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O Rio de Janeiro est� cinza. Um friozinho paulista invade minha alma, trazendo-me a recorda��o do tempo em que eu morava em outro sonho feliz de cidade e morria de saudade desta t�o maravilhosa. Lembro-me que uma vez, quando a saudade daqui me
corro�a, fui a um bar, que tinha como publicidade ser uma c�pia dos botecos do Rio de Janeiro, uma id�ia bem original. Fui meio a contragosto e, � �bvio, fiquei reparando o que o lugar poderia ter de parecido com os botecos do
Rio. De repente meu acompanhante de copo me cutucou:
- Olha quem est� a� ao lado.
Perdi o ar. Tarde cinzenta e fria, um boteco parecido com os da minha cidade e Martinho da Vila senta-se
� mesa ao lado. Foi o grande click! Conclu� que poderia ter "aquilo tudo" todos os dias e, em pouco tempo, voltei a morar na cidade maravilhosa. Gosto dos bares de S�o Paulo, apesar de os achar demasiadamente caros. No bairro do Brooklin
h� um boteco muito interessante, que s� tem cerveja, pinga e, aos s�bados, o Portugu�s faz um
churrasquinho dos melhores, que as m�s l�nguas dizem ser churrasco de gato.
Pensa que em Sampa existe s� boteco "Fashion"? N�o meu irm�o, a paulic�ia � desvairada sim. Enfim, os botequineiros profissionais localizam botecos de qualidade em qualquer cidade deste pa�s.
Entra da janela o Rio de Janeiro frio; d� vontade de ficar deitada debaixo do cobertor, assistindo ao Globo
Esporte e vendo a alegria da minha querida amiga Glenda. Ai, que bom! Mas um barulho vem da rua, a gargalhada de um homem, uma buzina e o outro:
- Passa l�, t� indo pro Jobi.
Um comich�o me faz lembrar que estou no Rio de Janeiro e que j� passa das dez, sinal de que
os amigos cobotecanos, como diz o
Jo�o Ubaldo Ribeiro, j� se localizam em suas cadeiras, nada acad�micas, mas numeradas pelo h�bito. Deitada em minha cama ajeito o cobertor, dou um sorriso e decido me desvencilhar do calor das cobertas e me aventurar a ir ao encontro de uma bel�ssima caipirinha de lima, que os mais aristocratas fazem quest�o de chamar de Caipirinha de Lima da P�rsia, como se a localiza��o geogr�fica e internacional dessem a essa bebida maravilhosa alguma qualifica��o a mais. Como se pudesse!
Um banho, um perfuminho, um batom, quem sabe encontro o Pr�ncipe Encantado no boteco? O caf�, pois ningu�m � de ferro e s� ele para me acordar de verdade, e... rua p'ra que te quero. � Domingo, dia sagrado, e da cal�ada encaro o Cristo, escondido atr�s das nuvens, mas completamente vis�vel para os que sabem da exist�ncia dele ali. Fa�o uma rever�ncia e sigo pelo "circuito das �guas", como os b�bados inveterados chamam as ruas do Leblon. Entro na Dias Ferreira, passo pelo Azeitona, onde uns quinze homens, todos "coroas", se re�nem numa felicidade sem par, brincando entre si e dizendo improp�rios e delicadezas �s mulheres que passam. Mais
� frente, o Tio Sam, onde um homem solit�rio espera a chegada do amigo fiel que, por enquanto, deve estar em outro bar. Talvez n�o seja t�o
solit�rio; ele tem a companhia dos pensamentos, um copo de chope e a visibilidade que sua vida comum nunca lhe daria, pois qualquer um que passe � visto e quase necessariamente se vira e o
v�. O barulho alegre do boteco traz a aten��o para dentro deste e
conseq�entemente para o homem que traz na alma a recusa de ser feliz, obtendo vislumbres de alegria nos finais de semana botequineiros do Leblon.
Mas deixa de falar dos outros, h�bito pouco digno, mas existente tamb�m e, at�, nos botecos
cariocas. Ali�s quanto mais homens numa mesa mais se fala da vida de outrem. � p�reo duro com sal�o de cabeleireiros! E eles nem v�o reclamar desta
observa��o; v�o esbo�ar um sorriso e recordar o �ltimo coment�rio que fizeram. Bar funciona como terapia de
grupo; todos aprendem com as experi�ncias alheias.
