às vezes até parentes, não
há escolas, não há contactos passageiros, não há
academias que lhes tranformem o gosto por certa cor de gravatas, a maneira de
comer, as expressões, as idéias � porque cada rua tem um stock
especial de expressões, de idéias e de gostos. A gente de Botafogo
vai às "primeiras" do Lírico, mesmo sem ter dinheiro. A gente de
Haddock Lobo tem dinheiro mas raramente vai ao Lírico. Os moradores da
Tijuca aplaudem Sarah Bernhardt como um prodígio. Os moradores da Saúde
amam enternecidamente o Dias Braga. As meninas das Laranjeiras valsam ao som das
valsas de Strauss e de Berger, que lembram os cassinos da Riviera e o esplendor
dos kursaals. As meninas dos bailes de Catumbi só conhecem as novidades
do senhor Aurélio Cavalcante. As conversas variam, o amor varia, os ideais
são inteiramente outros, e até o namoro, essa encantadora primeira
fase do eclipse do casamento, essa meia ação da simpatia que se
funde em desejo, é abolutamente diverso. Em Botafogo, à sombra das
árvores do parque ou no grande portão, Julieta espera Romeu, elegante
e solitária; em Haddock Lobo, Julieta garruleia em bandos pela calçada;
e nas casas humildes da Cidade Nova, Julieta, que trabalhou todo o dia pensando
nessa hora fugace, pende à janela o seu busto formoso...
Oh!
sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos. Um cidadão
que tenha passado metade da existência na Rua do Pau Ferro não se
habitua jamais à Rua Marquês de Abrantes! Os intelectuais sentem
esse tremendo efeito do ambiente, menos violentamente, mas sentem. Eu conheci
um elegante barão da monarquia, diplomata em perpétua disponibilidade,
que a necessidade forçara a aceitar de certo proprietário o quarto
de um cortiço da Rua Bom Jardim. O pobre homem, com as suas poses à
Brummell, sempre de monóculo entalado, era o escândalo da rua. Por
mais que saudasse as damas e cumprimentasse os homens, nunca ninguém se
lembrava de o tratar senão com desconfiança assustada. O barão
sentia-se desesperado e resumira a vida num gozo único: sempre que podia,
tomava o bonde de Botafogo, acendia um charuto, e ia por ali altivo, airoso, com
a velha redingote abotoada, a "caramela" de cristal cintilante... Estava no seu
bairro. Até parece, dizia ele, que as pedras me conhecem!
As
pedras! As pedras são a couraça da rua, a resistência que
elas apresentam ao novo transeunte. Refleti que nunca pisastes pela primeira vez
uma rua de arrabalde sem que o vosso passo fosse hesitante como que, inconscientemente,
se habituando ao terreno; refleti nessas coisas sutis que a vida cria, e haveis
de compreender então a razão por que os humildes limitam todo o
seu mundo à rua onde moram, e por que certos tipos, os tipos populares,
só o são realmente em determinados quarteirões.
As
ruas são tão humanas, vivem tanto e formam de tal maneira os seus
habitantes, que há até ruas em conflito com outras. Os malandros
e os garotos de uma olham para os de outra como para inimigos. Em 1805, há
um século, era assim: os capoeiras da Praia não podiam passar por
Santa Luzia. No tempo das eleições mais à navalha que à
pena, o Largo do Machadinho e a Rua Pedro Américo eram inimigos irreconciliáveis.
Atualmente a sugestão é tal que eles se intitulam povo. Há
o povo da Rua do Senado, o povo da Travessa do mesmo nome, o povo
de Catumbi. Haveis de ouvir, à noite, um grupo de pequenos valentes
armados de vara:
� Vamos embora! O povo da Travessa
está conosco.
É a Rua do Senado que, aliada
à Travessa, vai sovar a Rua Frei Caneca...
Como outrora
os homens, mais ou menos notáveis, tomavam o nome da cidade onde tinham
nascido � Tales de Mileto, Luciano de Samosata, Epicarmo de Alexandria � os chefes
da capadoçagem juntam hoje ao nome de batismo o nome da sua rua.
