Gol de Placa

Jorge Lasperg

O cora��o parecia que ia sair pela boca. O velho Silva nem precisava ter perguntado se eu j� estava pronto, eu nem tinha dormido direito aquela noite, ansioso de chegar logo a hora de ir ao Maracan� pela primeira vez. Cheguei a sonhar que estava no meio da torcida, agitando minha bandeira, metro e dez por sessenta, pequena mesmo para os padr�es modestos da �poca, mas que parecia enorme para mim. Minha camisa do Flamengo, comprada na feira, desbotada e j� um pouco curta, tinha descosturado no sovaco esquerdo, eu mesmo consertei, linha branca porque n�o tinha outra, estava separada em cima da cama desde manh� cedinho, a bandeira rubro-negra de chita que minha av� fez, cabo de vassoura por mastro, enrolada e perfilada ao lado do guarda-roupa, meu uniforme e minha arma de paz aguardando a hora da batalha de alegria.

Meu av� havia prometido, fazia algum tempo, que me levaria ao Maracan� quando houvesse um jogo com motiva��o suficiente para faz�-lo deslocar-se da Ilha do Governador, onde mor�vamos, para l�. Naquele tempo, n�o existia a ponte nova do Gale�o, muito menos Linha Vermelha, isso sem falar no servi�o de �nibus que servia ao bairro, pra l� de prec�rio durante a semana, imagina ent�o num domingo. Aquele jogo contra o Santos parecia sob encomenda para ele. Matava as saudades do Maracan�, encontrava os velhos amigos da Charanga do Jaime, cumpria a promessa feita ao neto, via o Flamengo e, de quebra, o Pel�. Melhor seria imposs�vel.

Eu saiba de cor a escala��o dos dois times para aquele jogo. O Santos, o grande Santos, visitante ilustre, respeitado e temido, segundo time no cora��o de todos os brasileiros, formaria com Claudio, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Joel e Rildo; Clodoaldo e Nen�; Edu, Toninho, Pel� e Abel. O Flamengo, combalido, mal das pernas naquele campeonato nacional, apenas duas vit�rias magras por um a zero, um elenco bem mais modesto, mas Flamengo � Flamengo, iria de Claudinei, Murilo, Manicera, On�a e Paulo Henrique; Carlinhos e Liminha; Lu�s Carlos, Fio, Silva e Rodrigues Neto. Essa certamente n�o era uma das melhores forma��es que o Flamengo j� teve, mas at� que dava para se entusiasmar um pouco com a eleg�ncia do Carlinhos Violino, a habilidade do Silva Batuta e a ra�a do Paulo Henrique. E mais ainda com Pel�, Edu, Carlos Alberto, Clodoaldo, Toninho, Ramos Delgado, Joel... Talvez tenha sido exatamente nesse momento que meu av� percebeu como essa partida poderia frustrar e entristecer o cora��o do neto, pequeno torcedor. Porque, se para ele, adulto e calejado, qualquer derrota era suficiente para acabrunhar, imagina ent�o para um garoto que j� sinalizava como torcedor apaixonado e estava indo ao est�dio de futebol pela primeira vez. E isso era mais do que poss�vel, afinal o Flamengo n�o vinha bem naquele ano de 1968, e ia enfrentar nada menos que o Santos de Pel�. Quer dizer, uma derrota nesse jogo era mais do que prov�vel, e ele queria muito que a minha primeira vez no Maracan� fosse um momento m�gico, de alegria, nunca uma derrota. Tentando proteger-me de uma decep��o quase certa, sugeriu adiar o pagamento da promessa, veio com aquela conversa de cerca-louren�o, a gente podia ir no pr�ximo jogo, esse de hoje vai ser muito dif�cil, e � claro que eu n�o aceitei, de jeito nenhum, voc� prometeu, n�o importa se perder, eu quero ir hoje mesmo. E, para mim, naquele dia, o resultado do jogo era apenas um detalhe sem a menor import�ncia, o que eu queria era ir ao Maracan�, ver meu time de perto, o Flamengo, minha paix�o de menino, a m�stica da camisa que joga sozinha, que transforma derrotas inevit�veis em vit�rias imposs�veis, n�o importa a escala��o, eu quero � ver o Flamengo jogar. Sem nenhum outro argumento convincente para lan�ar m�o, o velho Silva capitulou, deu de ombros, ent�o t� certo, n�s vamos, mas se o Flamengo perder n�o diga que eu n�o avisei. Dei um grito de euforia. Foi quase imposs�vel para o velho disfar�ar a alegria de estar proporcionando aquela felicidade toda ao neto querido.

