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Tarde
da noite, chegando em casa, dentro do condom�nio, bem no alto, j�
quase no port�o, vejo um senhor que avan�a pela rua, caminhando com
dificuldade. Os cabelos brancos, camiseta clara, sua figura � iluminada
pelos far�is, logo depois da curva, e eu me assusto, porque quase nunca
vejo gente por essas bandas, a essa hora. O instinto me faz acelerar,
mas tenho tempo suficiente para perceber que n�o h� perigo naquela
situa��o, de modo que freio e abro a janela. Ele me pergunta pela
seguran�a, num fio de voz, e me conta que foi passar o domingo na
floresta, seguir uma trilha, com um guia, mas acabou ficando para tr�s
e perdeu-se na mata. Estava h� horas vagando na escurid�o, tentando
alcan�ar as luzes, que via � dist�ncia e que acabaram por ser as
luzes do Itanhang�. Os p�s machucados, o olhar estranho (que eu
entendi, ao me imaginar na escurid�o, abrindo caminho com os bra�os,
no meio da floresta), ele agradeceu muito e, quando a seguran�a chegou
com o carro para conduzi-lo, despediu-se de mim juntando as m�os e
inclinando a cabe�a, com um sorriso discreto.
(Esqueci de
perguntar pelas fadas. Elfos tropicais. Duendes. Sacis. Ando em busca de
uma mitologia qualquer.)
Tenho visto
a cidade do alto, por entre as ramas. Fujo dos intermin�veis
engarrafamentos pelo verde da floresta. Volta e meia, fa�o o caminho
mais longo e des�o pelo Horto, relembrando naquelas curvas, as curvas
de h� tempos, as novelas gravadas na Herbert Richers, os colegas que
fizeram comigo este trajeto tantas e tantas vezes, as conversas
interrompidas pela curva mais fechada. Vou em dire��o � Vista Chinesa
e, quando � dia claro, daqueles aben�oados, dou uma paradinha e deixo
a mente se espregui�ar, olhando o cart�o-postal. � tanta lembran�a
engra�ada que vem chegando nas curvas da estrada do Horto!
(Uma vez,
fui com um grupo de atores fazer um teste na Usina. A Globo estava
cadastrando jovens atores de teatro e l� fui eu. A cena, um di�logo
entre um casal, foi entregue e buscamos, entre as mo�as, uma
companheira para apresentar a cena. Acabei fazendo a cena com uma jovem
de longos cabelos compridos e olhar febril. C�ssia Kiss. Aparentemente,
fomos ambos reprovados. Mas sempre lembro desse dia e, acredito, ela
deve se lembrar tamb�m.)
Tenho visto
a cidade com o olhar dos micos, todos primos daqueles que venho
alimentando nesses �ltimos tempos. Acostumaram-se rapidamente comigo,
os interesseiros! V�m em bando reclamar o seu quinh�o e eu parto a
banana em rodelas, que eles seguram como pizzas, sentados nos galhos
mais baixos. Talvez eu n�o devesse aliment�-los, �s vezes penso,
talvez eu esteja causando algum desequil�brio na fr�gil cadeia da Mata
Atl�ntica, mas est� tudo t�o ca�tico que eu n�o tenho coragem de
negar uma banana para aquelas criaturas!
Tenho visto
a cidade e secretamente agradecido por tanta beleza. Cinco minutos de
contempla��o e a gente entende o narcisismo dela. � justo. Mais do
que justo. E estranhamente essa beleza parece n�o mobilizar nossos
governantes. Quem tem uma cidade dessas tem um tesouro nas m�os, eu
penso.
(... dia
desses, um s�bado, a Estrada das Paineiras estava fechada e fui
obrigado a descer pelo Sumar�. Eu vinha ouvindo m�sica, janela aberta,
aproveitando o come�o de tarde e, de repente, dei de cara com dois
carros queimados, carca�as no meio da estrada, e, mais � frente, um
carro novo, todo aberto, com as janelas estilha�adas. Imediatamente,
uma tens�o nasceu em algum lugar da minha omoplata e fez meu ombro
endurecer. Um gosto amargo na boca. Medo. "Eu n�o deveria ter
vindo por aqui")
Eu vou
pensando que quero turistas na Cidade Maravilhosa. Quero outra vez
aqueles ver�es cheios, aquela efervesc�ncia na rua e nos rostos dos
passantes! � inaceit�vel que aquelas carca�as queimadas repousem ali!
Imagino um grupo de turistas vendo a cena. � inaceit�vel jogarem
toneladas de coc� no mar desta cidade! � inaceit�vel que n�o se
entenda turismo de maneira profissional, numa cidade que s� tem a
lucrar com isso! Podemos crescer tanto, todos n�s! E precisamos
entender isso, de maneira consciente. At� os ladr�es precisam proteger
a j�ia que lhes coube. E por ladr�es entendam pobres e ricos, por
favor.
(Uma vez, no
Egito, na agita��o do embarque, esqueci uma mala, pousada nas pedras
do cais de Luxor, e s� dei por falta dela na cabine do barco. Fiquei
arrasado. Olhei pela janela, mas havia centenas de turistas embarcando,
uma confus�o total, cada qual querendo encontrar suas acomoda��es.
Caminhei at� a proa, chateado com a perda, para ver a largada e l�
estava minha mala, solit�ria, guardada por um menino de camisola
alaranjada)
Tenho visto
a cidade do alto, com freq��ncia. Tenho tido a oportunidade de gostar
de ser carioca, de recuperar aquele orgulho besta, mas merecido. Tenho
pensado em tantas coisas, nesses meus passeios pelo verde, imaginado
tanta coisa!
(Acho que
nunca vou ser capaz de entender gente que n�o agradece a inst�ncias
superiores, sejam elas quais forem! Acho que nunca vou ser capaz de
entender essa nossa estranha civiliza��o. Mas enfim! A medicina gen�tica
j� est� se encarregando de mudar a hist�ria deste planeta e vai ser
duro ter que aprender tudo de novo, se chegarmos at� l�)
As coisas
que a gente pensa, vendo a cidade do alto, por entre as ramas!
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