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� porta de uma quadra de escola de samba. O ensaio n�o come�ou, mas a anima��o
das pessoas contagia quem passa pela rua. O repique de alguns tamborins faz
m�sica de fundo para a chegada dos passistas, das senhoras da ala das baianas,
dos jovens lindos de dorso nu, das mulheres com as pernas e barrigas expostas
em min�sculos shorts sensuais a lhe valorizarem as n�degas, ambulantes
vendendo churraquinhos e queijo coalho, clima de quermesse. Uma figura me
chama a aten��o, uma mulher de uns trinta anos de idade, roupa discreta,
cabelos compridos, uma echarpe azul. Ela distoa das pessoas ali, fica parada a
observar o ambiente, assim como eu, mas parece estar sendo engolida por um
mundo m�gico, alucinante. Ouvem-se mais instrumentos sendo incorporados aos
tamborins, e as pernas da jovem, cobertas pelo tecido grosso da cal�a comprida
azul, come�am a se movimentar. Acho interessante v�-la absorver sutilmente a
energia dionis�aca do samba. Distraio-me, olho para o lado, e volto a observar
a mo�a. Ela desaparecera e minha vista sente falta daquele toque azul na noite
que apenas come�a.
Entro no recinto e
imediatamente, l�gico que � coincid�ncia, toda a bateria come�a a tocar.
Parece uma trilha sonora composta exclusivamente para mim, para minha entrada
que a partir dali passa a ser majestosa. O samba tem disso, faz de simples
plebeus, deuses, reis e Cinderelas. Com o trov�o da orquestra de batuques, me
reporto h� s�culos atr�s, sinto como se estivesse numa festa Lundu, vendo os
corpos se sacudirem quase que coletivamente. Ao lado, um grupo de mulheres
passistas parecem possu�das, valorizadas pelas roupas que lhes desenham os
corpos dicavalcantemente, fazendo com que pernas fortes, sustentem a dan�a das
carnes tr�mulas e fartas.
Tinha me esquecido como
� forte em mim a energia do samba. Hoje, nesta quadra do sub�rbio, a maioria
dos freq�entadores pertencem � comunidade local, talvez a mulher de azul, que
reencontro novamente, n�o seja daqui, eu e mais uns tr�s tamb�m, mas a grande
maioria vive a intensidade da alegria durante todos os dias do ano. Volto a
admirar a mo�a azulada, que agora mexe as pernas agitadamente, enquanto sacode
o dorso e movimenta os olhos pelo sal�o a procura de algo. P�ra. Acha. Seus
olhos correm embevecidos o corpo de um rapaz. Senta-se. Parece que encontrou o
espet�culo. Num primeiro momento ele n�o a v�, ou finge n�o enxerg�-la, numa
escurid�o narcisista de admirar a si mesmo em passos de dan�a perfeitos. Eu
ainda n�o havia reparado naquele homem, mas desde que ela o olhou ele acendeu,
parecia se exibir somente para ela, sabia daquele olhar feminino nele, passos
precisos, f�brica de orvalho no dorso nu, Deus de �bano quebrando os ossos,
para reconstruir-se com a malemol�ncia que s� a heran�a gen�tica pode
explicar.
Pouco depois canso-me de
olhar Eur�dice e Orfeu e sigo um outro par, figuras mitol�gicas tamb�m, ele
-Mestre Sala e ela- Porta Bandeira. Este casal contradiz meus pensamentos
anteriores, o que eu escrevi a respeito da heran�a gen�tica, ela de uma
eleg�ncia sem par - � negra, mas, pasmem, ele � oriental. � um p�ssaro
suntuoso a planar acima do ch�o de cimento corrido, algu�m que vive o carnaval
diariamente, passa seis meses no Brasil, onde defende uma escola bel�ssima, de
muito prest�gio, e o restante do ano no Jap�o, onde representa com sua alma
brasileira nosso povo, nosso passo, nosso samba.
Passam por mim, Marias,
Vilmas, C�lias, enfim, Cec�lias e Joanas, cariocas/baianas, mulheres que de
roupas comuns giram seus corpos como se vestissem saias brilhantes e rodadas.
A ala das baianas sempre foi a que mais me emocionou na Avenida, mas v�-las
sem as fantasias, observar-lhes de perto os rostos felizes e cansados, as
vestimentas humildes, algumas bocas murchas pela falta de dentes, outras
porcelanamente sorridentes, os saltos plataforma, os chinelos havaiana, ou as
rasteiras sand�lias brancas, rangendo, fazendo uma percurss�o possivelmente
observada somente pelos ouvintes sens�veis, e que me leva � Bahia, ao
Rec�ncavo, a Cachoeira, onde as descendentes de escravos, cumprem a promessa
das av�s e devotamente homenageiam Nossa Senhora da Boa Morte. Sagrados
movimentos, l� e c�, cheios de vol�pia e santidade, sincretismo, exposi��o da
aus�ncia de culpa do candombl� em rodopios sincronizadamente aben�oados por
Nossa Senhora.
