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A Escola Estadual
de Dan�as Maria Olenewa, antiga Escola de Dan�as Cl�ssicas do Theatro Municipal
do Rio de Janeiro, est� completando 80 anos. � mais antiga institui��o oficial
do pa�s e raz�o suficiente para eu afirmar que a alma brasileira do ballet
cl�ssico � carioca.
O ballet cl�ssico chegou aqui no rastro da Fam�lia Real, em 1810, de acordo com o formid�vel livro
de Eduardo Sucena �A Dan�a Teatral no Brasil�. Respeitada ou n�o, amada ou n�o,
tivemos uma corte europ�ia e com ela os costumes, arremedados ou n�o, que
vieram com ela. Em 1811 temos o registro do primeiro espet�culo coreografado
pelo franco-espanhol Louis Lacombe.
A universalidade do ballet foi assimilada por uma sociedade que acabou por constituir a �nica
cidade realmente cosmopolita do Brasil: o Rio de Janeiro.
O fato hist�rico � que, at� 1883, acusa-se a presen�a da Casa de Bragan�a, com pinceladas de
Habsburgos cultos e amantes da arte, em espet�culos de ballet. �Excelcior�, uma
esp�cie de ballet/musical que colocava em cena 345 artistas, foi vista mais de
uma vez pelos imperadores.
A palavra �baderna�, com esse sentido de confus�o, arrua�a, s� existe no portugu�s do
Brasil. Isso por causa dos partid�rios da bailarina italiana Maria Baderna, por
quem a juventude se apaixonou desde sua chegada, em 1849. Defendendo-a de
rivais, brigando por causa dela na rua, formando quase que um partido, os
badernistas, eles contribu�ram para que o sobrenome da ousada bailarina, que
estreou no c�lebre ballet �Giselle� mas que teria sido a primeira a dan�ar um
lundu no palco, entrasse para o Aur�lio.
E tal fato n�o �
significativo?
� verdade que os
milicos da Rep�blica n�o pareceram muito entusiasmados por arte c�nica. Alguma
poesia, m�sica, era quanto bastava como atividade cultural, para marechais e
outras patentes menores.
Mas o costume de
ver ballet parece ter se enraizado entre os cariocas. Viagens de fam�lias ricas
� Europa, onde o ballet come�ava a fazer parte da educa��o de granfinos, vaidade
de desejar ter que as filhas tivessem �uma postura elegante�, n�o precisou muito
mais que isso para que se mantivessem funcionando, no in�cio do s�culo XX
acanhadas academias. Col�gios como o Anglo Americano, em 1920, j� ofereciam
aulas de ballet a jovens que eram, em geral, levadas por suas preceptoras ao
col�gio apenas para essas aulas; sequer estudavam fora de casa. O professor? O
russo Ricardo Nemanoff.
E o Rio
modernizava-se. O Theatro Municipal fora constru�do em 1909 e, embora n�o
tivesse contado com ballet em sua inaugura��o, quatro anos mais tarde, em 1913,
recebera para inesquec�vel temporada os c�lebres �Ballets Russes de Diaghilev�(1)
apresentando todas as suas grandes estrelas, inclusive o m�tico bailarino Vaslav
Nijinski. Ele voa, n�o voa, p�ra ou na p�ra no ar? Nada disso importava; o
p�blico n�o esqueceu aquele artista genial e aquela companhia.
Foi o in�cio de
uma tradi��o que nunca mais foi interrompida. Pelo Theatro Municipal do Rio
passaram os maiores bailarinos do mundo em todas as �pocas, de Isadora Duncan e
Anna Pavlova a Rudolf Nureyev, Mikhail Barishnikov e Natalia Makarova.
Curiosidades j�
entravam para a hist�ria da cidade. Duncan teria dito que, ao chegar ao Rio
encontrara o Para�so, depois do inferno de Buenos Aires e do purgat�rio de
Montevid�u. Comunista e libert�ria, fora mal recebida nos dois pa�ses. Nijinski
ficara noivo no Rio, comprara suas alian�as na rua do Ouvidor.
