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Quem escreve tem que , antes de tudo, saber dividir. O
texto retrata, ilustra, mostra, oferece. Um pouco de mim est� aqui. E o que sou
neste dia? Eu sou o samba, e sou natural aqui do Rio de Janeiro. Mas me reporto
aos tempos em que vivi esta carioquice em S�o Paulo, quando encontrei, ou fui
encontrada, por um senhor idoso e menino, moleque que dizia ter no nome
qualidades que nunca teve na alma, dizia que era quietinho, Z� Quietinho, Z�
Ketti.
Conheci-o
em uma tarde fria da paulic�ia, pelo menos � assim que me lembro,li letras e ouvi composi��es in�ditas, que
acredito nunca mais algu�m ter� a oportunidade de ouvir, pois Z�, como grande
parte dos g�nios, estava mais preocupado em criar do que em cuidar da cria.
Gestava, no pecado sagrado da cria��o, filhos que paridos davam lugar a outras
can��es.
Comecei
o texto falando de mim, ou melhor, do Z�, para ser mais exata � do samba. E
para continuar tenho que me lembrar das conversas prazerosas, onde o Z�
Kettinho, de quem eu fui realmente amiga, se exibia num passado ilustre
contando a hist�ria do Rio de Janeiro atrav�s da vida no Zicartola, na
descri��o hipot�tica do sabor da comida de Dona Zica, nos tempos em que a
Portela era a vida, na experi�ncia cultural e pol�tica de outros tempos, no Caf�
Nice onde Francisco Alves lhe falou, nas mulheres, nas Dinas, nas trai��es,
enfim, num estilo de vida po�tico, onde cada acorde, cada nota, cada melodia,
era talento e samba.
Z�
vivia cercado de fantasmas, sabia disso, mas mesmo assim era muito medroso.
Lembro-me de ter colocado uma mensagem em minha secret�ria eletr�nica, onde
antes de entrar a minha voz, entrava uma m�sica �Diz que eu fui por a�, que �
uma composi��o do pr�prio Z� Ketti, cantada por Nara Le�o. No final do dia, ao
ouvir as mensagens me assustei, haviam alguns minutos da fala desconcertada do
Z�, que conclu�ra que Nara havia vindo
do al�m para cantar para ele. E ficou registrado na fita algo assim: �Ai meu
Deus, a Nara no telefone. Ai meu Deus ela veio falar comigo�. Coitado, acho que
ficou confuso, algo entre o decepcionado e aliviado quando lhe expliquei o que
ocorrera, o que era aquela �alma� a lhe cantar.
Lembro-me
do desentendimento, da m�goa, de mim triste, do samba, da aus�ncia do seu
som. Z� era quietinho, mas n�o pensava
antes de arranjar problemas com alguns. Desta feita eu havia sido a escolhida.
Mais tarde, seu antigo parceiro, Elton Medeiros me disse que j� devia ser a
doen�a a lhe atrapalhar os pensamentos. Acho que era. Devia ser. Mas o tempo
passou e a m�goa cristalizou. Ouvi algumas can��es que o Z� Renato gravou;
fiquei sabendo de sua volta ao Rio, quase ao mesmo tempo em que eu voltava;
ouvi falarem da doen�a; da morte. N�o chorei. N�o senti. Z� n�o gostava mais do
corpo onde habitava seu esp�rito menino, era consciente da decad�ncia,
acreditava que a medicina poderia ajud�-lo, mas tinha o peso da idade nas
costas, na sabedoria cr�tica, no cansa�o, no esquecimento.
A
volta para o Rio de Janeiro, para a fam�lia, deve ter lhe sido ben�fica, apesar
de ser um eterno inconformado com a ditadura familiar, de pais ou filhos. Mas
ser� que ele trouxe consigo as composi��es que me mostrava? Vi e ouvi mais de
trinta, geniais, maravilhosas. Onde est�o estes escritos? O Z� Kettinho, que
era o samba, n�o sabia ler m�sica, chamava algu�m que soubesse para lhe servir e tocar e cantarolava o que
queria, o que o obsidiava a cabe�a, a m�sica, o samba.
Lembro-me
de uma tarde, Z� sem camisa na quitinete calorenta, detalhes vermelhos na
decora��o, ventilador ligado, um amigo violonista exausto e eu, n�o menos
cansada, adentrava ao recinto movida pelas chantagens veladas do �v�io�.
Chegava �quela ruela, pr�xima � rua da Consola��o, para ouvir algo urgente �
uma m�sica, um samba do Z� Ketti. Onde est�o estas m�sicas? Eram muitas, ser�
que voaram como as gaivotas a fugir das sereias? Voc� entendeu a coloca��o, n�o
� Z�? Ent�o tudo bem.
Espero
que agora, neste rosto seu, um sorriso tenha aparecido, como naquele show em
que presenciei a sua felicidade em cantar em p�blico depois de tanto tempo. N�o
me lembro o nome do bar, acho que era Boca da Noite, sei que era no bairro do
Bexiga. Cartola, naquela noite, foi interpretado de maneira perfeita, al�m
disso alguns textos meus ilustraram aquele show. Muitas coisas boas aconteceram
e delas h� muito eu havia esquecido. Houve aquela reuni�o que voc� inventou
para me oferecer um almo�o, tomando cuidado para que meu namorado n�o se
incomodasse, voc� tinha medo que ele sentisse ci�me. S� percebi que a festa era
pra mim quando ao saber que eu n�o comia camar�o voc� ficou tremendamente
decepcionado. Lembro-me que comi camar�o, lembro-me do estranhismo que me
causou v�-lo comer as cabe�as dos bichinhos, regadas a uma quantidade absurda
de aginomoto, n�o lhe era permitido ingerir sal ent�o �entrava� nos temperos
�alternativos�. Sei que era mais que sua amiga, era a lembran�a do sotaque
carioca, a ingenuidade dos vinte anos, a felicidade que nada cobra, a mo�a que
sabia escrever, que podia sentir, que deixava os olhos ficarem marejados diante
de um poema ou de uma bela can��o e que, principalmente, gostava de voc�.
Um
dia, num cinema, consegui chorar sua morte. O tempo estava a quarenta graus,
mas o filme n�o era do seu compadre Nelson Pereira, era Buena Vista Social
Club, do Win Wenders. E eu lhe vi, como no bar do bexiga, na imagem de um outro
m�sico negro, alquebrado pelo passar dos tempos, possu�do pela m�sica,
encantado pela vida, s� a� chorei, solu�ava como se houvesse lhe reencontrado
no mundo m�gico da sala escura que me � t�o importante como lhe � a m�sica. Sa�
aliviada, me livrei da tristeza. Estranho, nunca consegui escrever sobre isso,
e minha proposta inicial era de escrever sobre o samba, ent�o, n�o mais que de repente, surge voc�, o
samba.
Fico
por aqui, no carnaval, na cidade maravilhosa, e na saudade de voc�, que ainda leva a alegria para milh�es de cora��es
brasileiros.
Rosane Santiago Cordeiro � escritora, produtora e roteirista de
cinema. Um de seus trabalhos, o document�rio "Rio de Janeiro Sagrado" consumiu
dois anos de pesquisa e grava��es e mostra que a cultura popular fluminense
existe, � rica e deve ser considerada refer�ncia cultural para o Brasil.
Rosane Santiago Cordeiro foi diretora, roteirista e produtora da obra.
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