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Como se dizia nos livros de matem�tica, tomemos o seguinte enunciado: "Ele, apesar de chefe
de fam�lia exemplar, como muitos outros homens, estava atrasado naquela manh� madrasta.
Preocupado em n�o denegrir sua folha de servi�os e n�o irritar seu chefe, ainda mais que um
gato preto passara � sua frente logo ao sair de casa, acenou canhestramente, em meio aos pap�is
que teimavam em querer escapar de suas m�os naquela ventania, para o motorista do primeiro
t�xi que passou � sua frente. Perguntou ao motorista se podia fumar um cigarrinho e este
assentiu. Estava preocupado porque vinha exercendo, em car�ter putativo, o papel de analista
de pedidos de patroc�nio cultural feitos � sua empresa. E, depois de uma viagem atrapalhada,
em que at� mesmo a barbeiragem de uma mulher ao volante lhe fez perder muito tempo, j� chegou
estressado ao servi�o. Felizmente, pegou o elevador que estava tripulado pela bela ascensorista
Wilma e, olhando os seios dela, que quase se mostravam por baixo da blusa mal abotoada,
provocou-lhe um sorriso coquete, ao dizer-lhe �bonita blusa, Fernandinha�. E, finalmente,
em cima da hora, sentou-se � escrivaninha, para come�ar mais um dia do trabalho que sustentava
sua mulher, a empregada que facilitava a vida dela e os dois filhos aborrecentes.
Programa de �ndio, mas o que ele podia fazer?"
Pronto. Parece o come�o de um conto chatinho, ou qualquer coisa assim.
Mas n�o �. E, em mais um servi�o p�blico desta coluna, passo a abrir-lhes os olhos e
demonstrar como o politicamente incorreto nos espreita e tocaia a todo instante.
Para come�ar, porque "ele, como muitos outros homens"? Algu�m faz id�ia de quantos chefes de
fam�lia n�o s�o homens e, sim, mulheres? Como � que se pode aceitar afirma��o t�o
irresponsavelmente generalizada? E o machismo do autor mais se pronuncia logo adiante,
quando a manh� � chamada de madrasta. Por que madrasta? Quantas madrastas n�o tratam seus
enteados como verdadeiros filhos, dando-lhes carinho e amor? E os padrastos s�o todos uns
amores? Por que n�o existe a palavra "boadrasta", s� madrasta?
Seguem-se dois outros exemplos chocantes, por v�rias raz�es. Passou um gato preto � sua frente.
Isso implica que ele considera a passagem de um gato preto um sinal aziago, sem contar que a
utiliza��o da palavra "denegrir" demonstra o mais arraigado racismo. Quer dizer que, se
a folha dele for branca, � melhor do que se for negra. Caso �bvio para a Lei Afonso Arinos.
E quanto ao fomento � supersti��o, em pleno s�culo XXI? Preservar essas cren�as rid�culas
serve somente para deseducar a juventude e perenizar o preconceito e a ignor�ncia.
E por que gato preto? S� porque � preto? E por que um gato? Ser� que ele acha que os gatos,
ao contr�rio da opini�o de parte significativa da popula��o, s�o melhores do que os cachorros?
Os gatos, na verdade, s�o melhores bichos de estima��o do que os cachorros, no ver de muita
gente. Que � que ele quer, exterminar os gatos, pelo menos os pretos?
Ah, o preconceito. Ent�o ele "acenou canhestramente" para um t�xi,
por causa da ventania. Reparem bem. "Canhestro" tem a ver com "canhoto". Por que os canhotos
devem ser exclu�dos? N�o h� lugar na sociedade para os canhotos? Ora, vamos e venhamos!
E a escolha do feminino "ventania" s� faz confirmar o machismo que se exibe novamente logo
em seguida. Ele poderia ter usado a palavra "vento", mas, como se tratava de algo que o
incomodava, preferiu "ventania", que � feminino. E nem lhe passou pela cabe�a, � claro,
que o motorista de t�xi podia ser uma mulher. Bem verdade que a grande maioria dos taxistas
� constitu�da de homens, mas h� mulheres dirigindo t�xis e j� � mais do que tempo para que
esse fato seja reconhecido e se colabore para que esse espa�o de trabalho seja ocupado
tamb�m pelas mulheres.
N�o contente em perpetuar a supersti��o, esse texto ainda investe contra a
sa�de p�blica, que, ali�s, devia tornar obrigat�rio n�o fumar em qualquer lugar, inclusive
dentro dos t�xis. Indiferente aos incont�veis males causados pelo cigarro, o texto, al�m do mais,
insinua que fumar ajuda a relaxar, mais um mito que perdura gra�as a esse tipo de gente,
que devia estar na cadeia, ou pagar uma multa pesada por cada cigarro que consumisse ou desse.
E essa palavra "putativa", hem? Afora ser pern�stica, tem uma semelhan�a intoler�vel com um
termo chulo, que precisa ser banido do vocabul�rio.
Mas a coisa n�o acaba a�. O machismo, que � seguramente a maior
caracter�stica do texto, utiliza a palavra "patroc�nio". Muito provavelmente, essa palavra
tem como raiz "pater", que quer dizer "pai", em latim. Por que n�o se pode troc�-la por
"matroc�nio"? Pura quest�o de preconceito, de querer p�r o sexo masculino � frente de tudo,
o que, ali�s, � corroborado em seguida pela men��o a um acidente provocado por uma mulher ao
volante, quando � fato not�rio e comprovado por estat�sticas que as mulheres se envolvem em
acidentes de tr�nsito muito menos que os homens.
E o estresse, hem? Quer dizer que o estresse � vencido pela transforma��o
dos seios de uma mulher em objeto, como um bibel�, ou qualquer coisa assim. A pobre da Wilma
retribui o olhar obsceno dele com um "sorriso coquete" provavelmente porque, na humilde posi��o
de ascensorista, n�o ia querer desagradar um alto funcion�rio da firma - podia at� perder o
emprego. Se isso n�o � ass�dio sexual, ent�o n�o sei mais o que � ass�dio sexual.
Infelizmente n�o h� mais espa�o para continuar os coment�rios.
Mas voc�s mesmos podem achar mais exemplos de comportamento politicamente incorreto, nesse
"texto inocente", ou no pr�prio texto desta cr�nica. Por que "irritar"? As Ritas deste mundo
devem deixar de existir? E a parte em que ele fala em sustentar a mulher, como se a dona de
casa n�o trabalhasse at� mais do que ele e sem remunera��o? E por que "empregada" e n�o
"empregado"? A cozinha e a arruma��o s�o territ�rios exclusivos da mulher? E os filhos
aborrecentes, trocadilho abomin�vel com "adolescentes", que, al�m de enfrentarem uma fase
dific�lima na vida, ainda t�m que suportar pejorativos? E o desrespeito contido na express�o
"programa de �ndio"? � um nunca-acabar, meus amigos. O melhor mesmo � n�o dizer nem escrever
mais nada. Nunca antes o sil�ncio foi t�o de ouro.
P.S. - Cartas de protesto para o editor, pelo amor de Deus.
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 Jo�o
Ubaldo no "Flor do Leblon" Foto
de Paulo A. Teixeira
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29/04/2001
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