Edi��o de 31-mar-2007

 

Escola Estadual de Dan�as Maria Olenewa
80 anos de uma tradi��o carioca

Eliana Caminada


A Escola Estadual de Dan�as Maria Olenewa, antiga Escola de Dan�as Cl�ssicas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, est� completando 80 anos. �  mais antiga institui��o oficial do pa�s e raz�o suficiente para eu afirmar que a alma brasileira do ballet cl�ssico � carioca.

O ballet cl�ssico chegou aqui no rastro da Fam�lia Real, em 1810, de acordo com o formid�vel livro de Eduardo Sucena �A Dan�a Teatral no Brasil�. Respeitada ou n�o, amada ou n�o, tivemos uma corte europ�ia e com ela os costumes,  arremedados ou n�o, que vieram com ela. Em 1811 temos o registro do primeiro espet�culo coreografado pelo franco-espanhol Louis Lacombe.

A universalidade do ballet foi assimilada por uma sociedade que acabou por constituir a �nica cidade realmente cosmopolita do Brasil: o Rio de Janeiro.

O fato hist�rico � que, at� 1883, acusa-se a presen�a da Casa de Bragan�a, com pinceladas de Habsburgos cultos e amantes da arte, em espet�culos de ballet. �Excelcior�, uma esp�cie  de ballet/musical que colocava em cena 345 artistas, foi vista mais de uma vez pelos imperadores.

A palavra �baderna�, com esse sentido de confus�o, arrua�a, s� existe no portugu�s do Brasil. Isso por causa dos partid�rios da bailarina italiana Maria Baderna, por quem a juventude se apaixonou desde sua chegada, em 1849. Defendendo-a de rivais, brigando por causa dela na rua, formando quase que um partido, os badernistas, eles contribu�ram para que o sobrenome da ousada bailarina, que estreou no c�lebre ballet �Giselle� mas que teria sido a primeira a dan�ar um lundu no palco, entrasse para o Aur�lio.

E tal fato n�o � significativo?

� verdade que os milicos da Rep�blica n�o pareceram muito entusiasmados por arte c�nica. Alguma poesia, m�sica, era quanto bastava como atividade cultural, para marechais e outras patentes menores.

Mas o costume de ver ballet parece ter se enraizado entre os cariocas. Viagens de fam�lias ricas � Europa, onde o ballet come�ava a fazer parte da educa��o de granfinos, vaidade de desejar ter que as filhas tivessem �uma postura elegante�, n�o precisou muito mais que isso para que se mantivessem funcionando, no in�cio do s�culo XX acanhadas academias. Col�gios como o Anglo Americano, em 1920, j� ofereciam aulas de ballet a jovens que eram, em geral, levadas por suas preceptoras ao col�gio apenas para essas aulas; sequer estudavam fora de casa. O professor? O russo Ricardo Nemanoff.

E o Rio modernizava-se. O Theatro Municipal fora constru�do em 1909 e, embora n�o tivesse contado com ballet em sua inaugura��o, quatro anos mais tarde, em 1913, recebera para inesquec�vel temporada os c�lebres �Ballets Russes de Diaghilev�(1) apresentando todas as suas grandes estrelas, inclusive o m�tico bailarino Vaslav Nijinski. Ele voa, n�o voa, p�ra ou na p�ra no ar? Nada disso importava; o p�blico n�o esqueceu aquele artista genial e aquela companhia.

Foi o in�cio de uma tradi��o que nunca mais foi interrompida. Pelo Theatro Municipal do Rio passaram os maiores bailarinos do mundo em todas as �pocas, de Isadora Duncan e Anna Pavlova a Rudolf Nureyev, Mikhail Barishnikov e Natalia Makarova.

Curiosidades j� entravam para a hist�ria da cidade. Duncan teria dito que, ao chegar ao Rio encontrara o Para�so, depois do inferno de Buenos Aires e do purgat�rio de Montevid�u. Comunista e libert�ria, fora mal recebida nos dois pa�ses. Nijinski ficara noivo no Rio, comprara suas alian�as na rua do Ouvidor.