O velho �nibus engolia cada quil�metro daquela imensa Avenida Brasil com a voracidade que seu velho motor fumacento permitia. Fomos sentados naquele banco alto, bem em cima da roda traseira, sacolejando em cada buraco do asfalto, eu na janela, exibindo orgulhoso a pequena bandeira que tremulava, meu av� achava gra�a. "Sabe como � crian�a, a gente faz o que pode para agradar, presente, est�ria, passeio", dizia ele para o cobrador que fingia prestar aten��o, a haste esquerda dos �culos fundo de garrafa remendada com esparadrapo, camisa azul-claro de manga curta, gola pu�da, mancha de caf� escorrida pr�xima ao cerzido no bolso, na m�o esquerda as c�dulas dobradas ao comprido, separadas por valor, presas ao pai-de-todos e ao fura-bolo, uma unha enorme e encardida no dedo mindinho. "Falta muito, v�?", eu perguntava a cada cinco minutos daquela viagem intermin�vel. "Calma, rapaz", dizia o velho com serenidade, "calma que o melhor da festa � esperar por ela". Tentando atenuar um pouco minha ansiedade, ele me contava est�rias do Maracan�. Lembrou da primeira vez dele no Gigante do Derby, aquele dezesseis de junho fat�dico, meu Deus, perdemos a Copa em casa, tudo por causa do Bigode, alfesquerdo do Fluminense, aquele frouxo, levou um tabefe do Obd�lio Varela bem no meio das fu�as e deixou por isso mesmo, tinha que ter feito uma falta no Ghiggia antes dele entrar na �rea, entrou sozinho, chutou como quis, fraquinho, rasteiro, o frangueiro do Barbosa aceitou, n�o tive for�as nem pra chorar. Chegamos, me d� a m�o, vamos descer.

