O apag�o me lembra as tristes luzes da inf�ncia

Arnaldo Jabor

Quando tive sarampo, puseram um papel vermelho na l�mpada do teto. O quarto todo ficou todo inflamado, rubro como eu. Por qu�? Mandinga caseira para igualar minha doen�a com o mundo l� fora?

Da rua vinham ru�dos remotos: cachorro latindo, o preg�o do vassoureiro, gritos de crian�as, vizinhas conversando, cigarras. A tarde ca�a negra e roxa... Agora, 50 anos depois, estou de cama, com antibi�ticos e cortisona, escrevendo com dedos tr�mulos... Virose renitente. Mas acho que meu mal vem das bact�rias da pol�tica, que minha mol�stia � um apag�o defensivo contra o espet�culo de incompet�ncia e sabotagem que assistimos, contra o show de barbalhos, acms e itamares... No entanto, esta escurid�o que nos amea�a me trouxe funda nostalgia da inf�ncia.

N�s mor�vamos em casa de sub�rbio, pequena, com quintal, galinha e mangueira. Tudo era baldio em volta, toda a precariedade do sub�rbio, em preto-e-branco, t�mida, era vis�vel a olho nu. Tudo era cambaio, troncho. Hoje, esta pobreza � disfar�ada pela falsa vertiginosidade do progresso...

As noites eram mais escuras. Volta e meia, faltava energia; tudo se apagava de repente (com gritos de 'Aiiii!') e minutos depois a luz voltava, com um 'ahhhh!' geral de al�vio ouvido na vizinhan�a.

Era curta minha paisagem noturna de menino: rua, poste amarelo, fogueira no capinzal, a luz verde no r�dio de meu pai, onde eu ouvia o 'Anjo' (n�o havia ainda a janelinha da TV Tupi), a luz da Santa Terezinha de minha m�e no corredor, a luz da estrela de n�on da cervejaria Princesa que meu av� me mostrava, a luz do carbureto do pipoqueiro, a luz nas po�as, com a lua tremendo na �gua, bal�es coloridos no c�u, tr�mulos de lanterninhas, bal�es-tangerina, bal�es-charuto, bal�es cravejando o c�u como gal�xias brilhantes. De noite, eu era um menino triste, olheiro, pelos cantos. De dia, meu grande consolo era que o sol era meu, a chuva era minha e chegava de longe, por atr�s das grandes choronas onde urubus pousavam na neblina, minhas eram as nuvens-camelo, as nuvens-girafa, as nuvens-cavalo e eu as desenhava deitado no ch�o de terra onde as formigas eram minhas, os caramujos nas folhas eram meus, sua gosminha madrep�rola era minha, as jaboticabas, as mangas-rosas eram minhas, tudo era parte de um universo coerente, feito para mim, minha irm�, minha m�e, pai, av�s, tudo era meu cen�rio, meu teatro, meu mundo pleno e s�lido, eu, �rvore, passarinho, cachorro, jaboticaba, terra, chuva, tudo era uma coisa s�...

Isso me consolava e fortalecia, pois eu j� percebia vagamente algumas dram�ticas fissuras na vida de minha fam�lia, uma infelicidade latente na sala, choros e gritos atr�s da porta do quarto, meu pai chutando o sof� dec� de minha m�e em prantos, enfurecido, pois ela tinha sa�do sem meias nylon, o rosto de meu pai, feroz militar voltando de v�os de avi�o com capacete e macac�o e eu vendo atrav�s disso tudo alguma coisa fr�gil em nossa vida que n�o ia dar certo e que eu n�o entendia bem o que era. Mas, toda a melancolia da noite familiar, eu esquecia de dia, com as flores vagabundas, os galhos da mangueira, os chutes, as correrias, que davam-me a certeza de estar num mundo claro, meu.

Um dia, come�aram a falar de 'eclipse'. O que era isso? Ia acontecer o mais importante 'fen�meno', o maior eclipse da historia da ci�ncia, o eclipse total do sol e o Brasil era o lugar ideal para observ�-lo. Me explicaram e eu n�o entendi. Eu tinha uns seis anos. E come�aram a chegar cientistas estrangeiros, aparelhos, comitivas que o r�dio celebrava. O Brasil se sentia importante, pois servia ao menos de camarote de eclipse.

Eu fui para o quintal, olhar o c�u. Mandaram-nos quebrar garrafas e enfuma�ar cacos de vidro para ver o sol sem ficar cego. 'Se bobear, fica cego!'. A molecada olhava o c�u. At� que aconteceu. O r�dio berrava a hora H, como narrando um jogo de futebol... 'Olha l�, olha l�!...T� chegando!....' E o sol foi sendo invadido por uma sombra, e tudo ficou negro de repente no meio do quintal. Caiu uma noite s�bita, cinzenta, sinistra - por quanto tempo? Os passarinhos pararam de piar, as folhas ficaram pretas, o vento ficou vis�vel, minha casa se apagou ao fundo, com meu pai, minha m�e e as empregadas na varanda, todos olhando para cima, com cacos de vidro na m�o e eu fiquei olhando minha fam�lia. E, ent�o, eu vi, vi, no escuro do eclipse, a fragilidade daquelas pobres pessoas de sub�rbio, eles, eu, batidos por um vento frio, tr�mulos de espanto com o c�u, n�s todos, ali, desamparados. Baixou-me um estranho sentimento que hoje eu interpreto como tristeza, como uma sensa��o de que a casa, minha m�e, papai de uniforme de capit�o, minha irm�zinha chorando, a triste empregada com pano branco na cabe�a, as �rvores, as galinhas, tudo ia passar, de que n�s �amos nos apagar tamb�m, pois tudo tinha ficado mais longe, como os urubus mais longe, quase no infinito, na bruma. Hoje, entendo que a minha fam�lia ali, minha vidinha de crian�a, foi deslocada de repente pelo eclipse... O sol n�o era mais meu, o c�u, as �rvores com urubu, meus pais, nada era fixo, nada era nosso; eu senti que nossa pobre fam�lia viajava num tempo escuro, sem controle, como um barco na correnteza das noites e dias. O mundo tinha vida pr�pria, o sol n�o se importava conosco, �ramos desamparados. Havia gente mais importante que n�s, os estrangeiros, os cientistas, e n�s ali, de cara para cima, olhando um c�u preto.

Hoje, no Brasil, nos sentimos assim: Deus n�o � mais brasileiro, a natureza n�o � nossa m�e, ignora-nos, como as elites seculares. Com o racionamento, descobrimo-nos sozinhos, sem luz, sem nada. H� 54 anos, com o eclipse, vi o drama de minha fam�lia da classe m�dia dos anos 40. 'Fen�meno', falava o r�dio. Que � 'fen�meno'? Descobri confusamente que 'fen�meno' �ramos n�s...

Extra�do do Jornal O GLOBO - 25 de junho de 2001