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Arnaldo Jabor
Meninos, eu vi... Eu vi as empregadas gritando, a cozinheira chorando, o r�dio dando a noticia:
"Get�lio deu um tiro no peito!"; eu, pequeno, imaginava o peito sangrando - como � que um homem sai
da presid�ncia para o nada? Meninos, eu ouvi, anos depois, no estribo de um bonde: "O J�nio
renunciou!" Como? Tomou um porre e foi embora depois de proibir o biqu�ni, briga de galo e de
dar uma medalha para o Che, eu vi a hist�ria andando em marcha a r� e eu entendi ali, com o
J�nio saindo, que os bons tempos da utopia de JK tinham acabado, que alguma coisa suja e negra
estava a caminho como um trem fantasma andando pra tr�s; depois, meninos, eu vi o fogo queimar
a UNE, onde chegaria o "socialismo tropical", em abril de 64, quando fugi pela janela dos fundos,
enquanto o General Mour�o Filho tomava a cidade, dizendo: "N�o sei nada. Sou apenas uma vaca
fardada!" Eu vi, meninos, como num pesadelo, a popula��o festejando a vit�ria do fascismo,
com velas na janela e ros�rios na m�o; vi a capa do "O Cruzeiro" com o novo presidente da
Rep�blica de bon� verde, baixinho, feio, quem era? Era o Castelo Branco e senti que surgia
ali um outro Brasil desconhecido e, a�, eu vi as pedras, os an�ncios, os �nibus, os postes,
o meio-fio, os pneus dos carros, como um filme de horror; eu, que vivera at� ent�o de palavras
ut�picas, estava sendo humilhado pela invas�o do terr�vel mundo das coisas reais.
Depois, vi a tristeza dos dias militares, Brasil ame-o ou deixe-o, a Transamaz�nica arrombando a floresta,
vi o rosto pat�tico de Costa e Silva, a gargalhada da primeira perua Yolanda, mandando o marido fechar o
Congresso, vi e ouvi Jorge Curi na TV, numa noite imunda e ventosa de dezembro lendo o AI-5, o fim de
todas as liberdades, a morte espreitando nas esquinas, a gente enlouquecendo e fugindo pela rua em
c�mera lenta, criminosos na pr�pria terra; depois, vi o rosto terr�vel do M�dici, frio como um
vampiro, com sua mulher do lado, muito magra, infeliz, vi tudo misturado com a Copa do mundo de 70,
Pel�, Tost�o, Rivelino e porrada, tortura, sangue dos amigos guerrilheiros her�icos e loucos, eu
sentindo por eles respeito e desprezo, pela coragem e pela burrice de querer vencer o Ex�rcito
com estilingues; n�o vi, mas muitos viram meu amigo Stuart Angel morrendo com a boca no cano de
descarga de um jipe, dentro de um quartel, na frente dos pelot�es, enquanto, em S.Paulo, Herzog
era pendurado numa corda e os publicit�rios enchiam o rabo de dinheiro com as migalhas do "milagre"
brasileiro, enquanto as cachoeiras de Sete Quedas desapareciam de repente; depois eu vi os �rg�os
genitais do General Figueiredo, sobressaindo em sua sunguinha preta, ele fazendo gin�stica, nu, para
a na��o contemplar, era nauseante ver o presidente pulando a cavalo, truculento, devolvendo o pa�s falido
aos paisanos, para n�s pagarmos a conta da d�vida externa, vi as grandes marchas pelas "diretas" e vi,
estarrecido, um micr�bio chegando para mudar nossa hist�ria, um micr�bio andando pela rua, de galochas
e chap�u, entrando na barriga do Tancredo na hora da posse e matando o homem, diante de nosso desespero,
e eu vi ent�o a democracia restaurada pelo bigod�o de Sarney, o homem da ditadura, de jaquet�o, posando
de oligarca esclarecido; vi o fracasso do Plano Cruzado, depois eu vi a volta de todos os v�cios nacionais,
o clientelismo, a corrup��o, a impossibilidade de governar o pa�s, a infla��o chegando a 80 por cento num
�nico m�s, meninos, eu vi as maquininhas do supermercado fazendo tlec tlec tlec como matracas f�nebres de
nossa trag�dia, eu vi tanta coisa, meninos, eu vi a infla��o comer sal�rios dos mais pobres a 2% ao dia,
eu vi o massacre de miser�veis pela fome, ou melhor, eu n�o vi os milh�es de mortos pela corre��o
monet�ria, n�o vi porque eles morriam silenciosamente, longe da burguesia e da m�dia, mas vi os
bancos ganhando bilh�es no over e no spread , d�lares no colch�o, a sensa��o de perda di�ria de
valor da vida, eu vi a decep��o com a democracia, pois tudo tinha piorado, eu vi de repente o
Collor vindo de longe, fazendo um cooper em dire��o a nosso destino, bonito, jovem, fascinando
os ot�rios da na��o, que entraram numa onda pol�tica "aveadada", dizendo: "Ele � macho, bonito e
vai nos salvar...", eu vi o Collor tascar a grana do pa�s todo e depois a na��o passar dois anos
"de quatro", olhando pelo buraco da fechadura da Casa da Dinda, para saber o que nos esperava, eu
vi Rosane Collor chorando porque o presidente tirara a alian�a, eu vi a barriga de Jo�ozinho Malta,
irm�o da primeira-dama, dando tiros nas pessoas, eu vi a piscina azul no meio da caatinga, eu vi
depois a sinistra careca de PC juntando o bilh�o do butim, eu vi Z�lia dan�ando o bolero com Cabral
em cima de nossa cara, eu vi a guerra dos irm�os Collor, Fernando contra Pedro e, depois, como numa
saga grega, eu vi o c�ncer corroendo-lhe a cabe�a, eu vi o impeachment , eu vi tanta coisa, meninos,
e depois eu vi, por acaso, por mero acaso, por uma paix�o de Itamar, eu vi o FHC chegar ao poder, com
a �nica tentativa de racionalidade pol�tica de nossa hist�ria num antro de fisiol�gicos e ignorantes
e, a�, eu vi a maior campanha de oposi��o de nossa �poca, implac�vel, sabotadora, eu vi a inveja
repulsiva da Academia contra ele, eu vi a trai��o de seus aliados, todos unidos contra as reformas,
uns agarrados na corrup��o e outros na sobrevida de suas doen�as ideol�gicas infantis.
E agora eu vejo o estranho desejo de regresso ao mundo do atraso, do erro e das velhas utopias.
Vejo a direita se organizando para cooptar a oposi��o, comendo-a, vejo um ex�rcito de oligarcas
se preparando para a vingan�a, vejo ACM, Barbalhos e Sarneys prontos para tomar o Congresso de
assalto, para impedir qualquer mudan�a e voltar aos bons tempos da zona geral. Meninos, voc�s
viram tamb�m, mas acho que esqueceram.
Publicado
no Jornal O GLOBO - 09 de julho de 2002
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