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Vestibular de verdade era no meu tempo. J� estou chegando, ou j�
cheguei, � altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas.
Acho inadmiss�vel e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa n�o ser reacion�rio.
Somos uma for�a hist�rica de grande valor. Se n�o ag�ssemos com o vigor necess�rio -
evidentemente o condizente com a nossa condi��o provecta -, tudo sairia fora de controle,
mais do que j� est�. O vestibular, � claro, jamais voltar� ao que era outrora e talvez at�
desapare�a, mas julgo necess�rio falar do antigo �s novas gera��es e lembr�-lo �s minhas
coevas (ao dicion�rio outra vez; domingo, dia de exerc�cio).
O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de
Direito da Bahia, tinha s� quatro mat�rias: portugu�s, latim, franc�s ou ingl�s e sociologia,
sendo que esta n�o constava dos curr�culos do curso secund�rio e a gente tinha de se virar
por fora. Nada de cruzinhas, m�ltipla escolha ou mat�rias que n�o interessassem diretamente
� carreira. Tudo escrito t�o ruibarbosianamente quanto poss�vel, com cita��es decoradas,
preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilin�rias ou a Eneida, dos quais at� hoje
sei o comecinho.
Havia provas escritas e orais. A escrita j� dava nervosismo,
da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto
(sorteava-se o assunto) e partia-se para o mart�rio, insuper�vel por qualquer esporte
radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular,
porque se juntava uma multid�o, para assistir � performance do saudoso mestre de Direito
Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino
(dicion�rio, dicion�rio), o mestre n�o perdoava.
- Traduza a� quousque tandem, Catilina, patientia nostra - dizia ele ao entanguido
vestibulando.
- "Catilina, quanta paci�ncia tens?" - retrucava o infeliz.
Era o bastante para o mestre se levantar, p�r as m�os sobre o est�mago,
olhar para a plat�ia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em dire��o � porta
da sala.
- Ai, minha barriga! - exclamava ele. - Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha
asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alim�ria. Senhor
meu Pai!
Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou,
chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das m�os, quando o mestre sentiu
duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor,
eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
O maior p�blico das provas orais era o que j� tinha ouvido falar alguma coisa do
candidato e vinha v�-lo "dar um show". Eu dei show de portugu�s e ingl�s. O de portugu�s at�
que foi moleza, em certo sentido. O professor Jos� Lima, de p� e tomando um cafezinho,
me dirigiu as seguintes palavras aladas:
- Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual � o sujeito da primeira ora��o
do Hino Nacional!
- As margens pl�cidas - respondi instantaneamente e o mestre quase deixa
cair a x�cara.
- Por que n�o � indeterminado, "ouviram, etc."?
- Porque o "as" de "as margens pl�cidas" n�o � craseado.
Quem ouviu foram as margens pl�cidas. � uma an�strofe, entre as muitas que existem no hino.
"Nem teme quem te adora a pr�pria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na
ordem direta...
- Chega! - berrou ele. - Dez! V� para a gl�ria!
A Bahia ser� sempre a Bahia!
Quis o ir�nico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da
Escola de Administra��o da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de
portugu�s, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que at� hoje considero
injust�ssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e mo�as p�lidos e tr�mulos
diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante,
palet�, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era best�ssima. Mandava-se o candidato
ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns n�o sabiam ler) e depois se perguntava o
que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante.
Esse mal sabia ler, mas n�o perdia a pose. N�o acertou a responder nada. Ent�o, eu,
carrasco fict�cio, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo
"ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual � o verbo, considero-o um
g�nio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
- Esse "for" a�, que verbo � esse?
Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que
resolvesse a quadratura do c�rculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
- Verbo for.
- Verbo o qu�?
- Verbo for.
- Conjugue a� o presente do indicativo desse verbo.
- Eu fonho, tu f�es, ele f�e - recitou ele, imp�vido. - N�s fomos,
v�s fondes, eles f�em.
N�o, dessa vez ele n�o passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado
passando e hoje h� de estar num posto qualquer do Minist�rio da Administra��o ou na
equipe econ�mica, ou ainda aposentado como maraj�, ou as tr�s coisas. Vestibular, no meu
tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado,
ele deve estar fondo para quebrar. F�es tu? Com quase toda a certeza, n�o. Eu tampouco
fonho. Mas ele f�e.
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