Em 1916 deu-se a primeira tentativa de criar nossa escola oficial. N�o vingou, como n�o vingaram as de 1924 e 1926. Mas, em 1927, no m�s de abril, dirigida pela bailarina russa Maria Olenewa e contado com intensa campanha publicit�ria de M�rio Nunes pelo Jornal do Brasil, foi criada a Escola de Dan�as Cl�ssicas, para funcionar numa depend�ncia do Theatro Municipal.

A bem da verdade, outros fatores contribu�ram para o sucesso da reivindica��o. A Argentina, que tradicionalmente dividia conosco as despesas com a apresenta��o de �peras inteiras com elenco estrangeiro, o que envolvia coro e corpo de baile, criara sua pr�pria escola. Ou acompanh�vamos nosso vizinho portenho ou priv�vamos nosso �high society� de espet�culos de grande porte, justamente para os quais o Municipal fora constru�do.

Nada disso, contudo, tira o m�rito dessa extraordin�ria Olenewa.

E quem foi ela?

Olenewa nasceu em Moscou onde estudou. Deixando a R�ssia, integrou a companhia de Anna Pavlova, quando veio pela primeira vez ao Brasil. Est�vamos em 1918.  Antes de se radicar definitivamente entre n�s Olenewa ainda nos visitou com a companhia de Massine em 1921 e como core�grafa e primeira-bailarina em 1923 e 1924.

�...Hoje, j� no terceiro mil�nio, considerando a luta dos artistas, sobretudo do bailarino cl�ssico, para sobreviver com dignidade e mais, para ter o direito de optar pelo ballet num pa�s onde a cultura chamada erudita � t�o desprestigiada e o ballet n�o consta de nenhum discurso de ministro da �rea cultural, firma-se com mais vigor e entusiasmo minha admira��o pela figura de Olenewa. N�o � dif�cil imaginar as dificuldades para aqui iniciar uma atividade art�stica, encontrar voca��es que a tudo superassem, das dificuldades materiais ao preconceito cruel, convencer autoridades pouco esclarecidas da necessidade de uma atividade permanente e oficial numa institui��o do governo com a finalidade de abrigar uma arte de car�ter t�o universal e sem barreiras, mas t�o marginalizada quanto a dan�a, especialmente o ballet, lan�ar as bases de um projeto que funcionasse a curto, m�dio e longo prazos; de enfrentar diletantismo, amadorismo e apadrinhamentos de quem quer ser artista sem a voca��o ou o talento para tal, amparado na id�ia de que dinheiro e prest�gio compram tudo sem se dar conta de que nada � mais democr�tico no seu processo seletivo do que a arte e o esporte, e viver, ela pr�pria, Olenewa, com dificuldades financeiras. Tal deve ter sido a sua batalha e, quando se olha para o presente, nem sempre se tem a convic��o de que valeu a pena inteiramente... (Hist�ria da Dan�a � Evolu��o Cultural: Eliana Caminada)�

A semente plantada pela mestra germinou. O solo f�rtil, a facilidade para dan�ar inerente ao brasileiro aliada a sua vira-latice, que o faz um entendedor e um reciclador de tudo que lhe aparece, transformaram o ideal dela, Olenewa, numa indiscut�vel realidade. A tal ponto que, quando a escola por ela fundada completa 80 anos, fica dif�cil discorrer sobre o n�mero de grandes bailarinos, homens e mulheres, que formou e continua formando. Para n�o ser injusta Excuso-me de destacar algum; poderia cometer injusti�as. Mas preciso mencionar  que a Escola estreou no mesmo ano de sua funda��o j� cumprindo o papel de companhia, que foi oficializada em 1931 e que em 1936 j� apresentava sua primeira primeira-bailarina brasileira, numa hist�ria que se confunde com a da pr�pria companhia para o qual foi criada, o Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Mais f�cil � relacionar as tentativas de  fechar a Escola, de negar sua import�ncia. Em 1948, com a morte de um dos nossos primeiros-bailarinos, o estoniano/brasileiro Yuco Lindberg, que acumulava o cargo de diretor da Escola, a institui��o quase acabou. Salvaram-na os bailarinos e os alunos. Em 1963, a Escola foi desligada do Municipal passando a chamar-se Escola de Dan�as do Estado da Guanabara, retornando � sua origem em 1965. Em 1975, novamente desligada do Theatro, integrou o Instituto Nacional das Escolas de Arte com o estranho nome de Escola de Dan�as do INEART. Em 1977, a diretora Lydia Costallat, ouviu do administrador do Theatro que o pr�dio da Escola seria demolido e que n�o era problema dele se preocupar com seus 350 alunos.

