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Rog�rio Barbosa Lima
Desde seus prim�rdios, o Leblon caracterizou-se pela fun��o residencial e pelo
contexto social heterog�neo, com acentuada predomin�ncia da classe m�dia, que chegou
junto com o bonde, atra�da pelos pre�os razo�veis dos lotes, pela praia e pela beleza
paisag�stica.
Igualmente sensibilizada por essas virtudes, e porque a ocupa��o de Copacabana se
adensava, representantes do segmento mais abastado, que fugiam do atropelo da cidade
velha, vieram construir resid�ncias mais apropriadas ao seu conceito de civiliza��o e estilo
de vida, estabelecendo-se preferentemente � beira-mar.
A vizinha G�vea, que se viu servida mais cedo por transporte regular e beneficiada
por �gua em abund�ncia, foi o local escolhido, na Zona Sul, para a instala��o de umas
poucas ind�strias: a tiracolo, prolet�rios que se espalharam pelas redondezas, acomodando-
se como Deus mandasse.
Por volta de 1935, a Cia de Terras do Leblon, da fam�lia Gomes de Mattos, loteou o
terreno correspondente � Ch�cara do C�u, na encosta do morro Dois Irm�os, por tr�s do
Hotel Leblon, e o conglomerado humano ali abarracado foi transladado para um s�tio
pr�ximo � lagoa e ao campo do Clube de Regatas do Flamengo (inaugurado em 1939),
originando a favela da Praia do Pinto, que acolheu parte daquele proletariado e, mais tarde,
imigrantes nordestinos e outras gentes igualmente humildes, constituindo um amontoado de
casebres de madeira e lata, sem higiene, conforto ou �gua, e com dejetos correndo
livremente por valas e sulcos cavados no solo do antigo areal. Esse ajuntamento viria a
desaparecer nos anos sessenta, em conseq��ncia de inc�ndio atribu�do a mentes
inescrupulosas e m�os criminosas, dando lugar a um conjunto de edifica��es hoje
conhecido como Selva de Pedra.
Entre as camadas sociais que repartiam o bairro no in�cio da segunda metade do
s�culo, preponderava a classe m�dia, e tocou-lhe implantar, intuitiva e experimentalmente,
um c�digo de disciplina � sua conveni�ncia, com normas um tanto amb�guas e eufem�sticas
para mascarar a supremacia natural decorrente de sua expressiva superioridade num�rica,
todavia sem as cl�usulas pe�onhentas e o pretorianismo do appartheid cl�ssico. Os c�nones
foram prontamente acatados pela popula��o, que se dobrava aos gostos do grupo mais
influente, imitando-o instintivamente, no af� de confundir-se com seus componentes.
N�o saberia dizer quando, nem de que modo come�ou esse tipo de relacionamento,
mas os menos favorecidos, podia-se notar, n�o pareciam muito longe de acreditar na
pr�pria inferioridade, a ponto de a classe m�dia jamais ter cogitado a ado��o de qualquer
medida destinada a repeli-los ou subjug�-los. O arranjo flu�a quase que espontaneamente.
Fato assente � que negros, pobres e prolet�rios sempre viveram �s turras, a disputar
a primazia de compartilhar as venturas da casta prevalecente, ignorando a for�a da uni�o.
Abdias do Nascimento sustentaria alguns anos depois que "negro n�o gosta de negro" e
S�rgio Porto, com a sutileza habitual, decretaria que "no Brasil n�o h� discrimina��o racial
porque o negro conhece o seu lugar" (onde se l� "negro", em ambas as senten�as, entenda-
se "pobres", "prolet�rios", "exclu�dos", etc ...).
Ao contr�rio dos dias de hoje, quando encontramos entre favelados gente com mais
dinheiro do que moradores de apartamentos de Copacabana e jovens intelectualmente mais
bem equipados e desenvoltos do que muitos adolescentes encerrados nos gradis dos
condom�nios da Barra da Tijuca, n�o havia no p�s-guerra milit�ncia por melhores
condi��es; o samba e o futebol n�o garantiam o passaporte para palcos, gramados e telas;
n�o eram ainda fatores determinantes da integra��o com o asfalto, veiculando uma
participa��o aparentemente mais democr�tica na coisa p�blica, que, nem por isso, � ou foi
suficiente para sepultar de vez o racismo ou extinguir a op��o de um n�mero apreci�vel de
meninos que preferem transferir suas energias para atividades capituladas como criminosas.
Diversamente da imagem atual do favelado, repita-se, a Praia do Pinto, naqueles anos
cinq�enta, era constitu�da em sua quase totalidade por pessoas t�midas, analfabetas, de
escolaridade zero. Mas, se n�o havia hostilidade declarada - pelo contr�rio, sobrelevava
pac�fica convizinhan�a, a despeito das peculiaridades que estribavam o contrato em vigor -,
seria, outrossim, ilus�rio supor a exist�ncia de arroubos de familiaridade.