Continuo a andar, passo por um restaurante de massas, levo um susto com um cachorrinho que est� sempre na janela de uma casa, mas que sempre me surpreende, cumprimento o rapaz da farm�cia e chego ao meu boteco/restaurante, o Flor do Leblon.
A recep��o � divina e comum: Ela chegou! Vamos mudar de assunto que ela chegou!
Debochado e divertido, esse pessoal, que parece uma fam�lia.
"Arna�do", o ex-executivo de mercado financeiro, agora aposentado e fazedor de arte pela Internet, sua maravilhosa esposa
C�lia o casal cantora/ginecologista,
Regina e Luiz Jorge; a
Frida, nossa judia de plant�o e facilitadora dos meus neg�cios com os chineses ambulantes, que vivem me empurrando bugigangas, que s� duram um dia; enfim gente que me aquece a alma. Mas tem ainda muito mais, temos o
Miltinho e a
Jane; o
Paulo Cachoeira; o
Pir�o; o
Clayton
e S�rgio; o
Marcus Vin�cius, este que � nosso m�dico
full time, que vive a socorrer amigos e desconhecidos nos bares do bairro; al�m de muitos outros companheiros. |
Rosane
Santiago chegando ao Flor |
Falando em m�dicos, se junt�ssemos todos os m�dicos do boteco, poder�amos fazer um bloco de carnaval, os Anestesistas do Copo ou os Ginecologistas da Cacha�a.
Come�o a conversar sobre a Bahia com meu escritor baiano preferido, que diante da minha incredulidade amea�a e prova que sabe cantar m�sicas de capoeira vindas diretamente do rec�ncavo para as esquinas do Leblon. E n�o � que o homem � mandingueiro? As pessoas passam encolhidas pelo frio e olham sorridentes aquele tenor baiano, com a anima��o de um menino, se exibindo para uma mesa alegre que o ouve enquanto conta piadas ou reclama do
rissole de camar�o. Ali�s, este card�pio "engordante" de boteco chega � beira do surrealismo. Quem pensa em um �nico dia comer um feij�o com torresmo, pastel de carne, espetinho de frango e levar espaguete com frutos do mar para degustar em casa? J� vi isso. Juro! E quem freq�enta boteco, qualquer um, tamb�m viu, disso para mais.
� ent�o que vejo chegar � mesa um dos nossos engraxates de plant�o, que j� virou amigo de alguns e afilhado de
outros. Fico reparando na face bonita do menino e, num plano seq��ncia, me assusto com a gargalhada expressiva do m�dico
Gemmal
brincando com o gar�om, nosso querido e rabugento
Ant�nio, que � o �nico que me serve sem perguntar como quero o guaran�, "sempre com laranja e sem gelo". Esta � mais uma caracter�stica dos
botecos: voc� se acostuma a tal ponto com o servi�o de um gar�om que se ele for trocado � um problema aceitar outro.
No nosso "Flor" contamos com algumas comodidades, al�m da farm�cia Edith, grudada ao boteco e reduto dos hipocondr�acos de
plant�o. Em frente situa-se a banca de jornal do
Carlinhos
que, reparo, amea�a
fechar. Apresso-me em sair da mesa e comprar o jornal . Da banca, de um novo �ngulo, observo aqueles homens e mulheres felizes, apesar das vidas t�o cheias de confus�es, doen�as muito s�rias, problemas com a fam�lia ou financeiros, inabilidade em relacionamentos, enfim, situa��es
por que todos passam ou um dia vir�o a passar, freq�entadores de botecos ou n�o. Fixo o foco do olhar no sorriso baiano de um, na for�a de vontade
de viver de outro, na delicadeza e na beleza de algu�m, na simplicidade ao se brindar � sa�de de todos. De longe, minha vista fica marejada de l�grimas e pela minha cabe�a passa uma frase que poderia ser filosofia de boteco, mas � de Charles Chaplin: " A maneira mais simples de se abordar um assunto � sempre a melhor".
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