Em 1916 deu-se a
primeira tentativa de criar nossa escola oficial. N�o vingou, como n�o vingaram
as de 1924 e 1926. Mas, em 1927, no m�s de abril, dirigida pela bailarina russa
Maria Olenewa e contado com intensa campanha publicit�ria de M�rio Nunes pelo
Jornal do Brasil, foi criada a Escola de Dan�as Cl�ssicas, para funcionar numa
depend�ncia do Theatro Municipal.
A bem da verdade,
outros fatores contribu�ram para o sucesso da reivindica��o. A Argentina, que
tradicionalmente dividia conosco as despesas com a apresenta��o de �peras
inteiras com elenco estrangeiro, o que envolvia coro e corpo de baile, criara
sua pr�pria escola. Ou acompanh�vamos nosso vizinho portenho ou priv�vamos nosso
�high society� de espet�culos de grande porte, justamente para os quais o
Municipal fora constru�do.
Nada disso,
contudo, tira o m�rito dessa extraordin�ria Olenewa.
E quem foi ela?
Olenewa nasceu em
Moscou onde estudou. Deixando a R�ssia, integrou a companhia de Anna Pavlova,
quando veio pela primeira vez ao Brasil. Est�vamos em 1918. Antes de se radicar
definitivamente entre n�s Olenewa ainda nos visitou com a companhia de Massine
em 1921 e como core�grafa e primeira-bailarina em 1923 e 1924.
�...Hoje, j�
no terceiro mil�nio, considerando a luta dos artistas, sobretudo do bailarino
cl�ssico, para sobreviver com dignidade e mais, para ter o direito de optar pelo
ballet num pa�s onde a cultura chamada erudita � t�o desprestigiada e o ballet
n�o consta de nenhum discurso de ministro da �rea cultural, firma-se com mais
vigor e entusiasmo minha admira��o pela figura de Olenewa. N�o � dif�cil
imaginar as dificuldades para aqui iniciar uma atividade art�stica, encontrar
voca��es que a tudo superassem, das dificuldades materiais ao preconceito cruel,
convencer autoridades pouco esclarecidas da necessidade de uma atividade
permanente e oficial numa institui��o do governo com a finalidade de abrigar uma
arte de car�ter t�o universal e sem barreiras, mas t�o marginalizada quanto a
dan�a, especialmente o ballet, lan�ar as bases de um projeto que funcionasse a
curto, m�dio e longo prazos; de enfrentar diletantismo, amadorismo e
apadrinhamentos de quem quer ser artista sem a voca��o ou o talento para tal,
amparado na id�ia de que dinheiro e prest�gio compram tudo sem se dar conta de
que nada � mais democr�tico no seu processo seletivo do que a arte e o esporte,
e viver, ela pr�pria, Olenewa, com dificuldades financeiras. Tal deve ter sido a
sua batalha e, quando se olha para o presente, nem sempre se tem a convic��o de
que valeu a pena inteiramente... (Hist�ria da Dan�a � Evolu��o Cultural: Eliana
Caminada)�
A semente plantada pela
mestra germinou. O solo f�rtil, a facilidade para dan�ar inerente ao brasileiro
aliada a sua vira-latice, que o faz um entendedor e um reciclador de tudo que
lhe aparece, transformaram o ideal dela, Olenewa, numa indiscut�vel realidade. A
tal ponto que, quando a escola por ela fundada completa 80 anos, fica dif�cil
discorrer sobre o n�mero de grandes bailarinos, homens e mulheres, que formou e
continua formando. Para n�o ser injusta Excuso-me de destacar algum; poderia
cometer injusti�as. Mas preciso mencionar que a Escola estreou no mesmo ano de
sua funda��o j� cumprindo o papel de companhia, que foi oficializada em 1931 e
que em 1936 j� apresentava sua primeira primeira-bailarina brasileira, numa
hist�ria que se confunde com a da pr�pria companhia para o qual foi criada, o
Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Mais f�cil � relacionar as
tentativas de fechar a Escola, de negar sua import�ncia. Em 1948, com a morte
de um dos nossos primeiros-bailarinos, o estoniano/brasileiro Yuco Lindberg, que
acumulava o cargo de diretor da Escola, a institui��o quase acabou. Salvaram-na
os bailarinos e os alunos. Em 1963, a Escola foi desligada do Municipal passando
a chamar-se Escola de Dan�as do Estado da Guanabara, retornando � sua origem em
1965. Em 1975, novamente desligada do Theatro, integrou o Instituto Nacional das
Escolas de Arte com o estranho nome de Escola de Dan�as do INEART. Em 1977, a
diretora Lydia Costallat, ouviu do administrador do Theatro que o pr�dio da
Escola seria demolido e que n�o era problema dele se preocupar com seus 350
alunos.
