POR ENTRE AS RAMAS

Miguel Falabella

Tarde da noite, chegando em casa, dentro do condom�nio, bem no alto, j� quase no port�o, vejo um senhor que avan�a pela rua, caminhando com dificuldade. Os cabelos brancos, camiseta clara, sua figura � iluminada pelos far�is, logo depois da curva, e eu me assusto, porque quase nunca vejo gente por essas bandas, a essa hora. O instinto me faz acelerar, mas tenho tempo suficiente para perceber que n�o h� perigo naquela situa��o, de modo que freio e abro a janela. Ele me pergunta pela seguran�a, num fio de voz, e me conta que foi passar o domingo na floresta, seguir uma trilha, com um guia, mas acabou ficando para tr�s e perdeu-se na mata. Estava h� horas vagando na escurid�o, tentando alcan�ar as luzes, que via � dist�ncia e que acabaram por ser as luzes do Itanhang�. Os p�s machucados, o olhar estranho (que eu entendi, ao me imaginar na escurid�o, abrindo caminho com os bra�os, no meio da floresta), ele agradeceu muito e, quando a seguran�a chegou com o carro para conduzi-lo, despediu-se de mim juntando as m�os e inclinando a cabe�a, com um sorriso discreto.

(Esqueci de perguntar pelas fadas. Elfos tropicais. Duendes. Sacis. Ando em busca de uma mitologia qualquer.)

Tenho visto a cidade do alto, por entre as ramas. Fujo dos intermin�veis engarrafamentos pelo verde da floresta. Volta e meia, fa�o o caminho mais longo e des�o pelo Horto, relembrando naquelas curvas, as curvas de h� tempos, as novelas gravadas na Herbert Richers, os colegas que fizeram comigo este trajeto tantas e tantas vezes, as conversas interrompidas pela curva mais fechada. Vou em dire��o � Vista Chinesa e, quando � dia claro, daqueles aben�oados, dou uma paradinha e deixo a mente se espregui�ar, olhando o cart�o-postal. � tanta lembran�a engra�ada que vem chegando nas curvas da estrada do Horto!

(Uma vez, fui com um grupo de atores fazer um teste na Usina. A Globo estava cadastrando jovens atores de teatro e l� fui eu. A cena, um di�logo entre um casal, foi entregue e buscamos, entre as mo�as, uma companheira para apresentar a cena. Acabei fazendo a cena com uma jovem de longos cabelos compridos e olhar febril. C�ssia Kiss. Aparentemente, fomos ambos reprovados. Mas sempre lembro desse dia e, acredito, ela deve se lembrar tamb�m.)

Tenho visto a cidade com o olhar dos micos, todos primos daqueles que venho alimentando nesses �ltimos tempos. Acostumaram-se rapidamente comigo, os interesseiros! V�m em bando reclamar o seu quinh�o e eu parto a banana em rodelas, que eles seguram como pizzas, sentados nos galhos mais baixos. Talvez eu n�o devesse aliment�-los, �s vezes penso, talvez eu esteja causando algum desequil�brio na fr�gil cadeia da Mata Atl�ntica, mas est� tudo t�o ca�tico que eu n�o tenho coragem de negar uma banana para aquelas criaturas!

Tenho visto a cidade e secretamente agradecido por tanta beleza. Cinco minutos de contempla��o e a gente entende o narcisismo dela. � justo. Mais do que justo. E estranhamente essa beleza parece n�o mobilizar nossos governantes. Quem tem uma cidade dessas tem um tesouro nas m�os, eu penso.

(... dia desses, um s�bado, a Estrada das Paineiras estava fechada e fui obrigado a descer pelo Sumar�. Eu vinha ouvindo m�sica, janela aberta, aproveitando o come�o de tarde e, de repente, dei de cara com dois carros queimados, carca�as no meio da estrada, e, mais � frente, um carro novo, todo aberto, com as janelas estilha�adas. Imediatamente, uma tens�o nasceu em algum lugar da minha omoplata e fez meu ombro endurecer. Um gosto amargo na boca. Medo. "Eu n�o deveria ter vindo por aqui")

Eu vou pensando que quero turistas na Cidade Maravilhosa. Quero outra vez aqueles ver�es cheios, aquela efervesc�ncia na rua e nos rostos dos passantes! � inaceit�vel que aquelas carca�as queimadas repousem ali! Imagino um grupo de turistas vendo a cena. � inaceit�vel jogarem toneladas de coc� no mar desta cidade! � inaceit�vel que n�o se entenda turismo de maneira profissional, numa cidade que s� tem a lucrar com isso! Podemos crescer tanto, todos n�s! E precisamos entender isso, de maneira consciente. At� os ladr�es precisam proteger a j�ia que lhes coube. E por ladr�es entendam pobres e ricos, por favor.

(Uma vez, no Egito, na agita��o do embarque, esqueci uma mala, pousada nas pedras do cais de Luxor, e s� dei por falta dela na cabine do barco. Fiquei arrasado. Olhei pela janela, mas havia centenas de turistas embarcando, uma confus�o total, cada qual querendo encontrar suas acomoda��es. Caminhei at� a proa, chateado com a perda, para ver a largada e l� estava minha mala, solit�ria, guardada por um menino de camisola alaranjada)

Tenho visto a cidade do alto, com freq��ncia. Tenho tido a oportunidade de gostar de ser carioca, de recuperar aquele orgulho besta, mas merecido. Tenho pensado em tantas coisas, nesses meus passeios pelo verde, imaginado tanta coisa!

(Acho que nunca vou ser capaz de entender gente que n�o agradece a inst�ncias superiores, sejam elas quais forem! Acho que nunca vou ser capaz de entender essa nossa estranha civiliza��o. Mas enfim! A medicina gen�tica j� est� se encarregando de mudar a hist�ria deste planeta e vai ser duro ter que aprender tudo de novo, se chegarmos at� l�)

As coisas que a gente pensa, vendo a cidade do alto, por entre as ramas!

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18-ago-2008