Av�s de algumas
sambistas mirins, estas mulheres bebem suas cervejas e refrigerantes
descansando do desfile que fizeram , e assistem a uma apresenta��o individual
dos passistas, alguns deles seus filhos e netos. � realmente uma festa
familiar, como um grande anivers�rio que acontece a cada semana. Chega a hora
de ir embora, prometo a algumas pessoas voltar para o pr�ximo ensaio, na sa�da
vejo a mo�a de azul beijar o deus negro. Cena linda...
S�bado. 22 horas. O
n�mero de carros do lado de fora mostra-me que o p�blico hoje deve ser
diferente. Volto � quadra com outro esp�rito, o de observar a mim antes de
tudo. Sinto-me gracios�ssima em meu vestido preto, rodado. A exposi��o dos
ombros e das pernas, hoje alongadas pelas plataformas que s�o meus saltos,
altos e imponentes, a levantar meus passos t�midos, mas que ritmados fazem de
mim uma sambista. Come�o a dan�ar, mexo os p�s, as pernas e sinto minhas ancas
se rebelarem como se estivessem fogosamente preparadas para um ato sexual com
a m�sica, com o ar, como se florescesse uma orqu�dea dentro de mim.
H� uma amiga comigo, ela
verdadeiramente sabe sambar, agita-se perfeitamente e tem a paci�ncia de me
ensinar alguns movimentos, tenho nela um reflexo do que sinto. Sei exatamente
como estou aos olhos alheios pelo que vejo de sensualidade e prazer nos olhos
de minha amiga, que tamb�m n�o pertence ao mundo do samba, mas aprendeu
eximiamente a dan�ar vendo sambistas na televis�o. Acho que pertencemos a um
grupo grandioso que tem a coreografia do batuque na alma. Reparo uma outra
mo�a, menina ainda, e encantada tento imitar-lhe os movimentos. Me assusto!
Ela vem rebolativa e generosa, passando-me um pouco de sua gra�a e
movimentando-se numa velocidade surpreendente. Me sentia como uma bailarina
iniciante a dan�ar com Barichnikov. Quase lhe pedi um aut�grafo. Que ballet!
Que consci�ncia do pr�prio corpo! Ela faz uma rever�ncia, sinto-me numa corte
da idade m�dia, ent�o ela sai. Sai de mim dan�ando pela lateral e se junta a
outra pessoa, um homem que dan�a t�o bem quanto ela , mas que se atrapalha,
diante daquela presen�a, tanto quanto eu. E assim ela vai, Afrodite menina do
samba a presentear, com sua imagem divina, simples mortais. Sei que na
passarela do samba ela n�o vai ser rainha da bateria, essa deve ser alguma
modelo e atriz, n�o vai ser t�o filmada e fotografada quanto a outra, menos
bonita e talentosa que ela, mas mais ambiciosa. Ela vai passar majestosamente,
arrancando suspiros e sorrisos, personificando e dignificando o carioca em sua
ess�ncia, o brasileiro em sua mulata e bela apar�ncia.
� tarde. A madrugada vai
alta. Meu vestido h� tempos colou no corpo, minhas pernas lavadas de suor, se
retesam para suportar os p�s firmes dentro das sand�lias molhadas. Penso em
como estar� minha apar�ncia, mas ao observar o olhar encantado dos homens que
passam, sei que posso me considerar uma representa��o fugaz de Iemanj�, pois
sinto um brilho negro de Orix� em mim.
Engra�ado, agora,
enquanto escrevo, sinto o sangue fluir para minhas pernas, como se as imagens
e sensa��es que recordo fizessem meu corpo se preparar para a dan�a. Ali�s, no
meu meio social � praticamente incompreens�vel, eu percorrer a grande
dist�ncia at� o sub�rbio, as altas horas da noite, para ouvir samba e dan�ar
com gente desconhecida, como se eles fossem irm�os. � como se eu fosse, em
outros tempos, uma sinhazinha aventureira a fugir na calada da noite para
dan�ar Lundu e Batuque e celebrar a vida com meus iguais de esp�rito. Foi o
que Chiquinha Gonzaga fez, ela era samba, era Brasil.
Os cr�ticos
nunca poder�o reconhecer a raz�o disto, a menos que dancem despudoradamente
com algum g�nio das pernas, daqueles que encantam reis, maraj�s e plat�ias das
mais distintas em todos os cantos do mundo. Estes mesmos que tamb�m,
humildemente, t�m prazer em dan�ar com um iniciante no samba, que o olha nos
olhos, observa a modifica��o do outro corpo, se mostra e recolhe sua presen�a
para o parceiro aparecer, sorri no sorriso do companheiro, sem cr�ticas, sendo
s� qualifica��o e deleite. � isso! � a festa da carne, � carnaval, � prazer!
Rosane Santiago Cordeiro � escritora, produtora e roteirista
de cinema. Um de seus trabalhos, o document�rio "Rio de Janeiro Sagrado"
consumiu dois anos de pesquisa e grava��es e mostra que a cultura popular
fluminense existe, � rica e deve ser considerada refer�ncia cultural para o
Brasil. Rosane Santiago Cordeiro foi diretora, roteirista e produtora da obra.
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