Vergonha da Vergonha

Cristovam Buarque

Pel� � o maior patrim�nio vivo do Brasil. Talvez em toda a historia brasileira ningu�m tenha conseguido demonstrar de forma mais universal o g�nio nacional. Por isso, choca ouvir o s�mbolo de nosso �xito afirmar que tem vergonha do seu pa�s. Ao dizer isso, ele mostrou o sentimento de envergonhada indigna��o diante da pobreza, da viol�ncia, da corrup��o na vida brasileira, especialmente entre os pol�ticos e os que conduzem os destinos do pais. Maior ainda � a vergonha de perceber que Pel�, envergonhado como est� com os destinos do Brasil, provavelmente votar�, outra vez, escolhendo os mesmos que fazem o Brasil que o envergonha. Porque a elite brasileira prefere viver na vergonha a arriscar a perda dos seus privil�gios.

N�o � apenas ele. Em um de seus programas recentes, a grande apresentadora Hebe Camargo disse que, se fosse colocar os nomes dos corruptos um sobre o outro, a altura do audit�rio do SBT n�o seria suficiente.Ela falava lembrando o caso especifico de S�o Paulo, onde sempre votou nos que agora a envergonham. E aos quais certamente vai preferir, para n�o votar em nomes que representem um novo do qual ela tem medo.

A elite brasileira est� descontente com o Brasil, mas nas elei��es prefere que ele continue como est�, a mudar amea�ando qualquer dos seus interesses e privil�gios.

Quando a elite brasileira declarou a independ�ncia, preferiu manter um imperador, filho do rei da metr�pole, para n�o correr o risco de um presidencialismo que poderia escolher algum plebeu, "antes que algum aventureiro lan�asse m�o". Quando libertou os escravos, n�o lhes deu terras, nem lhes permitiu freq�entar escolas, com medo de um Brasil onde os negros tivessem for�a. Proclamou uma republica, dizendo "fa�amos a revolu��o, antes que o povo a fa�a". N�o deixou que ela fosse constru�da por meio da educa��o universal e de qualidade dos filhos do povo. Fez uma rep�blica aristocr�tica, com doutores e excel�ncias no lugar dos condes e bar�es. Fez um desenvolvimento sem distribuir o resultado. E cada vez que alguma lideran�a propunha mudan�a de rumo, a elite envergonhada com a pobreza ao redor n�o tinha vergonha de dar um golpe militar para que a pobreza n�o fosse eliminada �s custas de qualquer dos seus privil�gios.

Em 1989, ofereceu-se a possibilidade de arriscar um presidente com proposta alternativa, mas a elite preferiu n�o arriscar. N�o aceitou o risco de eleger um oper�rio que nenhuma culpa tinha com o passado que envergonha. Preferiu um dos seus, apesar do passado de envolvimento nas vergonhas nacionais. Arrependeu-se envergonhada, mas quatro anos depois repetiu o voto nos mesmos partidos e pol�ticos, ao redor de Fernando Henrique Cardoso, que ha d�cadas constr�em a vergonha que ela diz sentir.

Eles mudaram o nome do candidato, para nada mais mudar. Agora, como Pel�, a elite manifesta indigna��o, vergonha, mas certamente vai repetir o voto. Votar� naqueles de quem diz ter vergonha. Isso at� poderia ser justificado, se as op��es em vista representassem revolu��es radicais. Mas todas s�o moderadas. Prop�e-se construir um pais decente, com uma democracia republicana, que respeite o povo, onde os direitos a justi�a, a seguran�a e a uma parte digna do produto nacional sejam assegurados a todos. Um pa�s com escola para todas as crian�as, sistema de sa�de assegurado a todas as fam�lias, todo adulto com direito a um emprego.

Isso exige mudan�a de postura, invers�o nas prioridades, elimina��o de privil�gios cada dia mais dif�ceis de manter. Em troca, oferece o orgulho de viver em um pais decente. Todos querem isso. Mas Pel� e o resto da elite n�o v�o correr qualquer risco. V�o votar em um deles, que n�o represente mudan�as. E daqui a anos voltar�o a dizer que sentem vergonha.

Sinto um profundo orgulho de meu pa�s, de um povo que � capaz de suportar tanto sofrimento, sem desesperar, de um pa�s que tem um Pel�; mas sinto vergonha da vergonha que a elite diz sentir, e at� sente, preferindo nela continuar, por medo de perder qualquer um de seus privil�gios. Sinto vergonha de quem sente vergonha mas nada faz para eliminar as causas de sua vergonha.