Para se ter um id�ia mais precisa do modelo de conviv�ncia, os moradores da Praia
do Pinto come�avam a chegar � praia, discretamente e em pequenos grupos, l� pelas duas
horas da tarde, depois que a maioria tivesse curtido a posse do peda�o. A turma
endinheirada, �s vezes, dava o ar de sua gra�a pela manh�, mas n�o ficava totalmente �
vontade e seguia para seus clubes exclusivos; nos fins de semana, subia a serra. Havia, por
certo, exce��es em ambos os casos, que foram, gradualmente, tornando-se mais freq�entes.
Raras, entretanto, no in�cio da d�cada.
Aos s�bados, a rancharia experimentava restri��o geogr�fica bem maior, por causa
do futebol de praia, cujo campeonato, disputado na parte da tarde, monopolizava trechos da
areia. Surpreendente � que, apesar de o futebol j� estar plenamente popularizado no �mbito
profissional, em que a maioria provinha de comunidades mais carentes, na praia contava-se
nos dedos o n�mero de negros que disputavam os torneios, e ainda assim concentrados em
dois ou tr�s times e, como n�o sobressa�ssem, fic�vamos sem saber se aquele celeiro
prometia. Conforme ocorreu no futebol profissional, com o passar dos anos, as equipes
amorenaram-se, mas quando o processo se consolidou - pelo menos no Leblon - os times
tradicionais j� se iam desfazendo.
As categorias sociais n�o se mesclavam na praia, nem em outros lugares p�blicos
destinados ao lazer, pois os desprotegidos n�o tinham dinheiro suficiente para desfrutar
cinemas e bares, os outros pontos de divers�o existentes. Sobrava-lhes o parque da
pracinha, enquanto funcionou. Mesmo ali, no entanto, limitavam-se a dar uma vista d'olhos
e comportavam-se com excessiva reserva. Reitere-se, a bem da verdade, que n�o eram
compelidos a tanto. Se prevaleciam os h�bitos de um grupo que os estipulou a seu talante,
ao ocupar legitimamente um territ�rio virgem, � porque ningu�m os contestava. A revolta e
o rancor porventura existentes na comunidade carente eram surdos e a elite,
astuciosamente, omitia-se. Da classe m�dia n�o partiam amea�as ou humilha��es. O quadro
n�o refletia o pacto ideal, e examinado a dist�ncia parece constrangedor, mas era
consentido. O que conspirava para dar foros menos nobres �quele ajuste devia-se mais ao
reflexo da at�vica insist�ncia da "albumina lusitana" em clarificar o mascavo �tnico
brasileiro, que, de resto, persiste em nossos dias - embora de forma disfar�ada - em raz�o
das chicanas e indecis�es que permeiam o enredo tortuoso do processo libertador, atos
protelat�rios e nefandos estes que, agora, em nome de outro e excuso prop�sito, atingem a
pr�pria classe m�dia, manipulados por um alvacento algoz mais setentrional ainda, e mais
voraz.
Vale enfatizar que jamais nutrimos qualquer entusiasmo pelo aval dos riquinhos.
Sempre nos pareceu mais atraente "descer ao vulgo" - como eles diriam - do que privar de
sua intimidade, salvo para comparecer �s festas nababescas, para as quais, de vez em
quando, nos convidavam, num procedimento instintivo de sedu��o, uma esp�cie de ped�gio
para trafegar livremente no territ�rio do s�cio majorit�rio, reuni�es a que �amos, � �bvio,
que ningu�m � de ferro e j� est�vamos de saco cheio dos velhos cuba-libres e alexanders da
vida, e de olho grande nas barquetes, nos vol-au-vent e em outras requintadas guloseimas.
Al�m disso, o qu� de arrog�ncia da maior parte j� estava devidamente balizado, ficando,
como se dizia, por conta do aplomb.
No que diz respeito � ral�, parcela consider�vel da flor da sociedade ignorava-a.
Uma vez fui estudar e lanchar na mans�o de um garoto, meu colega no Col�gio Santo
Agostinho, e ouvi a dona da casa sentenciar, em sua excelsa nobreza:
- Acho um imperdo�vel deslize de polidez misturar pessoas de h�bitos educados
com gente do povo.
Disse a p�rola em seguida a este edificante di�logo travado com o filho mais velho:
- Mam�e. Algu�m me telefonou?
- Um sujeito, pela manh�.
- Quem foi?
- N�o deixou o nome, mas a voz era de negro.
Quase engasguei com o meu waffles.
Para assistir aos jogos no campo do Flamengo, ou ir �s corridas, cort�vamos
caminho pela Rua Cupertino Dur�o (ex-Francisco Ludolf), que terminava na favela,
bastando atravess�-la, o que faz�amos com a mesma quieta��o com que seus habitantes
transitavam pelas ruas do bairro. A dificuldade, at� nos acostumarmos, era com a trilha em
meandros e o solo lamacento, que obrigava as lavadeiras a estenderem as roupas num
terreno baldio distante, que ficava na Rua Dias Ferreira, dando fundos para a Humberto de
Campos.