Foi dif�cil. Lydia fazia um tour di�rio pelo Rio, visitando cada turma que ficara alojada, por obra e gra�a da generosidade dos que as acolheram, em in�meros lugares que iam de Ipanema ao M�ier. At� o Canec�o entrou nessa dan�a. Um ano depois uma casa foi encontrada. Estava caindo aos peda�os, mas era hist�rica e ficava na Lapa, Como descobridores, a dire��o, os corpos docente e discente e os pais dos alunos �tomaram posse� daquela que se tornaria a sua sede definitiva (Deus nos ou�a).

Hoje, dirigida por Maria Lu�za Noronha, a velha casa sofreu obras que a transformaram numa linda escola que hoje leva o nome de sua fundadora. Dela, Escola Maria Olenewa, emana a atmosfera que caracteriza todas as escolas oficiais de ballet do mundo: tranq�ilidade, disciplina acatada e amada pelos alunos, os peculiares sons do piano que acompanham as aulas, do toc, toc, dos sapatos de ponta tocando o ch�o, do gravador tocando a m�sica de algum ballet que est� sendo ensaiado.

Os alunos brilham. Em 2006 conquistaram o maior pr�mio concedido pelo Festival de Joinville, o mais conceituado do pa�s.

Onde reside a diferen�a? Na tradi��o. Ballet cl�ssico � tradi��o, ainda que prossiga, amparado por seus extraordin�rios recursos, como uma arte viva da cria��o. Mas seus criadores s�o todos oriundos dessa tradi��o, da secular hist�ria que o ballet erigiu.

Pois amigos, essa tradi��o bal�tica � carioca. Ballet cl�ssico profissional no Brasil s� existe aqui. Se voc� � de outra parte, mesmo do Estado do Rio, e quer mesmo ser bailarino cl�ssico, ou se muda para c�, ou tem que deixar sua terra, sua fam�lia, sua l�ngua, seus costumes, seus amores.

Sou uma bailarina (n�o existe ex-m�dico, logo nego-me a ser ex-bailarina; mas � o que sou, a idade chega para todo mundo e gosto do meu anivers�rio) carioca;  considero, portanto, uma b�n��o dos c�us ter nascido aqui, ter podido viver no Theatro Municipal do Rio, ter me formado pela Escola Estadual de Dan�as Maria Olenewa. Salve ela!!!

 

(1) - Sergei Diaghilev, mecenas nascido em Kiev, foi uma das mais paradigm�ticas figuras da hist�ria da arte do s�culo XX. Na sua companhia trabalharam de Picasso, Matisse, Mir� a Stravinski, Prokofiev, entre in�meros outros, passando por Jean Cocteau. Sem falar nos core�grafos Mikhail Fokine, Vaslav nijinski, Leonid Massine, Bronislava Nijinska, George Balanchine e Serge Lifar, todos russos, artistas cuja genialidade o mundo reverencia cada vez mais. �Os Ballets Russes� constitu�ram-se numa epop�ia que seguramente n�o ser� repetida. Jamais se conseguir� reunir tantos artistas geniais num �nico projeto que durou 20 anos e influenciou todo o mundo ocidental.

Visite o site de Eliana Caminada: https://www.elianacaminada.net/

Ao fundo: fragmento do Concerto n� 2 para piano de Frederic Fran�ois Chopin na interpreta��o de Alexander Brailovski.


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21-fev-2008