O DESCARTE

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Fico aqui, olhando este computador diante de mim, com sentimentos melanc�licos. N�o faz muito, era considerado um verdadeiro "avi�o". Hoje, j� est� perto de virar um sucat�o. N�o me refiro �s implic�ncias e manias dele, que me chateiam desde que nos conhecemos. Acho que ele preferia que eu fosse engenheiro, ou exercesse profiss�o igualmente decente, e n�o a de escritor. E n�o se conforma que, ainda por cima, eu use um programa de processamento de texto considerado arcaico, isto porque me recusei a aceitar o excesso de frescuras dos programas mais recentes. Homem que � homem usa o meu programa ou equivalente, sem risquinhos vermelhos que s� fazem atrapalhar, al�m de bonequinhos rid�culos que de vez em quando resolvem aparecer.

E agora ele j� apresenta claros sinais de decad�ncia. Todos os dias, invariavelmente, ao ser ligado, inventa uma aporrinha��o nova, a maior parte das quais consiste em me dar avisos sinistros, que se revelam mentirosos e a muitos dos quais j� nem dou import�ncia, notadamente um tal "estouro de pilhas" que n�o ocorreu de jeito nenhum, pelo menos de forma a lhe afetar o funcionamento posterior. Outras vezes se recusa a abrir o nefando Windows e, quando desisto de fazer com que ele d� uma religada pelos m�todos recomendados, desligo-o na marra e sou obrigado a um intoler�vel suspense, enquanto ele, depois de me recriminar cinicamente por t�-lo desligado da forma errada, conduz um teste do disco r�gido, cujo progresso � representado por uma repulsiva linha amarela, que vai e volta, me dando sustos a cada hesita��o. Mas, de modo geral, clico um OK no que quer que ele esteja dizendo e vou trabalhar do mesmo jeito, � pura implic�ncia de velho mesmo.

Computador, como se sabe, fica obsoleto assim que retirado da caixa, com tudo o que traz dentro, e tudo o que se bota dentro dele � considerado mesoz�ico depois de duas semanas. O sujeito chama um amigo para ver sua possante m�quina nova e o amigo morre de rir. No meu caso particular, o principal � o recluso qu�o imisericordioso escritor Rubem Fonseca, que, quando vem aqui, mal chega ao topo da escada, vislumbra o computador e tem frouxos de riso desdenhativo, iniciando uma saraivada de coment�rios humilhantes e falsamente comiserados. O caso do meu, que tem uns dois ou tr�s anos, j� est� ficando pat�tico. At� algumas teclas se desbotam a olhos vistos e, claro, n�o vendem teclas avulsas para substitu�-las, pois a regra, em mat�ria de inform�tica, � substituir logo tudo, mesmo porque, se voc� tentar substituir apenas uma parte, acaba envolvido em problemas somente solucion�veis pela Nasa.

N�o posso dizer que vou sentir falta dele, porque nossa incompatibilidade, embora n�o excessivamente agressiva, � ineg�vel. Ele nunca foi com a minha cara, sempre fez quest�o de demonstr�-lo e eu lhe retribuo na mesma moeda. Mas, de qualquer forma, ai que saudades que eu tenho do tempo em que as coisas n�o eram todas descart�veis, inclusive o conhecimento. Meus amigos micreiros �s vezes me aparecem com os olhos esgazeados e tiques nervosos, de tanto se angustiarem para permanecer relativamente a par das novidades, novidades estas que s� aceito aprender quando a minha sobreviv�ncia fica amea�ada, o que n�o � infreq�ente para quem faz deste instrumento vilanesco sua ferramenta principal de trabalho.

Antigamente, o sujeito come�ava a trabalhar no jornal e o m�ximo que tinha de aprender era usar uma nova m�quina de escrever - vamos dizer uma Remington substituindo uma Underwood. E ainda se queixava. Entrava, fazia carreira, passava no m�ximo por tr�s tipos de m�quina de escrever e reclamava. Hoje, o infeliz tem de aprender um programa novo de computador a cada dois ou tr�s anos, sen�o menos. E ai dele, se n�o aprender, porque, como tudo mais nesta vida de hoje, ele � descart�vel, ainda mais com as escolas de comunica��o despejando gente nova no mercado de trabalho como uma cachoeira ensandecida.

Alguns de voc�s devem lembrar-se das canetas-tinteiro. Eram objetos interessantes, com bombinhas engenhosas para os enchermos de tinta (Parker Quink era a mais reputada). A gente ganhava uma caneta e muitas vezes mandava gravar nela o nome ou as iniciais, porque a caneta n�o era descart�vel, era para durar pelo menos uma grande parte de nossa vida, at� porque valia o esfor�o e era poss�vel consert�-la, se viesse a ter algum defeito.

Hoje, a gente perde tr�s Bics por dia e quem insiste em usar caneta-tinteiro � visto como uma curiosidade antiga, ou um pedante exibido e metido a exc�ntrico.

Isqueiro era a mesma coisa. Havia (ainda h�, mas s� meu dileto amigo Sebasti�o Lacerda os usa) os Ronsons, os Zippos e os luxuosos Duponts, s� para ficar em alguns exemplos. Observava-se o ritual de mudar a pedra, botar fluido, ajeitar o pavio e, como no caso das canetas, mandar tamb�m gravar o nome. Agora n�o. Agora, como eu j� testemunhei, o sujeito compra e perde airosamente tr�s isqueiros s� numa tarde de boteco e eu, como muitos outros, furto distraidamente isqueiros, enfiando-os no bolso e os encontrando no dia seguinte sem remorsos, porque sei que o dono n�o est� nem a�.

�, melancolia, melancolia, tudo � descart�vel. Daqui a uns meses, nem vou lembrar-me deste computador direito e estarei arrumando encrencas e discuss�es abstrusas com seu substituto. Mas � preciso que nos adaptemos aos novos tempos, n�o podemos ficar parados. Eu, com quatro filhos solteiros, j� tive acho que umas tr�s noras e uns dois genros e estou preparado para quantos mais aparecerem, bastando apenas tomar um fosfatozinho (sou do tempo do Iofoscal) para me lembrar dos nomes. � a vida - marido e mulher est�o cada vez mais descart�veis. Assim como jornal tamb�m. Espero que a p�gina desta cr�nica tenha um destino mais nobre, antes de ser devidamente descartada. A perman�ncia destas letras pode muito bem terminar em gl�ria, embrulhando um peixe ou forrando uma lata de lixo. Sou muito saudosista.

 

18/03/2001