A NOSSA BELA VISTA

Zuenir Ventura

Quando se sai de f�rias e viaja, e eu estou fazendo as duas coisas, n�o se sabe se � melhor a ida ou a volta. Nos dois casos, h� uma certa confus�o de sentimentos: pena de sair, achando que vai acontecer uma por��o de coisas sensacionais enquanto a gente estiver fora, e vontade de se desligar de tudo, n�o saber de nada, viver outra vida, nem que seja por uma semana. Depois, a mesma coisa: � �timo chegar, mas em geral as f�rias terminam no melhor da festa.

Vai ver que � por isso que o governo quer votar logo o projeto que flexibiliza as leis trabalhistas, acabando com essa anacr�nica folga de 30 dias corridos. Por que n�o dividi-la em cinco ou seis vezes? Afinal de contas, o presidente n�o precisa de f�rias para viajar ao exterior.

Do que mais sinto falta � falta, n�o saudade � � da paisagem. O olhar � o sentido que mais se ressente l� fora. Fazem falta as montanhas, o mar, a luminosidade, o p�r-do-sol no Arpoador, a praia amanhecendo. Depois v�m, num belo sincretismo sensorial, misturando tudo, os sons de todo dia, o cheiro de maresia, o calor do sol na pele, o gosto de certas comidas. Mas a vista est� em primeiro lugar. Da� eu ter acompanhado com interesse essa campanha A Maravilha do Rio, para eleger o s�mbolo mais querido da cidade, entre seis op��es: P�o de A��car, Corcovado, Lagoa Rodrigo de Freitas, Ba�a de Guanabara, praias e o est�dio do Maracan�.

N�o � uma escolha f�cil, j� que poucas cidades t�m tantos cart�es-postais naturais como essa nossa, espremida entre a montanha e o mar, onde vigora mais o espa�o do que o tempo, mais a geografia do que a hist�ria. O arquiteto Augusto Ivan observou muito bem que, ao contr�rio de Paris, Nova York, Roma, Veneza, Londres, que evocam �imagens s�lidas, concretas�, o Rio �traz imediatamente � lembran�a o sol, a mata, as montanhas, depois, talvez, o resto, tamanha a for�a da natureza carioca�.

Se fosse para escolher somente entre os �cones inevit�veis, acho que ficaria mesmo com o Corcovado, pelo carisma, universalidade, carga de significados e por ser a melhor s�ntese simb�lica do Rio. Com todo respeito, por�m, se pudesse fazer uma mudan�a, poria S�o Sebasti�o no lugar do Cristo. Acho que o nosso padroeiro tem mais a ver com o carioca. M�rtir, est�ico, resistente e zen, ele representa melhor o esp�rito de uma cidade t�o sofrida, toda flechada ao longo de sua hist�ria, at� hoje.

De qualquer maneira, o Corcovado e o P�o de A��car t�m sido unanimidade entre os viajantes estrangeiros, ou quase, pois h� quem n�o goste. O antrop�logo franc�s L�vy-Strauss, por exemplo, autor de �Tristes tr�picos�, n�o achou bonita a Ba�a de Guanabara e escreveu que aqueles dois cart�es-postais eram �cacos perdidos nos quatro cantos de uma boca desdentada�. Onde ele viu uma boca sem dentes outros, inclusive compatriotas seus, perceberam que havia ali a evoca��o metaf�rica de ventre e �tero, convidando, com suas sendas, reentr�ncias e depress�es profundas, ao gozo de viajantes e forasteiros. Se n�o fosse implic�ncia, a gente poderia dizer que esse antrop�logo de gosto exigente, que achou tudo t�o feio no Rio, elogiou recentemente o livro de Jos� Sarney.

Mas essa miopia de L�vy-Strauss � rara. Dificilmente se encontra algum estrangeiro que n�o se deslumbre com a paisagem carioca. Mesmo a poetisa Elizabeth Bishop redimiu-se. Como se sabe, ela � autora da famosa frase �O Rio � um cen�rio para uma cidade maravilhosa, mas n�o � uma cidade maravilhosa�. Ao chegar, em 1951, achou �tudo t�o sujo, t�o desorganizado! Como � que eles conseguem viver aqui?�. Mas no final mudou completamente de opini�o e confessou que a cidade que ela tanto odiou ajudou-a a sobreviver.

Outro dia, a prop�sito da campanha A Maravilha do Rio, fiz uma enquete num grupo: �Qual a paisagem de que voc� mais gosta?� Valia n�o s� paisagem, mas tamb�m vista, cantinhos, peda�os ou aspectos da cidade. Voc�s sabem qual foi uma das vistas mais votadas? Aquela que se tem da Lagoa ao sair do T�nel Rebou�as. Pude constatar depois que outras pessoas achavam a mesma coisa. Algu�m discorda?

O Rio tem uma paisagem para cada gosto. O problema � a paisagem humana. Como deixar de ser o belo cen�rio de uma trag�dia? (Mas isso � para outra ocasi�o) Tom Jobim dizia que a melhor maneira de ser ver Nova York � de maca. Aqui, n�o: pode-se ver deitado, de lado, de cima, n�o importa, a beleza � a mesma, de prefer�ncia com curva. Oscar Niemeyer, poeta do concreto armado, tem raz�o ao fazer poesia com as palavras:

�N�o � o �ngulo reto que me atrai/Nem a linha reta, dura, inflex�vel, criada pelo homem/O que me atrai � a curva livre e sensual, /A curva que encontro nas montanhas.../Nas ondas do mar,/No corpo da mulher preferida�.

At� a volta, Cidade Maravilhosa.

Copacabana - Foto de Paulo A. Teixeira


O GLOBO - 30/03/2002


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06-jun-2008