Cinderelas, reis e deuses, mesmo sem fantasias de carnaval

Rosane Santiago Cordeiro

� porta de uma quadra de escola de samba. O ensaio n�o come�ou, mas a anima��o das pessoas contagia quem passa pela rua. O repique de alguns tamborins faz  m�sica de fundo para a chegada dos passistas, das senhoras da ala das baianas, dos jovens lindos de dorso nu, das mulheres com as pernas e barrigas expostas em min�sculos shorts sensuais a lhe valorizarem as n�degas, ambulantes vendendo churraquinhos e queijo coalho, clima de quermesse. Uma figura me chama a aten��o, uma mulher de uns trinta anos de idade, roupa discreta, cabelos compridos, uma echarpe azul. Ela distoa das pessoas ali, fica parada a observar o ambiente, assim como eu, mas parece estar sendo engolida por um mundo m�gico, alucinante. Ouvem-se mais instrumentos sendo incorporados aos tamborins, e as pernas da jovem, cobertas pelo tecido grosso da cal�a comprida azul, come�am a se movimentar. Acho interessante v�-la absorver sutilmente a energia dionis�aca do samba. Distraio-me, olho para o lado, e volto a observar a mo�a. Ela desaparecera e minha vista sente falta daquele toque azul na noite que apenas come�a.

Entro no recinto e imediatamente, l�gico que � coincid�ncia, toda a bateria come�a a tocar. Parece uma trilha sonora composta exclusivamente para mim, para minha entrada que a partir dali passa a ser majestosa. O samba tem disso, faz de simples plebeus, deuses, reis e Cinderelas. Com o trov�o da orquestra de batuques, me reporto h� s�culos atr�s, sinto como se estivesse numa festa Lundu, vendo os corpos se sacudirem quase que coletivamente. Ao lado, um grupo de mulheres passistas parecem possu�das, valorizadas pelas roupas que lhes desenham os corpos dicavalcantemente, fazendo com que pernas fortes, sustentem a dan�a das carnes tr�mulas e fartas.

Tinha me esquecido como � forte em mim a energia do samba. Hoje, nesta quadra do sub�rbio, a maioria dos freq�entadores pertencem � comunidade local, talvez a mulher de azul, que reencontro novamente, n�o seja daqui, eu e mais uns tr�s tamb�m, mas a grande maioria vive a intensidade da alegria durante todos os dias do ano. Volto a admirar a mo�a azulada, que agora mexe as pernas agitadamente, enquanto sacode o dorso e movimenta os olhos pelo sal�o a procura de algo. P�ra. Acha. Seus olhos correm embevecidos o corpo de um rapaz. Senta-se. Parece que encontrou o espet�culo. Num primeiro momento ele n�o a v�, ou finge n�o enxerg�-la, numa escurid�o narcisista de admirar a si mesmo em passos de dan�a perfeitos. Eu ainda n�o havia reparado naquele homem, mas desde que ela o olhou ele acendeu, parecia se exibir somente para ela, sabia daquele olhar feminino nele, passos precisos, f�brica de orvalho no dorso nu, Deus de �bano quebrando os ossos, para reconstruir-se com a malemol�ncia que s� a heran�a gen�tica pode explicar.

Pouco depois canso-me de olhar  Eur�dice e  Orfeu  e sigo um outro par, figuras mitol�gicas tamb�m, ele -Mestre Sala e ela- Porta Bandeira. Este casal contradiz meus pensamentos anteriores, o que eu escrevi a respeito da heran�a gen�tica, ela de uma eleg�ncia sem par - � negra, mas, pasmem, ele � oriental. � um p�ssaro suntuoso a planar acima do ch�o de cimento corrido, algu�m que vive o carnaval diariamente, passa seis meses no Brasil, onde defende uma escola bel�ssima, de muito prest�gio, e o restante do ano no Jap�o, onde representa com sua alma brasileira nosso povo, nosso passo, nosso samba.

Passam por mim, Marias, Vilmas, C�lias, enfim, Cec�lias e Joanas, cariocas/baianas, mulheres que de roupas comuns giram seus corpos como se vestissem  saias brilhantes e rodadas. A ala das baianas sempre foi a que mais me emocionou na Avenida, mas v�-las sem as fantasias, observar-lhes de perto os rostos felizes e cansados, as vestimentas humildes, algumas bocas murchas pela falta de dentes, outras porcelanamente sorridentes, os saltos plataforma, os chinelos havaiana, ou as rasteiras sand�lias brancas, rangendo, fazendo uma percurss�o possivelmente observada somente pelos ouvintes sens�veis, e que me leva � Bahia, ao Rec�ncavo, a Cachoeira, onde as descendentes de escravos, cumprem a promessa das av�s e devotamente homenageiam Nossa Senhora da Boa Morte. Sagrados movimentos, l� e c�, cheios de vol�pia e santidade, sincretismo, exposi��o da aus�ncia de culpa do candombl� em rodopios sincronizadamente aben�oados por Nossa Senhora.

