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Era uma quinta-feira de maio e a gaivota vinha das Tijucas, em v�o quase rasante sobre a fal�sia
da Avenida Niemeyer, longas asas armadas na corrente a�rea que virava do Sul, lenta levando o seu
corpo leve e descarnado, seu esqueleto pontiagudo, geometricamente estruturado para reduzir ao m�nimo
a resist�ncia do ar e da �gua. � esquerda, rochas morenas e suadas, um pouco mais acima os autom�veis
coloridos, mais alto as escarpas de pedras pardas, � direita o azul, embaixo as espumas leitosas. Para
sobrepassar o morro que se alteava, ela pegou uma corrente que ascendia, seguiu est�tica em linha reta,
transp�s uma piscina verde, entrou pelo Leblon em v�o silencioso no exato momento em que um frade
vermelho raspava a botina pelo ch�o para fazer uma curva na sua lambreta. Ela distendeu um pouco
mais as asas, como se fosse um len�o de linho panejando no c�u, naquele equil�brio supremo que alvoro�ou
o esp�rito de Da Vinci. Sob um caramanch�o do Jardim de Al�, um demente sentia-se perseguido, escondendo
o rosto com as m�os. A gaivota, j� almo�ada, gratuita e vadia, fez uma par�bola perfeita e foi
olhar o garoto que pipilava euforicamente sobre a �gua turva do canal, ao lado de outro, que
tinha um cani�o e uma lata de azeitonas, onde se remexiam dois imponder�veis mamarreis.
Um p�-de-vento deu um chute na �rvore, atirando uma flor amarela sobre a cabe�a de um escandinavo
estendido em um banco de pedra, os bra�os abertos como um crucificado; o estrangeiro, que se extasiava
de sol, sorriu comprometido com a delicadeza do momento e ajeitou a flor em sua lapela, para esc�ndalo
de duas bab�s pretas que iam passando com os seus uniformes brancos.
A gaivota adentrou-se um pouco mais para os lados do Bar Vinte, a tempo de surpreender um fiscal da
Light, com uma cabeleira b�blica muito mais espa�osa que o seu quepe, a mastigar vagarento uma sardinha
engordurada. Infletindo outra vez para a direita, ziguezagueou por alguns segundos na turbul�ncia da uma
vira��o mais ativa, reequilibrou-se sobre a Rua Prudente de Morais, reparou nos ciprestes erguidos como
espinhelas gigantescas, no lustro verde das folhas das amendoeiras, nos coqueiros desgrenhados. Pela janela
de um edif�cio, viu um piano com um veleiro e um homem rotundo a praticar uma sonatina de Schmoll.
Voando e revoando, ora se inclinava para um lado, ora para outro, quando o retinir branco de uma
ambul�ncia estilha�ou o ar. Nesse mesmo instante, escanhoado e feliz, um marechal deixava a barbearia
e cruzava, com pasmo e inelut�vel desgosto, por um mo�o de bengala branca, de andar extraordinariamente
apressado, embora fosse cego e estivesse bastante b�bedo. Al�m do mais, o cego cantarolava um samba e
mascava chicles. Mas a gaivota e o marechal, sabendo ambos � saciedade que o mundo inaugura a toda hora
uma por��o de segredos, e a vida � curta para decifr�-los, continuaram em suas rotas.
A gaivota deu bom-dia a um casal de pombos, perdeu um pouco de altura, e a� me viu � janela,
a oferecer uma folha de couve ao meu can�rio; mas fingiu que n�o me viu. Foi � olhar os gansos
fren�ticos sob o abacateiro do quintal aqui pr�ximo. Uma jovem se deslocava para a praia, t�o
esbelta, t�o serena, t�o irresist�vel, t�o harmonizada aos acordes da paisagem, t�o bem estruturada
no espa�o, t�o matinal e marinha, t�o suave, t�o intang�vel e hier�tica, t�o fe�rica na sua beleza
castanha, que s� n�o voou e virou gaivota porque n�o quis.
Adiante, homens de cal�as arrega�adas e bustos nus destru�ram a golpes de marreta uma casa ainda
nova, e onde um flamboyant aguardava paciente a eclos�o das flores. A gaivota tomou a dire��o da
praia, evitou em linha obl�qua um helic�ptero que brincava de espantar os cardumes, e para refrescar
o corpo entrou em v�o vertical sobre a linha de espuma, aproveitando-se do mergulho para pregar tamb�m
um susto em um filhote de papa-terra. Depois, foi ro�ando a cauda pelo mar, enquanto decolava, bateu as
asas com energia, espacejou-se depressa, ganhou momentum, e se foi de novo
planando com orgulho de
p�ssaro de rapina atrav�s da manh� azulad�ssima. Ao lado de uma senhora de coxas opulentas, havia um
senhor espapa�ado, soltando fuma�a pela boca e pelo nariz, com sobrancelhas espessas e arqueadas como
um escuro cormor�o que viesse voando � contraluz.
Um menino magro, que levantava barragens contra o mar, viu a gaivota e
chamou: "Vem aqui, gaivota..." Ela, no entanto, descaiu para as bandas das ilhas, onde duas
traineiras resfolgavam em busca de peixe. O mestre do barco consultou o seu rel�gio de pulso
e era meio-dia. A minha doida gaivota retornou no sentido da terra, cruzou por cima da areia,
retificou o v�o na altura do asfalto, colocando-se paralela � crista dos primeiros edif�cios.
Os pequenos escolares saltavam dos �nibus com sua merendeiras, os oper�rios em constru��o civil
embrulhavam as latas de comida e voltavam ao trabalho, um rapaz de m�scara submarina exibia no
Arpoador um peixe de prata que gesticulava na claridade. Um autom�vel quase atropelou um mendigo
barbudo e sujo, mas de blue-jeans. A gaivota contornou as pedras, lan�ou um olhar a Copacabana e,
navegando c�lere por cima dos edif�cios, atingiu a Lagoa Rodrigo de Freitas, sobrevoou uma favela
cheia de crioulinhos barrigudos, impulsionou-se com mais vigor, foi voando, voando, silhueta
silenciosa no espa�o, perdeu-se no mar alto.
Sem d�vida, o mundo � enigm�tico. Mas, em sua viagem, ela absorvera alguma coisa mais simples do
que a �gua e mais pura do que o peixe de cada dia, alguma coisa que est� na cor e n�o � a cor,
est� na forma dos objetos e n�o � a forma, est� no oceano, na luz solar, no vento, nas �rvores,
no marechal, na sombra que se desloca, mas que n�o � sombra, o marechal, o vento, a luz solar, o
oceano. Alguma coisa infinitamente sens�vel e un�nime, que se esvai ao ser tocada, alguma coisa
indefinidamente acima da compreens�o das gaivotas.
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(O amor acaba: cr�nicas l�ricas e existenciais. 2a ed., Rio de Janeiro: Civiliza��o Brasileira, 2000, p. 99-101).
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