Há o José do Senado, o Juca da Harmonia, o Lindinho do Castelo,
e ultimamente, nos fatos do crime, tornaram-se célebres dois homens, Carlito
e Cardosinho, só temidos em toda a cidade, cheia de Cardosinhos e de Carlitos,
porque eram o Carlito e o Cardosinho da Saúde. Direis que é uma
observação puramente local? Não, cem vezes não! Em
Paris, a Ville-Lumière, os bandos de assassinos tomam freqüentemente
o nome da rua onde se organizaram; em Londres há ruas dos bairros trágicos
com esse predomínio, e na própria história de Bizâncio
haveis de encontrar ruas tão guerreiras que os seus habitantes as juntavam
ao nome como um distintivo.
E assim os tipos populares.
Tive o prazer de conhecer dois desses tipos, em que mais
vivamente se exteriorizava a influência psicológica da rua: o Pai
da Criança e a Perereca.
O Pai da Criança
estava deslocado, na decadência. Esse ser repugnante nascera como uma depravação
da Rua do Ouvidor. Quando o vi doente, nas tascas da Rua Frei Caneca, como já
não estava na sua rua, não era mais notável. Os garotos já
não riam dele, ninguém o seguia, e o nojento sujeito conversava
nas bodegas, como qualquer mortal, da gatunice dos governos. Só fui descobrir
a sua celebridade quando o vi em plena Ouvidor, cheio de fitas, vaiado, cuspindo
insolências, inconcebível de descaro e de náusea. A Perereca,
ao contrário. Na Rua do Ouvidor seria apenas uma preta velha. Na Rua Frei
Caneca era o regalo, o delírio, a extravagância. Os malandrins corriam-lhe
ao encalço atirando-lhe pedras, os negociantes chegavam às portas,
todas as janelas iluminavam-se de gargalhadas. E por quê? Porque esses tipos
são o riso das ruas e assim como não há duas pessoas que
riam do mesmo modo não há duas ruas cujo riso seja o mesmo.
Se
a rua é para o homem urbano o que a estrada foi para o homem social, é
claro que a preocupação maior, a associada a todas as outras idéias
do ser das cidades, é a rua. Nós pensamos sempre na rua. Desde os
mais tenros anos ela resume para o homem todos os ideais, os mais confusos, os
mais antagônicos, os mais estranhos, desde a noção de liberdade
e de difamação � idéias gerais � até a aspiração
de dinheiro, de alegria e de amor, idéias particulares. Instintivamente,
quando a criança começa a engatinhar, só tem um desejo: ir
para a rua! Ainda não fala e já a assustam: se você for para
a rua encontra o bicho! Se você sair apanha palmadas! Qual! Não há
nada! É pilhar um portão aberto que o petiz não se lembra
mais de bichos nem de pancadas!
Sair só é
a única preocupação das crianças até uma certa
idade. Depois continuar a sair só. E quando já para nós esse
prazer se usou, a rua é a nossa própria existência. Nela se
fazem negócios, nela se fala mal do próximo, nela mudam as idéias
e as convicções, nela surgem as dores e os desgostos, nela sente
o homem a maior emoção.
Quando se encontra
o amor Na rua, sem o saber...
� Ponho-o no olho da rua!
brada o pai ao filho no auge da fúria.
Aí
está a rua como expressão da maior calamidade.
�
Você está em casa, venha para a rua se é gente!
Aí
temos a rua indicando sítio livre para a valentia a substituir o campo
de torneio medieval.
� É mais deslavado que as pedras
da rua!
Frase em que se exprime uma sem-vergonhice inconcebível.
�
É mais velho que uma rua!
Conceito talvez errado
porque há ruas que morrem moças.
Às
vezes até a rua é a arma que fere e serve de elogio conforme a opinião
que dela se tem.
� Ah! minha amiga! Meu filho é muito
comportado. Já vai à rua sozinho...
