O apag�o poder� nos trazer alguma luz

Arnaldo Jabor

Nossa ilus�o de Primeiro Mundo falsificado caiu por terra.

N�o tivemos guerra, n�o tivemos revolu��o, mas teremos o apag�o. O apag�o vai ser uma porrada na nossa auto-estima, mas ter� suas vantagens.

Com o apag�o, ficaremos mais humildes, como os humildes.

A grande onda narcisista da democracia liberal ficar� mais cabreira, as gargalhadas das colunas sociais ficar�o menos luminosas, nossas dentaduras menos brancas, nossos flashes menos gloriosos. Baixar� o astral das estrelas globais, dos grandes comedores, as bundas ficar�o mais t�midas, os peitos de silicone menos arrebitados, ficaremos menos arrogantes dentro da escurid�o que se abater� em nossas vidas de classe m�dia. H� algo de castigo de Deus nesta porra toda, pois ficaremos mais parecidos com as periferias, para quem sempre houve o apag�o de vidas e sonhos, haver� algo de becos escuros, de becos sem sa�da, de favelas tristes, haver� um baque em nosso egoismo, nossas peruas e nossos cafajestes ter�o de maneirar um pouco. A euforia de Primeiro Mundo falsificado cair� por terra e dar� lugar a uma bel�ssima e genu�na infelicidade.

O Brasil se lembrar� do passado agropastoril que teve e que, escondidamente, ainda tem; teremos saudades do mat�o, do luar do sert�o, da R�dio Nacional, do acendedor de lampi�es da rua, dos candeeiros, das l�mpadas de carbureto dos carrinhos de pipoca, lembraremos das tristes noites dos anos 40, como das noites dos blackouts da Segunda Guerra, mesmo sem os submarinos, sem navios alem�es, apenas sinistros assaltantes nas esquinas apagadas.

O apag�o nos lembrar� dos velhos carnavais: "tomara que chova tr�s dias sem parar." Ou: "Rio, cidade que nos seduz, de dia falta �gua, de noite falta luz!" Lembraremos dos velhos discos de 78 rpm, dos cantores com som prec�rio, das TVs preto e branco, de um Brasil mais micha, mais pobre, cambaio, troncho, mas bem mais brasileiro em seu caminho da ro�a, que o Golpe de 64 interrompeu, que esta mania prostitu�da de Primeiro Mundo matou a tapa.

H� algo de maldi��o nisso tudo, castigo pela destrui��o de Sete Quedas, o pre�o a pagar pelos dem�nios ecol�gicos de Itaipu, de Tucuru�, do tal "Brasil pot�ncia", das grandes gorjetas, das represas, dos 50 bilh�es de d�lares de Angra 1 e 2, dos bilh�es roubados nas grandes hidrel�tricas arcaicas j� na �poca em que se sabia da melhor utilidade das pequenas usinas e de outras fontes de energia. Lembraremos de Geisel, de M�dici, dos milicos que nos marcam a vida at� hoje, nos entregando uma democracia de caixa quebrada, nos lembraremos tamb�m dos canalhas que pilharam o Tesouro, com sua fome de 20 anos, dos corruptos, das institui��es vagabundas que nos ajudaram a falir, nos obrigando a um ajuste fiscal desumano, nos obrigando a uma governan�a miser�vel, sem desenvolvimento, sem projeto, limitada a arrumar as contas da fal�ncia.

O apag�o nos mostra que somos subdesenvolvidos sim, que toda esta superestrutura de del�rios modernizantes est� em cima de p�s de barro. O apag�o � um upgrade nas periferias, nos "bondes do Tigr�o", no mundo funk, nos lembrando da escurid�o f�sica e mental em que eles vivem, do lado de fora de nossas cercas e avenidas iluminadas. O apag�o nos far� mais pensativos, mais metaf�sicos, mais conscientes de nossa pequenez no mundo. N�o temos terremotos e vulc�o, mas temos apag�o. Seremos mais po�ticos, olharemos as noites estreladas e pensaremos: "a solid�o dos espa�os infinitos nos apavora", como disse Pascal ou ainda, se mais l�ricos, recitaremos Victor Hugo: "a hidra-universo torce seu corpo cravejado de estrelas..."

O apag�o nos far� pensar em Deus; n�o este "deus" das classes m�dias, da missa de domingo, sempre pedindo amor, sa�de e dinheiro, nem do "deus" dos universais dos 10% para os bispos da TV, mas o Deus-natureza que tem uma vida pr�pria, um ritmo seu, o Deus-universo que despreza nosso progresso dependente. O apag�o nos dar� medo de um grande flagelo que poder� nos fazer migrar das grandes cidades, deixando para tr�s as avenidas paulistas secas e mortas. O apag�o nos far� entender a vida dos flagelados do Nordeste, que sempre olharam o nosso lindo c�u de anil como uma amea�a. O apag�o nos far� contemplar o azul sem nuvens, pois aprendemos o que a natureza � quando n�o obedecida e respeitada.

O apag�o nos far� mais parcimoniosos, mais respeitosos, mais p�blicos, e acreditaremos menos nos arroubos de auto-sufici�ncia. O apag�o vai dividir nossas vidas, de novo, em dia e noite. As noites e os dias ser�o n�tidos, sem esta orgia de luzes que a modernidade celebra para nos fascinar como diamantes sobre o pano negro de sujeira, que nos fazem esquecer as cidades que, de perto, s�o feias e injustas. Vai diminuir a f�erie do capitalismo enganador.

Vamos dormir melhor com o apag�o, talvez amemos mais a verdade dos dias e menos a mentira das noites . Acabar� a ilus�o de clubbers e playboys que ter�o medo dos "manos" em cruzamentos negros e talvez o amor fique mais recolhido, mais sussurado, mais tr�mulo e desamparado. Talvez o sexo se revalorize como prazer calmo e doce, talvez fique menos rebolante e voraz. Talvez aumente a popula��o, com a diminui��o das divers�es eletr�nicas noturnas.

O apag�o nos far� mais inseguros na rua mas, talvez, mais amigos nos lares e bares. Estaremos de volta a nossa Idade da Pedra, aos fundos de caverna onde n�s, macacos, nos proteg�amos, mais solid�rios, com pavor das grandes feras.

Finalmente, o apag�o nos far� mais perplexos, pois descobrimos que o Brasil � mais absurdo que pens�vamos, pois nunca entenderemos como, com tr�s ag�ncias cuidando da energia, o governo foi pego de surpresa por essas trevas t�o longamente anunciadas. S� nos resta o consolo de saber que, no fim, o apag�o vai nos trazer alguma luz sobre quem somos.

Extra�do do Jornal O GLOBO - 15 de maio de 2001