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Estou s�, quer dizer, tenho �dio ao amor que terei pelo desconhecido que est� a caminho, um homem
cujo rosto e cuja voz desconhe�o.
Sempre estive duramente acorrentada a essa fatalidade, amor. Muito antes que o homem surja em
nossa vida, sentimos fisicamente que somos servas de uma doa��o infinita de corpo e alma.
O homem � apenas o copo que recebe o nosso veneno, o nosso conte�do de amor. N�o � por isso que o homem
me atemoriza, quando aqui estou outra vez, s�, em meu quarto: o que me arrepia de temor � este amor
invis�vel e brutal como um pr�ncipe.
Quando se fala em mulher livre, estreme�o. Livre como o b�bado que repete o mesmo caminho de sua
fulgurante agonia.
A uma mulher n�o se pergunta: que far�s agora da tua liberdade? A nossa interroga��o � uma s� e muito
mais perturbadora: que farei agora do meu amor? Que farei deste amor informe como a nuvem e pesado como
a pedra? Que farei deste amor que me esvazia e vai remoendo a cor e o sentido das coisas como um �cido?
� terr�vel o horror de amar sem amor como as feras enjauladas.
� quando o homem desaparece de minha vida que sinto a selvageria do amor feminino. Somos todas selvagens:
s�o in�teis as fantasias que vestimos para o grande baile. Selvagem era a romana que ficava em casa e
tecia; selvagens eram as mulheres do har�m, as mais depravadas e as mais pudicas; selvagem, furiosamente
selvagem, foi a mulher na sombra da Idade M�dia, na sua morda�a de castidade; mesmo as santas - e Santa
Teresa de �vila foi a mais feminina de todas - fizeram da pureza e do amor divino um ato de ferocidade,
como a pantera que salta inocente sobre a gazela. E selvagem sou eu sob a apar�ncia sadia do biqu�ni,
olhando a mec�nica er�tica de olhos abertos, instru�da e elucidada. Pois n�o � na voluntariedade do sexo
que est� a selvageria da mulher, mas em nosso amor profundo e incontrol�vel como loucura. O sexo �
simples: � a certeza de que existe um ponto de partida. Mas o amor � complicado: a incerteza sobre
um ponto de chegada.
Aqui estou, s� no meu quarto, sem amor, como um espelho que aguarda o retorno da imagem humana. O resto
em torno � incompreens�vel. O homem sem rosto, sem voz, sem pensamento, est� a caminho. Estou colocada
nesse caminho como uma armadilha infal�vel. S� que a presa n�o � ele - o homem que se aproxima - mas
sou eu mesma, o meu amor, a minha alma. Sou eu mesma, a mulher, a v�tima das minhas armadilhas. Sou
sempre eu mesma que me aprisiono quando me fa�o a mulher que espera um homem, o homem. Ca�mos sempre
em nossas armadilhas. At� as prostitutas falham nos seus prop�sitos, incapazes de impedir que o com�rcio
se deixe corromper pelo amor. Quantas mulheres tra�aram seus esquemas com fria e bela isen��o e acabaram
penando de amor pelo velhote que esperavam depenar. Somos irremediavelmente l�quidas e tomamos as formas
das vasilhas que nos cont�m. O pior agora � que o vaso est� a caminho e n�o sei se � ta�a de cristal,
c�ntaro cl�ssico, x�cara singela, canec�o de cerveja. Qualquer que seja a sua forma, depois de algum
tempo serei derramada no ch�o. Os vasos t�m muitas formas e andam todos eles � procura de uma bebida lend�ria.
Li num autor (um pouco menos idiota do que os outros, quando falam sobre n�s) que o drama da mulher �
ter de adaptar-se �s teorias que os homens criam sobre ela. Certo. Quando a mulher neur�tica por todos
os poros acaba no div� do analista, aconteceu simplesmente o seguinte: ela se perdeu e n�o soube como
ser diante do homem; a figura que deveria ter assumido se fez imprecisa.
Para esse escritor, desde que existem homens no mundo, h� in�meras teorias masculinas sobre a mulher
ideal. Certo. A matrona foi inventada de acordo com as id�ias de propriedade dos romanos. Como a mulher
de C�sar deve estar acima de qualquer suspeita, muito docilmente a mulher de C�sar passou a comportar-se
acima de qualquer suspeita. Os Dantes queriam Beatrizes castas e intoc�veis, e as Beatrizes castas e
intoc�veis surgiram em horda. A Renascen�a descobriu a mulher culta, e as renascentistas moderninhas
meteram a cara nos irrespir�veis alfarr�bios. O romancista do s�culo passado inventou a mulherzinha
infantil, e a mulherzinha infantil veio logo pipilando.
O tipos v�o sendo criados indefinidamente. M�dicos produzem enfermeiras eficientes e incisivas
como instrumentos. Homens de neg�cios produzem secret�rias capazes e discretas. As prostitutas
correspondem ao padr�o secreto de muitos homens. Assim somos. Indiquem-nos o modelo, que o
seguiremos � risca. Querem uma esposa amant�ssima - seremos a esposa amant�ssima. Se a moda
� mulher sexy, por que n�o serei a mulher sexy? Cada uma de n�s pode satisfazer qualquer especifica��o
do mercado masculino.
Seremos umas bobocas? N�o. Os homens s�o uns bobocas. O homem � que insiste em ver em cada uma de
n�s - n�o a mulher, a mulher em estado puro ou selvagem, um ser humano do sexo feminino - o diabo,
a vagabunda, a lasciva, o anjo, a companheira, a simp�tica, a inteligente, o busto, o sexo, a perna,
a esportista... Por que exige de n�s todos os pap�is, menos o papel de mulher? Por que n�o descobre,
depois de tanto tempo, que somos simplesmente seres humanos carregados de eletricidade feminina?
(O amor acaba: cr�nicas l�ricas e existenciais. 2a ed., Rio de Janeiro: Civiliza��o
Brasileira, 2000, p. 63-65).
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