L� pelos meados da d�cada, a camaradagem foi prosperando. A �ndole pac�fica, a
receptividade dos protagonistas e a ocorr�ncia de fatores diversos, como a coincid�ncia de
percursos, o contacto com empregadinhas e oper�rias (mais vulner�veis e acess�veis do que
as outras garotas, numa �poca de conquistas t�o minguadas), a paulatina inclus�o nos times
de praia de atletas da favela, a relativa melhoria de qualidade de vida, merc� do
aperfei�oamento profissional, a atra��o sincera entre as crian�as das duas bandas em torno
da bola de gude ou da briga de galos, tudo isso apontava para um congra�amento
satisfat�rio, que inevitavelmente iria intensificar-se com o crescimento populacional da
classe pobre. Testemunha e fautor dessa simp�tica ades�o, est� a� para contar a hist�ria o
Baiano, Raimundo Nonato, brioso militar, renomado artilheiro do Nacional, craque do
Bonsucesso e, mais do que tudo isso, amigo querido dos velhos e bons leblonenses.
Mais � frente, a multiplica��o desordenada, sem estrutura adequada para receb�-la,
iria produzir um efeito inverso, preocupante. O surgimento da segunda gera��o ativa de
favelados e a concorr�ncia em busca de moradia, empreendida por aproveitadores e maus
elementos alien�genas deu origem a uma primeira leva de delinq�entes que, � preciso
salientar, n�o exerciam sua atividade no bairro. Poupavam os residentes no local. N�o creio
que fosse apenas estrat�gia, j� que posteriormente, extinta a Praia do Pinto e fixada a
nefasta Cruzada do demagogo Helder C�mara, a bandidagem n�o livrava a nossa cara.
Quest�o de racismo? Talvez algo mais complexo e conden�vel, que melhor caberia num
dos escaninhos de um tratado de Sociologia.
Por ocasi�o do malfadado inc�ndio que dizimou a Praia do Pinto, os moradores das
redondezas, principalmente os ocupantes de andares t�rreos, serviram de deposit�rios dos
parcos bens resgatados e puderam oferecer alguns pr�stimos em alimentos e rem�dios, que
dinheiro n�o faltava no fim do m�s, mas tamb�m n�o sobrava para a caridade. N�o seria
justo nem sensato, no entanto, invocar tamanha desgra�a para valorizar atitudes solid�rias,
mas � correto acentuar que, antes e depois desse tr�gico epis�dio e a despeito dele, os
moradores do Leblon nunca se sentiram menos felizes e aliados do que os atuais em
decorr�ncia de algum tipo de remorso, de um lado, ou por excessivo recalcamento, de
outro. A caminhada tivera um marco inicial comum, sem embargo da disparidade de
condi��es, e a falta de par�metros precisos produzia em todos id�ntica perplexidade, o que
dificultava o uso da desigualdade - pelo menos como mister habitual - em proveito pr�prio
ou para outros fins delet�rios.
Pena que, quando a boa-vizinhan�a estava prestes a sedimentar-se, eles foram
embora, a maioria de n�s dispersou-se pelo mundo afora, os bem-sucedidos, como sempre,
encontraram pouso seguro, e come�ou, ent�o, a surgir gente de maus bofes, vagabundos
perniciosos, oportunistas de todos os matizes e condi��es sociais e financeiras, e aquele
racismo hesitante, quase in�cuo foi se transformando e adquirindo as suas reais e
assustadoras fei��es, se n�o pretexto para viol�ncias de toda a ordem, ainda que oculto sob
o manto de um discurso eivado de zelo farisaico.
Jamais fustigamos quem quer que fosse (e, justi�a seja feita, a elite - salvo pelos
inofensivos narizes empinados de uns poucos - n�o deve ser responsabilizada por qualquer
mal-estar). O grupo menos favorecido, se n�o morria de amores por n�s, n�o adotava
postura explicitamente hostil. Por pior que tenha sido o ide�rio elaborado pela classe m�dia
que "fundou" o Leblon, pelo tempo em que vigeu serviu melhor � comunidade local do que
a cren�a enganosa trazida por �dolos de p�s de barro e organismos insidiosos, com suas
promessas falazes: doces perf�dias que lhes sustentam a vida por tantos anos gra�as �
explora��o pol�tica da pobreza e � intermedia��o hip�crita e interesseira. Bem que �amos
todos os antigos moradores nos conquistando mutuamente, at� virem agentes velhacos,
filhotes do progresso a qualquer custo lograr-nos com conselhos ardilosos, argumentos
capciosos e pr�ticas fraudulentas.
Texto extra�do do livro "O ANTIGO LEBLON - Uma Aldeia Encantada - Cr�nicas" - Rio de Janeiro
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