A DENTADURA DO CORONEL

Jos� Gra�a Filho

        "Botequim � esquina, bairro, refer�ncia urbana. � tribuna e morada. Nele, o imprevis�vel encontra fertilidade. Nele brotam congra�amento e debate. Solid�o e paix�o t�m boa acolhida. O botequim carioca projeta cordialidade e incorpora o esp�rito b�sico da Cidade de S�o Sebasti�o..."

        Quem assim se refere ao botequim carioca � Luiz Paulo Conde, Prefeito da cidade, ao introduzir o leitor nas p�ginas do "RIO BOTEQUIM", verdadeira pequena enciclop�dia dedicada, com certeza, �s pessoas de bom car�ter da terra pois, como bem lembrava amiga minha que n�o mais sei por onde anda, � bom se desconfiar do car�ter das pessoas que n�o freq�entam botequins, n�o dizem palavr�o e chamam a mulher de "minha senhora" (com "o" fechado) ou o marido de "meu esposo". Pessoas de bom car�ter e de bom senso, como n�s - que se registre -, n�o gostam dos milhares de litros de coc� que dia-a-dia invadem a Lagoa (com reflexos �bvios sobre a sa�de, o humor e os votos de leblonianos, ipanemenses e aderentes); n�o gostam da id�ia de se abrir um t�nel na pedra (quando � mais f�cil se abrir a cabe�a dos governantes para que ofere�am sistemas de transportes coletivos mais inteligentes e eficientes); e n�o gostam de shopping center em terreno doado a institui��o privada para finalidades bem definidas (e situado, ainda por cima, em local n�o apropriado para aquele tipo de estabelecimento).

        Hist�rias de botecos h� muitas (voc� mesmo deve conhecer alguma de um botequim ou restaurante qualquer deste Leblon) e, atendendo ao pedido do nosso Paulinho "Carioca", tomamos a ousadia de tornar p�blica a verdadeira vers�o de fato acontecido no saudoso Real Ast�ria (ainda hoje vivo no cora��o do Jesus, do Juan, do Betinho e de todos os seus amigos), templo de hist�rias e acontecimentos (uns reais, outros nem tanto, o que importa?) que acabaram se transformando em peda�os e lembran�as inesquec�veis nas vidas da maioria de seus freq�entadores.

        � o caso, por exemplo, do coronel, nosso querido irm�o que j� se foi para o andar de cima, que viu, numa sexta-feira � noitinha (e era ver�o), sua dentadura desaparecer entre duas caipirinhas de vodca com bastante a��car, algumas doses generosas de "steinhaeger" e n�o sei quantas e quantas tulipas muito bem tiradas pelo Betinho. Primeiro o grito seco, sa�do das entranhas do cora��o: "Cad� minha dentadura, meu Deus?". Depois o caminhar nervoso por entre as mesas, m�os em concha sobre o rosto a esconder a boca sem sorriso e, quem l� estava viu, na seq��ncia imediata, o grito rouco a mobilizar - com voz de comando que algu�m jamais imaginara pudesse dele partir (era do quadro de oficiais-m�dicos do Ex�rcito o nosso pacato coronel) - mais de uma dezena de gar�ons, gerentes, clientes (os da varanda e do sal�o, j� que o Baco ainda n�o estava funcionando �quela hora) e, por extens�o, toda a vizinhan�a do Real. O Leblon inteiro (era o que parecia naquele momento) encontrava-se empenhado em descobrir o destino da bendita dentadura, desaparecida de forma t�o r�pida e misteriosa.

        Amigo nosso, cujo nome n�o estou autorizado a declinar (encontrava-se, no momento, acompanhado da regra tr�s, que continua regra tr�s at� hoje, j� l� se v�o mais de vinte anos do fato), garante de m�os juntas que ouviu algu�m falar, l� pelas alturas do Jobi, em seq�estro da pr�tese. Soube-se, mais tarde, que dito seq�estro teria sido atribu�do ao Farol (1) por um outro flanelinha que com ele mantinha uma diverg�ncia por quest�es de ponto. Era evidente que n�o tinha cabimento tal vers�o, hip�tese remota, ali�s, j� que o coronel n�o andava muito bem de finan�as � �poca, o que tornaria improv�vel e, certamente, improdutivo um poss�vel resgate.

