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A guerra come�ou no domingo, mas antes disso, na sexta-feira, fui ao Centro,
fazer o programa de minha amiga Leda Nagle, nosso velho e bom "Sem censura", e,
como termina �s seis da tarde, a hora do Angelus, com todas aquelas ora��es
voando pelos ares, eu resolvi subir a ladeira, em dire��o a Santa Teresa.
Com vontade de parar o carro e admirar a noite caindo sobre a cidade, perceber
a palheta, antes da mancha de nanquim esconder o c�u - um pouco assustado por
cortar a floresta, j� na escurid�o, mas feliz por escapar do engarrafamento por
toda a parte, l� embaixo - eu ia vendo, nos v�os do casario de ent�o - os
carros imobilizados, contas avermelhadas no colar do crep�sculo, quase que voando
por entre as �rvores. Eu seguia contornando o desenho do corpo de S�o Sebasti�o,
as flechas magoando a carne e o sangue espalhado num resto de c�u, l� longe, prestes
a ser engolido pela boca da noite.
E houve um momento, a noite j� tinha ca�do e eu me perguntava, no sacolejo das
curvas, se teria mesmo feito a escolha acertada, sempre subindo, sempre para o
alto, mas houve um momento em que a mata afastou a cortina e o Cristo apareceu
a meu lado - um pequeno esfor�o e eu poderia ter tocado seu ombro, assim me
pareceu. N�o pude, entretanto, ver seu rosto, estava meio de costas para mim,
mas nunca antes estive t�o pr�ximo, nunca antes t�o a meu lado, pensei - lembrando
das in�meras vezes em que estivemos prostrados a seus p�s, em adora��o, em
sil�ncio respeitoso ou em surdo ressentimento. Tantas e tantas vezes eu
supliquei e estendi meu olhar at� sua figura, tantas e tantas vezes desejei
que ele tivesse sido mais generoso e menos implac�vel em suas decis�es.
Acabei perdendo o medo e parei um instante para olhar a vida iluminada dos
milh�es de habitantes da cidade, recebendo o ar frio do oceano, que sacudia as
folhas nas �rvores. Ali, encostado no gradil de beijos roubados, respira��o
ofegante e desejo queimando a pele, ali no meio da mata, olhei para o ombro
do Senhor e imaginei tanta coisa � parado ali, o mesmo olhar sobre a beleza
das cidades iluminadas, vistas do alto, o mesmo olhar do menino interiorano
que veio passar uma semana conosco. Sentou-se no carro e, no meio da serra
de Petr�polis, vendo o clar�o do Rio, ao longe, exclamou:
- Olha que tanto de estrela!
(Esse mesmo menino, ao ver Cl�udia Jimenez interpretar a dezena de personagens
de 'Como encher um biqu�ni selvagem', sozinha no palco, falando pelos
cotovelos, apertou meu bra�o, numa li��o de dar d� e gritou: 'Ela t� doida, s�!
Corre que ela t� doida!')
Foi engra�ado eu me lembrar dele, naquele momento, olhando o mar de estrelas
a meus p�s, tendo o Cristo a meu lado - meio de costas, n�o lhe avistava sequer
o perfil - como fria testemunha. Eu apertei o ferro da grade descascada e
tive vontade de gritar para o mundo que n�o podia me ouvir:
- Olha que tanto de estrela!
Mas guardei sil�ncio e preferi ouvir a m�sica do vento nas ramas e o assobio das
nuvens errantes que voam baixo, enchendo tudo de fuma�a azulada, como se um sortil�gio
pairasse sobre as vidas das gentes, os cora��es urbanos congelados no salto. E ia
pensando, uma id�ia que gemeu l� dentro.
(O que mais eu posso lhe dizer que j� n�o tenha dito? O que mais me traz
esta noite de surpresa?, eu fui me inquietando, caminhando para o autom�vel,
um vento estranho me empurrando pelas costas. Um vento jovem, brincalh�o, que
me deixou assustado com a for�a de seu sopro.
O que mais eu posso lhe dizer que j� n�o tenha dito?
Que gente n�o pertence a gente? Isso eu j� lhe disse. H� algum tempo)
Finalmente, voltei para o carro e, quando a respira��o normalizou-se,
quando o medo sumiu do cora��o, das estrelas inating�veis, pulei para as
estrelas de carambola, cortadas � faca, e da�, aproveitando a dan�a da
estrada, fui lembrando da correria de Cosme e Dami�o, na Ilha, ano ap�s
ano, p�s descal�os, peito nu, uma trilha de chocolate manchando a pele - as
sacolas nas m�os dos meninos, cheias de doces coloridos - ret�ngulos de gel�ia
de duas cores, amarela e vermelha, salpicados de a��car, o cone cheio de massa
branca, p�-de-moleque, pa�oca, pipoca doce, ab�bora cristalizada, um ou outro
figo no saquinho mais abastado - assim corr�amos n�s, crian�as dos setembros
idos, sempre aquela luz por toda a parte e o mar encrespado no fim da tarde,
quando espalh�vamos o produto da colheita sobre a mesa da cozinha - doces
e doces nas m�os dos filhos do Brasil.
Antes de iniciar a descida em dire��o � Barra, arrisquei um �ltimo olhar e
recitei baixinho uns versos de Lamartine de que gosto muito: 'e que minha voz
possa ao Senhor se erguer, como fuma�a adocicada, balan�o de urna perfumada,
nas m�os dos meninos a correr'.
E, quando dei por mim, j� era v�rzea. Quando me lembrei de prestar
aten��o, j� era lar.
Publicado no GLOBO de 11/10/2001
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