Av�s de algumas sambistas mirins, estas mulheres bebem suas cervejas e refrigerantes descansando do desfile que fizeram , e assistem a uma apresenta��o individual dos passistas, alguns deles seus filhos e netos. � realmente uma festa familiar, como um grande anivers�rio que acontece a cada semana. Chega a hora de ir embora, prometo a algumas pessoas voltar para o pr�ximo ensaio, na sa�da vejo a mo�a de azul beijar o deus negro. Cena linda...

S�bado. 22 horas. O n�mero de carros do lado de fora mostra-me que o p�blico hoje deve ser diferente. Volto � quadra com outro esp�rito, o de observar a mim antes de tudo. Sinto-me gracios�ssima em meu vestido preto, rodado. A exposi��o dos ombros e das pernas, hoje alongadas pelas plataformas que s�o meus saltos, altos e imponentes, a levantar meus passos t�midos, mas que ritmados fazem de mim uma sambista. Come�o a dan�ar, mexo os p�s, as pernas e sinto minhas ancas se rebelarem como se estivessem fogosamente preparadas para um ato sexual com a m�sica, com o ar, como se florescesse uma orqu�dea dentro de mim.

H� uma amiga comigo, ela verdadeiramente sabe sambar, agita-se perfeitamente e tem a paci�ncia de me ensinar alguns movimentos, tenho nela um reflexo do que sinto. Sei exatamente como estou aos olhos alheios pelo que vejo de sensualidade e prazer nos olhos de minha amiga, que tamb�m n�o pertence ao mundo do samba, mas aprendeu eximiamente a dan�ar vendo sambistas na televis�o. Acho que pertencemos a um grupo grandioso que tem a coreografia do batuque na alma. Reparo uma outra mo�a, menina ainda, e encantada tento imitar-lhe os movimentos. Me assusto! Ela vem rebolativa e generosa, passando-me um pouco de sua gra�a e movimentando-se numa velocidade surpreendente. Me sentia como uma bailarina iniciante a dan�ar com Barichnikov. Quase lhe pedi um aut�grafo. Que ballet! Que consci�ncia do pr�prio corpo! Ela faz uma rever�ncia, sinto-me numa corte da idade m�dia, ent�o ela sai. Sai de mim dan�ando pela lateral e se junta a outra pessoa, um homem que dan�a t�o bem quanto ela , mas que se atrapalha, diante daquela presen�a, tanto quanto eu. E assim ela vai, Afrodite menina do samba a presentear, com sua imagem divina, simples mortais. Sei que na passarela do samba ela n�o vai ser rainha da bateria, essa deve ser alguma modelo e atriz, n�o vai ser t�o filmada e fotografada quanto a outra, menos bonita e talentosa que ela, mas mais ambiciosa. Ela vai passar majestosamente, arrancando suspiros e sorrisos, personificando e dignificando o carioca em sua ess�ncia, o brasileiro em sua mulata e bela apar�ncia.

� tarde. A madrugada vai alta. Meu vestido h� tempos colou no corpo, minhas pernas lavadas de suor, se retesam para suportar os p�s firmes dentro das sand�lias molhadas. Penso em como estar� minha apar�ncia, mas ao observar o olhar encantado dos homens que passam, sei que posso me considerar uma representa��o fugaz de Iemanj�, pois sinto um brilho negro de Orix� em mim.

Engra�ado, agora, enquanto escrevo, sinto o sangue fluir para minhas pernas, como se as imagens e sensa��es que recordo fizessem meu corpo se preparar para a dan�a. Ali�s, no meu meio social � praticamente incompreens�vel, eu percorrer a grande dist�ncia at� o sub�rbio, as altas horas da noite, para ouvir samba e dan�ar com gente desconhecida, como se eles fossem irm�os. � como se eu fosse, em outros tempos, uma sinhazinha aventureira a fugir na calada da noite para dan�ar Lundu e Batuque e celebrar a vida com meus iguais de esp�rito. Foi o que Chiquinha Gonzaga fez, ela era samba, era Brasil.

Os cr�ticos nunca poder�o reconhecer a raz�o disto, a menos que dancem despudoradamente com algum g�nio das pernas, daqueles que encantam reis, maraj�s e plat�ias das mais distintas em todos os cantos do mundo. Estes mesmos que tamb�m, humildemente, t�m prazer em dan�ar com um iniciante no samba, que o olha nos olhos, observa a modifica��o do outro corpo, se mostra e recolhe sua presen�a para o parceiro aparecer, sorri no sorriso do companheiro, sem cr�ticas, sendo s� qualifica��o e deleite. � isso! � a festa da carne, � carnaval, � prazer!

 

Rosane Santiago Cordeiro � escritora, produtora e roteirista de cinema. Um de seus trabalhos, o document�rio "Rio de Janeiro Sagrado" consumiu dois anos de pesquisa e grava��es e mostra que a cultura popular fluminense existe, � rica e deve ser considerada refer�ncia cultural para o Brasil. Rosane Santiago Cordeiro foi diretora, roteirista e produtora da obra.