Atravessamos a Avenida Maracan� no sinal do viaduto Oduvaldo Cozzi. Eu nem piscava, n�o queria perder nada. Chegamos. O Maracan�, maior est�dio do mundo. O burburinho dos torcedores, Mengooo, Mengooo. E essa fila na bilheteria que n�o anda. O ingresso, meu passaporte para a felicidade, impresso em papel jornal azul, ADEG - Administra��o dos Est�dios da Guanabara, Federa��o Carioca de Futebol, Est�dio M�rio Filho, Torneio Roberto Gomes Pedrosa, Santos X Flamengo. A est�tua do Bellini, em p� sobre o globo terrestre, a ta�a "Jules Rimet" erguida � m�o direita, olhar altivo ao horizonte, muitos torcedores � volta, alguns olhavam impacientemente o rel�gio, esperando algum amigo atrasado, outros riam e brincavam, bebiam cerveja em copos de pl�stico. Um pequeno empurra-empurra nas catracas de acesso � rampa monumental, quase meu cachorro-quente Geneal cai no ch�o. Me d� o canhoto, mo�o, vou guardar de lembran�a. A subida da rampa, eu j� n�o ag�entando a emo��o, enfim o Maracan�, eu estava l�, eu estava l�, eu estava l�. Queria subir correndo, puxava o velho pela m�o, depressa, v�, depressa, o jogo j� come�ou, ele divertia-se com a minha afli��o. A escurid�o do estreito t�nel de acesso �s arquibancadas. Um torcedor mais alto bateu com a m�o numa placa de propaganda da Coca-Cola no alto do t�nel, gesto repetido por v�rios outros torcedores que vinham atr�s, provocando uma barulheira que s� aumentava minha excita��o. Desemboquei na arquibancada. O sol direto nos meu olhos. C�u azul de brigadeiro. O verde do gramado. O azul�o das cadeiras especiais, no meio delas contrastava o marrom dos assentos estofados da tribuna de honra, lugar para celebridades, at� a rainha da Inglaterra j� esteve l�. Logo abaixo estavam as cabines de r�dio, � l� que fica o Jorge Curi, meu narrador favorito, meu xar�, rubro-negro como eu, devia ter trazido meu bin�culo para ver a cara dele, A torcida agitando-se � esquerda das cadeiras especiais. A bola j� rolando no gramado, preliminar de infanto-juvenis, Flamengo e S�o Crist�v�o. Achei que o jogo principal j� tinha come�ado, ainda mais que o uniforme do S�o Crist�v�o era igualzinho ao do Santos, todo branquinho, o escudo tamb�m era bem parecido, at� o camisa dez do S�o Crist�v�o era um crioulo forte com aquele mesmo topete que o Pel� usa at� hoje. S� me convenci que n�o t�nhamos chegado atrasados quando vi o camisa dez do Flamengo, um lourinho franzino, bem diferente do Silva Batuta, camisa dez do time de cima, negro forte e lustroso. "Vamos l� para a Charanga ", disse meu av�. A Charanga do Jaime, primeira torcida organizada do Brasil, as cornetas mandando ver aquelas marchinhas do tempo do ronca, eu n�o conhecia direito, tar�-tar�-tar�-tat�, isto � o Z� Pereira, meu av� dizia, v� se pode, Z� Pereira, isso l� � nome de m�sica, eu queria era ouvir o hino do Flamengo, tocado logo em seguida. Cantamos o hino juntos. Enquanto caminh�vamos na dire��o da Charanga do Jaime, ia prestando aten��o naquele jogo, tanto quanto a circunst�ncia permitia. E nem pisquei quando o camisa dez do Flamengo, o tal russinho, entrou na �rea com a bola dominada, de t�o grudada no p� parecia amarrada ao cadar�o da chuteira, driblou tr�s zagueiros na corrida, enganou o goleiro com uma ginga de corpo, tocou para o gol vazio e correu em dire��o � torcida, bra�os abertos, vibrando, como ele vibrava, parecia um torcedor da geral, bem ali na minha frente, na altura de onde eu estava passando, como a dar-me boas vindas em minha inicia��o no Maracan�. Beleza de gol, jogada de craque, uma pintura. Gritei e desfraldei a pequena bandeira, agradecido. O velho Silva vinha distra�do, procurando algum amigo pelas arquibancadas, s� viu quando a bola j� estava na rede. Que gola�o, v�, que gola�o. "E isso � s� a preliminar, imagina s� quando come�ar o jogo principal, esse menino vai ter um tro�o", comentou, rindo, com aquele senhor mulato sentado diante dele, camisa do Flamengo mais surrada que a minha, de t�o curta e apertada deixava � mostra a enorme pan�a e uma respeit�vel h�rnia umbilical. Para mim, j� tinha valido o ingresso. Mas aquele gol foi realmente uma obra de arte.

J� na Charanga, meu av� me apresentava aos seus velhos companheiros de torcida, flamenguista orgulhoso, cheio de si. Eu ali, meio encabulado, entre tapinhas nas costas e sorrisos da velharada, virei meio que o mascote de todos eles, todos queriam me oferecer alguma coisa, um biscoito de polvilho, um copo de mate, um picol�. Fim da preliminar, ganhamos de um a zero, e aquele gol n�o sa�a da minha cabe�a, algu�m a� sabe o nome daquele garoto que fez o gol, acenos negativos com a cabe�a, ningu�m sabia, a maioria nem mesmo tinha visto o gol, preliminar de juvenis s� serve pra encher ling�i�a, passar o tempo, bom mesmo � o jogo principal, s� faltam dez minutos. Gandulas entrando em campo em fila indiana, uniforme azul, aquela rever�ncia ensaiadinha, alguns aplausos chochos. Nisso, a agita��o aumentou, o foguet�rio espoucava no c�u, desfraldavam-se os bandeir�es, chuva de papel picado, o Flamengo em campo, Paulo Henrique, capit�o do time, vinha � frente, ladeado por dois garotos mais ou menos da minha idade, vestidos com o uniforme completo do time, eu morrendo de inveja deles. Em seguida, entra o Santos, aplausos calorosos em vez dos apupos destinados a qualquer outro advers�rio, rever�ncia protocolar ao Rei e sua comitiva, que acenavam para a torcida rubro-negra em sinal de respeito e agradecimento. Nem a tradicional vaia para o trio de arbitragem foi marcante. "Agora sim, voc� vai ver um jogo de verdade, n�o uma pelada de garotos", disse o velho, antes de fazer o sinal da cruz e sentar. Bola rolando, sa�da deles, senta logo para n�o atrapalhar quem est� sentado atr�s de voc�.