� Ah!
meninas, o filho de d. Alice está perdido! Pois se até anda sozinho
na rua!
E a rua, impassível, é o mistério,
o escândalo, o terror...
Os políticos vivem
no meio da rua aqui, na China, em Tombuctu, na França; os presidentes de
república, os reis, os papas, no pavor de uma surpresa da rua � a bomba,
a revolta; os chefes de polícia são os alucinados permanentes das
ruas; todos quantos querem subir, galgar a inútil e movediça montanha
da glória, anseiam pelo juízo da rua, pela aprovação
da via pública, e há na patologia nervosa uma vasta parte em que
se trata apenas das moléstias produzidas pela rua, desde a neurastenia
até à loucura furiosa. E que a rua chega a ser a obsessão
em que se condensam todas as nossas ambições. O homem, no desejo
de ganhar a vida com mais abundância ou maior celebridade, precisava interessar
à rua. Começou pois fazendo discursos em plena ágora, discursos
que, desde os tempos mais remotos aos meetings contemporâneos da
estátua de José Bonifácio, falam sempre de coisas altivas,
generosas e nobres. Um belo dia, a rua proclamou a excelente verdade: que as palavras
leva-as o vento. Logo, nós assustados, imaginamos o homem-sandwich,
o cartaz ambulante; mandamos pregar-lhe, enquanto dorme, com muita goma e
muita ingenuidade, os cartazes proclamando a melhor conserva, o doce mais gostoso,
o ideal político mais austero, o vinho mais generoso, não só
em letras impressas mas com figuras alegóricas, para poupar-lhe o trabalho
de ler, para acariciar-lhe a ignorância, para alegrá-la. Como se
não bastassem o cartaz, a lanterna mágica, o homem-sandwich,
desveladamente, aos poucos, resolvemos compor-lhe a história e fizemos
o jornal � esse formidável folhetim-romance permanente, composto de verdades,
mentiras, lisonjas, insultos e da fantasia dos Gaboriau que somos todos nós...
Há
uma estética da rua, afirmou Bulls. Sim. Há. Porque as atrizes de
fama, os oradores mais populares, os hércules mais cheios de força,
os produtos mais evidentes dos blocos comerciais, vivem de procurar agradá-la.
Desse orgulho transitório surgiu para a rua a glória policroma da
arte. O temor de serem esquecidos criou para cada uma a roupagem variada, encheu-as
como Melusinas de pedra, como fadas cruéis que se teme e se satisfaz, de
vestidos múltiplos, de cores variegadas, de fanfreluches de papel, da ardência
fulgurante das montras de cambiantes luzentes; deu-lhes uma perpétua apoteose
de sacrifício à espera do milagre do lucro ou da popularidade. A
estética, a ornamentação das ruas, é o resultado do
respeito e do medo que lhes temos...
No espírito
humano a rua chega a ser uma imagem que se liga a todos os sentimentos e serve
para todas as comparações. Basta percorrer a poesia anônima
para constatar a flagrante verdade. É quase sempre na rua que se fala mal
do próximo. Folheemos uma coleção de fados. Lá está
a idéia:
Adeus, ó Rua Direita Ó
Rua da Murmuração. Onde se faz audiência Sem juiz
nem escrivão.
Aliás muito tímida, como
devendo ser cantada por quem tem culpa no cartório. Mas, se um apaixonado
quer descrever o seu peito, só encontra uma comparação perfeita.
O
meu peito é uma rua Onde o meu bem nunca passa, É a rua
da amargura Onde passeia a desgraça.
Se sente
o apetite de descrever, os espécimens são sem conta.
Na
rua do meu amor Não se pode namorar: De dia, velhas à porta,
De noite, cães a ladrar.
E é suave lembrar
aquele sonhador que, defronte da janela da amada e desejando realizar o impossível
para lhe ser agradável, só pôde sussurrar esta vontade meiga:
Se
esta rua fosse minha Eu mandava ladrilhar De pedrinhas de brilhante
Para meu bem passar.