Foi dif�cil.
Lydia fazia um tour di�rio pelo Rio, visitando cada turma que ficara
alojada, por obra e gra�a da generosidade dos que as acolheram, em in�meros
lugares que iam de Ipanema ao M�ier. At� o Canec�o entrou nessa dan�a. Um ano
depois uma casa foi encontrada. Estava caindo aos peda�os, mas era hist�rica e
ficava na Lapa, Como descobridores, a dire��o, os corpos docente e discente e os
pais dos alunos �tomaram posse� daquela que se tornaria a sua sede definitiva
(Deus nos ou�a).
Hoje, dirigida por Maria Lu�za Noronha, a velha casa sofreu obras que a transformaram
numa linda escola que hoje leva o nome de sua fundadora. Dela, Escola Maria
Olenewa, emana a atmosfera que caracteriza todas as escolas oficiais de ballet
do mundo: tranq�ilidade, disciplina acatada e amada pelos alunos, os peculiares
sons do piano que acompanham as aulas, do toc, toc, dos sapatos de ponta tocando
o ch�o, do gravador tocando a m�sica de algum ballet que est� sendo ensaiado.
Os alunos
brilham. Em 2006 conquistaram o maior pr�mio concedido pelo Festival de
Joinville, o mais conceituado do pa�s.
Onde reside a diferen�a? Na tradi��o. Ballet cl�ssico � tradi��o, ainda que prossiga,
amparado por seus extraordin�rios recursos, como uma arte viva da cria��o. Mas
seus criadores s�o todos oriundos dessa tradi��o, da secular hist�ria que o
ballet erigiu.
Pois amigos, essa tradi��o bal�tica � carioca. Ballet cl�ssico profissional no Brasil s�
existe aqui. Se voc� � de outra parte, mesmo do Estado do Rio, e quer mesmo ser
bailarino cl�ssico, ou se muda para c�, ou tem que deixar sua terra, sua
fam�lia, sua l�ngua, seus costumes, seus amores.
Sou uma bailarina (n�o existe ex-m�dico, logo nego-me a ser ex-bailarina; mas � o que
sou, a idade chega para todo mundo e gosto do meu anivers�rio) carioca;
considero, portanto, uma b�n��o dos c�us ter nascido aqui, ter podido viver no
Theatro Municipal do Rio, ter me formado pela Escola Estadual de Dan�as Maria
Olenewa. Salve ela!!!
(1) - Sergei Diaghilev, mecenas nascido em Kiev, foi uma das mais paradigm�ticas
figuras da hist�ria da arte do s�culo XX. Na sua companhia trabalharam de
Picasso, Matisse, Mir� a Stravinski, Prokofiev, entre in�meros outros,
passando por Jean Cocteau. Sem falar nos core�grafos Mikhail Fokine, Vaslav
nijinski, Leonid Massine, Bronislava Nijinska, George Balanchine e Serge
Lifar, todos russos, artistas cuja genialidade o mundo reverencia cada vez
mais. �Os Ballets Russes� constitu�ram-se numa epop�ia que seguramente n�o
ser� repetida. Jamais se conseguir� reunir tantos artistas geniais num �nico
projeto que durou 20 anos e influenciou todo o mundo ocidental.
Visite o site de Eliana Caminada:
https://www.elianacaminada.net/
Ao fundo: fragmento do Concerto n� 2 para piano de Frederic Fran�ois Chopin na
interpreta��o de Alexander Brailovski.
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