N�o era preciso entender muito de futebol para perceber o abismo de talento que separava os dois times. Diante do Santos de Pel�, meu Flamengo era apenas um advers�rio tentando preservar ao m�ximo sua dignidade, consciente de estar lutando contra um oponente sabidamente mais forte. O olhar tenso e preocupado do velho Silva dispensava coment�rios. Fim do primeiro tempo, um a zero para eles, foi at� pouco. Apesar da velha m�stica da camisa rubro-negra, estava claro que, com o Santos de Pel�, isso n�o surtia muito efeito. E aquele gola�o do menino dos infanto-juvenis a repetir-se mais e mais na minha mente. Se ele entrasse nesse jogo o Santos ia ver o que � bom, comentei com meu av�. Sensibilizado com minha ingenuidade, p�s a m�o no meu ombro, n�o disse nada, como que preparando meu esp�rito para uma derrota que j� se concretizava em passos largos. Parecia arrependido de estar l�, n�o por ele, mas por mim, que presenciava uma derrota na minha primeira vez no Maracan�. Sentia-se respons�vel por minha frustra��o. Vai come�ar o segundo tempo, quem sabe uma bola alta na �rea, quem sabe um chute de longe, quem sabe um milagre, quem sabe.

Pouco depois do Santos fazer o segundo gol, meu av� levantou-se : "Vamos embora, s� faltam dez minutos, esse jogo j� est� perdido mesmo, a viagem de volta � longa". Obedeci. J� no �nibus de volta para casa, de novo a cena do gola�o do menino franzino na preliminar passava diante dos meus olhos. "Que pena que voc� n�o viu, v�, foi o gol mais bonito que eu j� vi na minha vida, se aquele garoto estivesse no time titular a gente n�o perdia", eu dizia com a minha inoc�ncia. Mais conformado, o velho abra�ou-me e disse com aquele brilho de sinceridade e emo��o em seu olhar : "Eu j� vivi muitas derrotas, algumas muito dif�ceis de digerir, e n�o morri por causa delas, assim como voc� tamb�m n�o vai morrer por causa do jogo de hoje. A minha maior tristeza n�o � o Flamengo ter perdido, � isso ter acontecido justamente no dia em que eu trago voc� ao Maracan� pela primeira vez", lamentou. "Mas n�s ganhamos a preliminar de juvenis, e foi com um gola�o", argumentei. "� verdade, � verdade", concordou, "e eu desejo do fundo do meu cora��o que a felicidade que voc� sentiu por aquele gol do menino, um �nico golzinho sem import�ncia, que quase ningu�m prestou aten��o, mas que te encantou tanto, se repita muitas e muitas vezes. Quem sabe esse menino cresce, vira um craque e te enche o cora��o de felicidade em muitos outros jogos. Est� bem assim ?", "Claro, v� ! Toca aqui !", disse, estendendo minha m�o para ele. Ele deu uma sonora gargalhada e apertou minha pequena m�o. Desfraldei a bandeira, fomos felizes para casa cantando o hino do Flamengo, parecia at� que comemor�vamos uma vit�ria.

Hoje, depois de tantos anos, eu revejo as fotos daquele menino franzino, o Zico, aquele mesmo do gola�o que pouca gente reparou naquela preliminar de infanto-juvenis, que cresceu e virou o maior patrim�nio da torcida rubro-negra em todos os tempos, erguendo o trof�u de Campe�o Mundial Interclubes em T�quio em 1981, e lembro do velho Silva com saudades e gratid�o por aquele dia em que ele me levou ao Maracan� para ver meu primeiro jogo de futebol.


Jorge Lasperg � Analista de Sistemas