O povo observa também, e diz
mais numa quadra do que todos nós a armar o efeito de períodos brilhantes.
Sempre recordarei um tocador de violão a cantar com lágrimas na
voz como diante do inexorável destino:
Vista Alegre
é rua morta A Formosa é feia e brava A Rua Direita é
torta A do Sabão não se lava...
Toda a
psicologia das construções e do alinhamento em quatro versos! A
rua chega a preocupar os loucos. Nos hospícios, onde esses cavalheiros
andam doidos por se ver cá fora, encontrei planos de ruas ideais, cantores
de rua, e um deles mesmo chegou a entregar-me um longo poema que começava
assim:
A rua... Cumprida, cumprida, atua... Olê!
complicada, complicada, alua A rua Nua!
Essa idéia
reflete-se nas religiões, nos livros sagrados, na arte de todos os tempos,
cada vez mais afiada, cada vez mais sensível. Na literatura atual a rua
é a inspiração dos grandes artistas, desde Victor Hugo, Balzac
e Dickens, até às epopéias de Zola, desde o funambulismo
de Banville até o humorismo de Mark Twain. Não há um escritor
moderno que não tenha cantado a rua. Os sonhadores levam mesmo a exagerá-la,
e hoje, devido certamente à corrente socialista, há toda uma literatura
em que a alma das ruas soluça. Os poetas refinados levam a mórbida
inspiração a cantar os aspectos parciais da rua. Como os românticos
cantavam os pés, os olhos, a boca e outras partes do corpo das apaixonadas,
eles cantam o semblante das casas vazias, os revérberos de gás como
Rodenbach:
Le dimanche, en semaine, et par tous les temps
L�un est debout, un autre, il semble, s�agenouille. Et chacun se sent seul
comme dans une foule. Les revérbéres des banlieues Sont
des cages oú des oiseaux déplient leurs queues.
Os
pregões, as calçadas, e houve até um � Mário Pederneiras
�que nos deu a sutilíssima e admirável psicologia das árvores
urbanas:
Com que magoado encanto Com que triste saudade
Sobre mim atua Esta estranha feição das árvores da rua.
E elas são, entretanto, A única ilusão rural de uma cidade!
As árvores urbanas São, em geral, conselheiras e frias
Sem as grandes expansões e as grandes alegrias Das provincianas.
Não têm sequer os plácidos carinhos Dessas largas
manhãs provinciais e enxutas. Nem a orquestra dos ninhos Nem a
graça vegetal das frutas.
Os artistas modernos já
não se limitam a exprimir os aspectos proteiformes da rua, a analisar traço
por traço o perfil físico e moral de cada rua. Vão mais longe,
sonham a rua ideal, como sonharam um mundo melhor. Williams Morris, por exemplo,
imaginou nas Novelas de parte alguma a rua socialista e rara, com edifícios
magníficos, sem mendigos e sem dinheiro. Rimbaud, nas Illuminations,
teve a idéia da rua babélica, reproduzindo nos edifícios,
sob o céu cinzento, todas as maravilhas clássicas da arquitetura.
Bellamy, no Locking Bockward, já sonhava o agrupamento dos grandes
armazéns; e hoje, entre essas ruas de sonho, que Gustavo Khan considera
as ruas utópicas e que talvez se tornem realidade um dia, é o estranho
e infernal sulco descrito por Wells na História dos tempos futuros,
rua em que tudo dependerá de sindicatos formidáveis, em que
tudo será elétrico, em que os homens, escravos de meia dúzia,
serão como os elos de uma mesma corrente arrastados pelo trabalho através
dos casarões.
Mas, a quem não fará
sonhar a rua? A sua influência é fatal na palheta dos pintores, na
alma dos poetas, no cérebro das multidões. Quem criou o reclamo?
A rua! Quem inventou a caricatura! A rua! Onde a expansão de todos os sentimentos
da cidade? Na rua! Por isso para dar a expressão da dor funda, o grande
poeta Bilac fez um dia:
A Avenida assombrada e triste da
saudade Onde vem passear a procissão chorosa Dos órfãos
do carinho e da felicidade.