        Passa o tempo: uma hora, duas horas, nada de a maledeta dentadura aparecer. J� � noite e come�am a chegar os freq�entadores de sempre do Baco. Naquele ambiente, que se tornara mais do que carregado, os amigos que chegam (sempre havia amigos aportando ao Real) perguntam o que est� acontecendo com o coronel que, careca rubra a suar, olhos marejados, boca ainda escondida pelas m�os, continua a circular pelo sal�o do restaurante, mais certo que nunca da irremedi�vel perda de seu belo sorriso, conseguido a pre�o de ouro no consult�rio de um cirurgi�o-dentista famoso at� hoje nesta pra�a do Rio de Janeiro.

        Era de como��o o ambiente no Real.


        No in�cio, o barulho de uma mesa que se arrasta e depois cai. Logo em seguida, outras mesas se deslocam pelo sal�o como se conduzidas por m�os invis�veis. Da confus�o de cadeiras, mesas, pratos e toalhas que despencam e se espalham pelo ch�o desponta a figurinha mi�da da filha menor de nosso personagem (� �poca com seus quatro ou cinco anos de idade, hoje mulher feita, bem casada, m�e de duas crian�as lindas), a gaguejar, descontrolada, frases curtas em que se podia perceber, com um pouco de abstra��o e muito de boa vontade, que traziam boas not�cias. De fato, no toalete das senhoras, sorridente num cantinho discreto, estava a dentadura.

        Ningu�m, ningu�m mesmo, sabe bem como a maledeta / bendita conseguiu chegar �quele reconhecido reduto da maledic�ncia feminina freq�entadora da casa. Vers�o divulgada logo depois por um pau-d'�gua da �rea garante que ela foi mesmo sozinha (o qu� n�o acontecia naquele Real Astoria?), quando o nosso coronel, j� empolgado com o chope (acompanhado por doses generosas de "steinhaeger") e mais as duas caipirinhas (bastante a��car, lembram?), ingeriu (como � digno dos fortes) farta talagada de vodca polonesa leg�tima, gentilmente oferecida pelo Jesus, galego dos bons, que comemorava um gol do Barcelona sobre o Real Madrid. Improv�vel e injusta vers�o, j� que, como era do conhecimento dos amigos mais chegados, n�o havia qualquer incompatibilidade entre a dentadura do coronel e as bebidas citadas. Prova disso foi o acontecido meses antes no Le Coin (da Ataulfo de Paiva) e que deixamos para contar em outra oportunidade...

        Da pompa e circunst�ncia em que se transformou a devolu��o da dentadura a seu leg�timo dono quem melhor pode falar � o seu Manuel. Decano dos gar�ons � �poca, manteve-se ol�mpico, durante toda a confus�o, ao lado do pernil -exposto sempre no balc�o em diagonal ao caixa e que era gentilmente servido como tira-gosto aos fregueses mais queridos do Juan e do Jesus -, m�o esquerda na grade que dava para a uisqueria, olhar perdido em dire��o � parede de vidro que separava a varanda do sal�o, como se nada estivesse acontecendo.

        Foi ele que, em bandeja de prata coberta com guardanapo branco de linho, depositou, olimpicamente ainda, como se estivesse servindo a mais fina iguaria da casa, a dentadura na mesa do coronel.

        H� quem diga que o seu Manuel... Mas deixa isso p'r� l�.


(1) Menino de rua criado no chamado Final do Leblon e muito querido pela maioria dos moradores do local. Morto h� cerca de dez anos. Seu corpo apareceu mutilado numa cova aberta no Vidigal: "queima de arquivo", segundo as autoridades policiais. Caso n�o esclarecido.