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Ser brotinho n�o � viver em um p�ncaro azulado: � muito mais! Ser brotinho � sorrir bastante dos homens
e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o rid�culo, vis�vel ou invis�vel, provocasse uma tosse
de riso irresist�vel.
Ser brotinho � n�o usar pintura alguma, �s vezes, e ficar de cara lambida, os
cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido t�o
de prop�sito sem gra�a, mas lan�ando fogo pelos olhos. Ser brotinho � lan�ar fogo pelos olhos.
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� viver a tarde inteira, em uma atitude esquem�tica, a contemplar o teto, s� para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. � passar um dia todo descal�a no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho � ainda possuir vitrola pr�pria e perambular pelas ruas do bairro com um ar sonso-vagaroso, abra�ada a uma por��o de elep�s coloridos. � dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra se faz imprescind�vel e t�o inteligente e natural. � tamb�m falar legal e b�rbaro com um timbre t�o por cima das v�s agita��es humanas, uma inflex�o t�o certa de que tudo neste mundo passa depressa e n�o tem a menor import�ncia.
Ser brotinho � poder usar �culos como se fosse enfeite, como um adjetivo para o rosto e para o esp�rito. � esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas � tamb�m dar sentido de repente ao v�cuo absoluto. � aguardar com paci�ncia e frieza o momento exato de vingar-se da m� amiga. � ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anota��es criptogr�ficas sobre o tributo da natureza feminina, uma c�dula de dois cruzeiros com uma senten�a herm�tica escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de s�bito ao vento que passa. Ser brotinho � a inclina��o do momento.
� telefonar muito, estendida no ch�o. � querer ser rapaz de vez em quando s� para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio; achar t�o simp�tica uma senhora t�o antip�tica. � fumar quase um ma�o de cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.
Ser brotinho � comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver est� certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. � sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. � ficar euf�rica � vista de uma cascata. Falar ingl�s sem saber verbos irregulares. � ter comprado na feira um vestidinho gozado e
bacan�rrimo.
� ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, �mida cam�lia, e dizer para a m�e que veio andando devagar para molhar-se mais. � ter sa�do um dia com uma rosa vermelha na m�o, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. � ir sempre ao cinema mas com um jeito de quem n�o espera mais nada desta vida. � ter uma vez bebido dois gins, quatro u�sques, cinco ta�as de champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido s� um c�lice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. � o dom de falar sobre futebol e pol�tica como se o presente fosse passado, e vice-versa.
Ser brotinho � atravessar de ponta a ponta o sal�o da festa com uma indiferen�a mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salm�o para o coitado. Mas o bichinho comeu o salm�o e morreu. � ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ningu�m a miser�vel trai��o. Amanhecer chorando, anoitecer dan�ando. � manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de gente morta, ladr�o dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaix�o de um s� mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um m�s por um violinista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho � como se n�o fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de t�o amadurecida em todo o seu ser. � fazer marca��o cerrada sobre a presun��o incomensur�vel dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. � policiar parentes, amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada v�, nada ouve, nada fala.
Ser brotinho � adorar. Adorar o imposs�vel. Ser brotinho � detestar. Detestar o poss�vel. � acordar ao meio-dia com uma cara horr�vel, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando at� a hora do jantar, e n�o jantar, e ir devorar um sandu�che americano na esquina, t�o estranha � a vida sobre a Terra.
Do livro 'O Cego de Ipanema' - Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960
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