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De repente, dei-me conta de que Sua Alteza d. Jo�o de Orleans e Bragan�a estava
andando ao nosso lado, pisando aquelas pedras irregulares e desequilibrantes de Paraty.
Ali�s, ele mora em Paraty. E l� vai ele com a
Sua/Nossa Alteza Teresa
(de Sousa Campos), andando entre os populares, cumprimentando pessoas na porta de casas e bares,
apoiado discretamente numa bengala. Ajudo-os a escalar aquela muretinha de meio metro erguida para
impedir que a mar� cheia invada a igrejinha ali defronte. E enquanto vai anoitecendo somos umas
cem pessoas caminhando para dentro da Igreja de Santa Rita para ouvir um concerto, onde a pi�ce de
resistence ser� "As quatro esta��es", de Vivaldi.
Alguns minutos antes, Jo�ozinho, o pr�ncipe, j� nos falava de Paraty com tal
entusiasmo que, ao ouvi-lo, s� nos resta fazer a mochila, armar a tenda ou mudar para l� e virar
uma das pedras tombadas da cidade. Ele fez isso. Seu pai fez isso. Outros est�o fazendo isso.
De uma cidade colonial, Paraty est� virando uma cidade real. Real em m�ltiplos sentidos.
- Uma Petr�polis � beira-mar?
Imagine que at� 1960 Paraty tinha apenas 3.046 habitantes. Havia ficado esquecida
ali junto � Serra do Mar durante uns 200 anos. Com a aboli��o da escravatura, esvaziou-se mais. Mas
teve um tempo em que possu�a sete valorosos fortes para guardar suas riquezas contra o ataque dos
piratas, que vinham �vidos atr�s do ouro e dos diamantes que desciam pelos caminhos das Gerais.
Hoje quando a vida pelas bandas de Rio e S�o Paulo est� perigos�ssima, quando o
famigerado "crime organizado" amedronta nossas cidades, gerido at� mesmo de dentro de nossas
pr�prias penitenci�rias - como estarrecedoramente publicam os jornais - fico pensando se n�o estamos
vivendo um clima semelhante �quele dos s�culos XVII e XVIII, quando cors�rios ficavam � espreita entre
Paraty e Cabo Frio, assaltando as embarca��es ou mesmo invadindo e saqueando as cidades, como hoje
os marginais fazem, nos humilhando a todos.
L� vem, por exemplo, o capit�o franc�s Duclerc, em 1710, com cinco navios
desembarcando em Guaratiba, seguindo depois pelas cidadezinhas da costa, pilhando e batalhando
nas vielas, rumo a Paraty. L� vem Duguay-Trouin, que em 1711 saqueia o Rio com seus seis mil homens
e 17 navios, levando como trof�u para Luiz XIV o sino da S� do Rio de Janeiro.
Tento esquecer isso. Afinal o ambiente no interior desta igrejinha n�o podia ser
mais lindamente simples: ilumina��o � vela, e aqueles altares com colunas gregas barrocamente revestidas.
Dizem que L�cio Costa gostava especialmente deste front�o, destes altares, destes cunhais em cantaria.
Como pre�mbulo, a Orquestra Pr�-M�sica executa outras pe�as. Que bela ac�stica tem
essa igrejinha do s�culo XVIII. Como a plasticidade dessa m�sica se amolda � essa arquitetura colonial
barroca. At� mesmo este intermezzo da "Cavalaria Rusticana", de Mascagni, soa bem aqui.
� inevit�vel a lembran�a. M�sicas e perfumes levam-nos
em viagens pelo passado.
E estou aqui, mas estou tamb�m na minha adolesc�ncia ouvindo esse intermezzo, que era tocado enquanto
as majestosas cortinas daquele majestoso Cine Teatro Central iam se abrindo para come�ar uma
corriqueira sess�o de cinema.
Houve um tempo em que um filme era apresentado com um ritual digno de uma �pera,
de um grande espet�culo. As cortinas iam se recolhendo e as l�mpadas do teatro iam se apagando,
se descolorindo at� a escurid�o, de onde emergia a luminosa tela.
Essa igrejinha � da mesma �poca em que viveram Mozart e Vivaldi.
Esse concerto para clarineta de Mozart, portanto, est� soando h� uns 200 e tantos anos.
H� uns 200 e tantos anos est�o soando esses violinos de Vivaldi.
- Estou em Viena, onde viveu Mozart e onde morreu Vivaldi?
N�o, estou em Paraty, cidade de nome ind�gena significando "peixe da fam�lia
das tainhas", ouvindo uma orquestra em que o maestro tem tamb�m sobrenome ind�gena - Tibiri��.
Ent�o, vou consultar coisas e aprendo que naquela
regi�o viviam os �ndios guaian�s.
- O� sont-ils? - perguntaria
Villon.
E Bandeira responderia: "Est�o todos dormindo, dormindo profundamente".
Ali�s, pior, foram dizimados, raz�o pela qual, aprendo num livro de Maria Eliza
Carrazoni, que dona Maria Jacome de Melo, fazendo uma campanha em 1646 para que parassem de matar
�ndios, doou terreno para a constru��o da Igreja de Nossa Senhora dos Rem�dios. E vai ser outra
lend�ria mulher de Paraty, dona Geralda Maria da Silva, que no s�culo XVIII solta a grana para a
constru��o da matriz que acolhia "todas as camadas sociais do munic�pio durante o Imp�rio".
Dizem que ela era filha de um cors�rio, e queria com essa obra expiar os pecados da fam�lia.
�ndios. D. Jo�o. M�sica. Barroco. Am�rica.
Este Vivaldi que est� soando aqui, este Vivaldi que era padre, mas n�o rezava
missa, este Vivaldi que viajava com sua amante Anna Guiraud, este Vivaldi que escreveu 550 concertos,
sendo 230 para violino, este Vivaldi que deixou 20 �peras tematizou numa delas a vida de um �ndio:
"Montezuma". Foi encenada no Teatro Sant�Angelo, em Veneza,
em 1733, contando o tr�gico encontro do conquistador Hernan Cort�s com o chefe ind�gena, que foi
tra�do e teve seu reino aniquilado.
A hist�ria � uma �pera. Com solos, sangue, �rias, coro e muita esperan�a.
A m�sica (como a cr�nica), no entanto, vai terminar.
Vivaldi - maestro di violino - vai descrevendo didaticamente os acordes que lhe
sugerem a primavera, o ver�o, o outono e o inverno. As esta��es se sucedem. Sucedem-se os
cors�rios e as tribos ind�genas. O ouro muda de m�o.
A noite nos espera. As pedras das ruas de Paraty encaminham nossos passos.
E o mar e a m�sica sobrevivem �s esta��es.
O GLOBO - 24/01/2001
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