E certo poeta árabe,
reconhecendo com a presciência dos vates que só a rua nos pode dar
a expressão do sofrimento absoluto como da alegria completa, escreveu a
celebrada Praça do riso ao nascer da aurora; o riso de cristal
das crianças, o riso perlado das mulheres, o riso grave dos homens a formar
um conjunto de tanta harmonia que as árvores também riam no canto
dos pássaros, e a própria umbela azul do céu se estriava
d�ouro no imenso riso do sol..
Neste elogio, talvez fútil,
considerei a rua um ser vivo, tão poderoso que consegue modificar o homem
insensivelmente e fazê-lo o seu perpétuo escravo delirante, e mostrei
mesmo que a rua é o motivo emocional da arte urbana mais forte e mais intenso.
A rua tem ainda um valor de sangue e de sofrimento: criou um símbolo universal.
Há ainda uma rua, construída na imaginação e na dor,
rua abjeta e má, detestável e detestada, cuja travessia se faz contra
a nossa vontade, cujo trânsito é um doloroso arrastar pelo enxurro
de uma cidade e de um povo. Todos acotovelam-se e vociferam aí, todos,
vindos da Rua da Alegria ou da Rua da Paz, atravessando as betesgas do Saco do
Alferes ou descendo de automóvel dos bairros civilizados, encontram-se
aí e aí se arrastam, em lamentações, em soluços,
em ódio à vida e ao Mundo. No traçado das cidades ela não
se ostenta com as suas imprecações e os seus rancores. É
uma rua esconsa e negra, perdida na treva, com palácios de dor e choupanas
de pranto, cuja existência se conhece não por um letreiro à
esquina, mas por uma vaga apreensão, um irredutível sentimento de
angústia, cuja travessia não se pode jamais evitar. Correi os mapas
de Atenas, de Roma, de Nínive ou de Babilônia, o mapa das cidades
mortas. Termas, canais, fontes, jardins suspensos, lugares onde se fez negócio,
onde se amou, lugares onde se se cultuaram os deuses � tudo desapareceu. Olhai
o mapa das cidades modernas. De século em século a transformação
é quase radical. As ruas são perecíveis como os homens. A
outra, porém, essa horrível rua de todos conhecida e odiada, pela
qual diariamente passamos, essa é eterna como o medo, a infâmia,
a inveja. Quando Jerusalém fulgia no seu máximo esplendor, já
ela lá existia. Enquanto em Atenas artistas e guerreiros recebiam ovações,
enquanto em Roma a multidão aplaudia os gladiadores triunfais e os césares
devassos, na rua aflitiva cuspinhava o opróbrio e chorava a inocência.
Cartago tinha uma rua assim, e ainda hoje Paris, New York, Berlim a têm,
cortando a sua alegria, empanando o seu brilho, enegrecendo todos os triunfos
e todas as belezas. Qual de vós não quebrou, inesperadamente, o
ângulo em arestas dessa rua? Se chorastes, se sofrestes a calúnia,
se vos sentistes ferido pela maledicência, podereis ter a certeza de que
entrastes na obscura via! Ah! Não procureis evita-la! Jamais o conseguireis.
Quanto mais se procura dela sair mais dentro dela se sofre. E não espereis
nunca que o mundo melhore enquanto ela existir. Não é uma rua onde
sofrem apenas alguns entes, é a rua interminável, que atravessa
cidades, países, continentes, vai de pólo a pólo; em que
se alanceiam todos os ideais, em que se insultam todas as verdades, onde sofreu
Epaminondas e pela qual Jesus passou. Talvez que extinto o mundo, apagados todos
os astros, feito o universo treva, talvez ela ainda exista, e os seus soluços
sinistramente ecoem na total ruína, rua das lágrimas, rua do desespero
� interminável rua da Amargura.
De
"A alma encantadora das ruas". Fonte: Funda��o
Biblioteca Nacional.
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