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Ter na v�spera o cuidado de escancarar a janela. Despertar com a primeira luz cantando e ver dentro da moldura da janela a mocidade do universo, l�mpido inc�ndio a debruar de vermelho quase frio as nuvens espessas. A brisa alta, que se levanta, agitar docemente as grinaldas das janelas fronteiras. Uma gaivota madrugadora cruzar o ret�ngulo. Um galo desenhar na hora a par�bola de seu canto. Ent�o, dormir de novo, devagar, como se dessa vez fosse para retornar � terra s� ao som da trombeta do arcanjo.
Caf� e jornais devem estar � nossa espera no momento preciso no qual violentamos a aus�ncia do sono e voltamos � tona. Esse milagre dom�stico tem de ser. Da �rea subir uma disson�ncia festiva de instrumentos de percuss�o - ca�arolas, panelas, frigideiras, cristais anunciando que a qu�mica e a ternura do almo�o mais farto e saboroso n�o foram esquecidas. Jorre a �gua do tanque e, perto deste, a galinha que vai entrar na faca saia de seu mutismo e cacareje como em domingos de antigamente. Tamb�m o can�rio belga do vizinho descobrir deslumbrado que faz domingo.
Enquanto tomamos caf�, lembrar que � dia de um grande jogo de futebol. Vestir um short, zanzar pela casa, lutar no ch�o com o ca�ula, receber dele um soco que nos deixe doloridos e orgulhosos. A mulher precisa dizer, fingindo-se muito zangada, que estamos a fazer uma bagun�a terr�vel e somos mais crian�as do que as crian�as.
S� depois de chatear suficientemente a todos, sair em bando familiar em dire��o � praia, naturalmente com a barraca mais desbotada e desmiling�ida de toda a redondeza.
Se a Aeron�utica n�o se dispuser esta manh� a divertir a inf�ncia com os seus mergulhos acrob�ticos, torna-se indispens�vel a passagem de s�cios da H�pica, em corc�is ainda mais kar do que os pr�prios cavaleiros.
Comprar para a meninada tudo que o m�dico e o regime dom�stico desaconselham: sorvetes mil, uvas cristalizadas, pirulitos, algod�o doce, refrigerantes, bal�es em forma de ping�im, macaquinhos de pano, papaventos. Fingir-se de distra�do no momento em que o terr�vel ca�ula, armado, aproximar-se da barraca onde dorme o imenso alem�o para desferir nas costas gordas do tedesco uma vigorosa paulada. A pedagogia recomenda n�o contrariar demais as crian�as.
No instante em que a meninada j� comece a "encher", a mulher deve resolver ir cuidar do almo�o e deixar-nos s�s. Notar, portanto, que as mo�as est�o em flor, e o nosso envelhecimento n�o � uma regra geral. Depois, fechar os olhos, torrar no sol at� que a pele adquira uma vida pr�pria, esperar que os insetos da areia nos despertem do meio-sono.
A caminho de casa, � de bom alvitre encontrar, tamb�m de cal��o, um amigo motorizado, que a gente n�o via h� muito tempo. Com ele ir �s ostras na Barra da Tijuca, beber chope ou vinho branco.
O banho, o espa�ado almo�o, o sol transpassando o dia. Desistir � �ltima hora de ver o futebol, pois o nosso time n�o est� em jogo. Ir � casa de um amigo, recusar o u�sque que este nos oferece, dizer bobagens, brigar com os filhos dele em v�rias partidas de pingue-pongue.
Novamente em casa, conversar com a fam�lia. Contar uma hist�ria meio macabra aos meninos. Enquanto estes s�o postos em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu e as luzes distantes melancolizam. Se a solid�o assaltar-nos, subjug�-la; se o sentimento de inseguran�a chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrig�-la com reservas; se for a poesia, possui-la; se for o corvo arranhando o caixilho da janela, gritar-lhe alto e bom som: never more.
Noite pesada. � luz da l�mpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo est� errado, que o mundo devia, mas n�o � composto de domingos. Ent�o, como uma espada, surgir da nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a lado. Para que os dias da semana entrante n�o nos repartam em uma exist�ncia de ego�smos.
Do livro 'O Cego de Ipanema' - Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960
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