Circundando a lagoa, arredondando a vida


Affonso Romano de Sant'Anna

Fotos de Paulo A. Teixeira

Ent�o, o que estou lhe dizendo � que neste �ltimo domingo a Lagoa Rodrigo de Freitas esteve mais do que nunca linda. Diria, iridescente. At� um chofer de t�xi comentou: "Nunca vi essa Lagoa t�o cheia de gente t�o bonita".

Vou andando na dire��o da antiga favela da Catacumba. Que nome mais avesso do que estou vendo agora. A alma hoje est� ao sol, livre das catacumbas do notici�rio.

C�es. Lindos c�es peludos ou n�o com seus peludos donos e donas bem-tratadas, todos se confraternizando, se cheirando, estudando achegos sob as �rvores. Pedalinhos contra o azul, cisnes kitsches, bicicletas ziguezagueantes, carrocinhas, milho verde, �gua-de-coco. Os quiosques. Almas e corpos ao Sol.

Que pena dos paulistas no Ibirapuera.

Que pena dos argentinos no Parque do Retiro.

Que pena dos americanos no Central Park.

Ent�o, considero esta Lagoa no domingo.

Ningu�m veio aqui hoje conclamado para fazer uma demonstra��o pol�tica neste domingo. Ningu�m foi chamado para mais um abra�o � Lagoa. Ningu�m porta faixa de protestos. E, no entanto, o que estou vendo � um imenso manifesto reafirmando a vida.

O nada tamb�m � not�cia.

Porque as not�cias violentas, os conflitos, as explos�es, tudo isso, s�o apenas erup��es na superf�cie.

O nada � que � tudo.

Na verdade, aspiramos ao nada.

H� que estar maduro para o nada. O nada � a coisa mais funda. Os dist�rbios, sob forma de acontecimentos, s�o exerc�cios de sofrimento, rugas na manh�.

Como se nesse momento todas as trag�dias tivessem sido suspensas, as pessoas conflu�ram para essas margens. Algu�m est� sendo assassinado, mas n�o � aqui. Algu�m est� sendo violentada, mas n�o � aqui.

� como aquela estorinha que o professor no gin�sio contou e que, tantos anos depois, reponta nesta manh�: naquela guerra de 1914-1918, durante o Natal, os chefes das tropas francesas e alem�s decidiram fazer um cessar-fogo para que os soldados celebrassem fraternalmente a data. Os beligerantes chegaram a sair de suas trincheiras e, segundo o professor, alem�es e franceses se deram as m�os, cantaram e dan�aram.

Confraternizaram por alguns minutos e da� a pouco pularam pr� dentro das trincheiras e come�aram, de novo, a se matar.

Sempre achei essa est�ria inacredit�vel.

Desde sempre acho que este domingo n�o deveria terminar jamais.

Vou caminhando e pensando na cr�nica que escreverei para esta quarta-feira. Na cabe�a, v�rios temas, enquanto passam titubeantes bicicletas, c�es se enroscam e corpos ol�mpicos e atl�ticos desfilam com igual desinibi��o.

Id�ias n�o faltam para cr�nica. Nunca tive a s�ndrome da falta de assunto, sen�o de excesso. Assunto n�o falta, sobretudo os ruins. Todos ligados aos problemas do cotidiano, coisas da vaidade pol�tica e da perversa economia. Not�cias sugerem desdobramentos, h� casos por contar, lembran�as de viagem, mas hoje n�o poderia haver not�cia mais tocante que a tranq�ila felicidade das pessoas em torno desta Lagoa.

Coincidentemente, nesses dias, descobri na Internet um jornal s� de boas not�cias. D� pr� crer? S� traz informa��o pr� cima. N�o � nenhum jornal de Poliana, mas � que a alma da gente quer mesmo descansar, pelo menos no s�timo dia da semana, como fez o Criador.

Uma vez editei, l� em Minas, um "segundo caderno", e no dia dos mentirosos , no 1� de abril, ousadamente publicamos s� not�cias que gostar�amos de ter dado e a realidade n�o deixou. Voc� sabem, a realidade, �s vezes, atrapalha a gente passear na Lagoa. E aquelas boas not�cias que invent�vamos iam desde a cura do c�ncer at� imaginar que o Brasil estava emprestando dinheiro aos Estados Unidos ou que um time de futebol de v�rzea havia ganho o campeonato mundial de clubes.

L� vou contornando a Curva do Calombo. E agora que muitas �rvores cresceram, numa vers�o tropical de "Grande-Jatte", de Monet, agora que o manguezal deu um acabamento � borda e melhorou a vida dos peixes, agora que as pistas de corrida est�o asfaltadas, agora, por favor, salvem as demais lagoas da cidade. N�o posso pensar que outras lagoas s�o estupradas, assassinadas e seq�estradas alhures.

Seu Conde, alcaide-mor desta comarca, n�o permita que transformem aquilo ali perto do Piraqu� em mais um aterro. Est� l� o sinal de alarme: j� diversas bandeirinhas sinalizam que barcos n�o devem passar por ali, porque o espelho d��gua est� ras�ssimo. O mato se alastra sobre a terra acumulada. Mais um pouco e algum esperto se apropria de mais uns 300 metros de extens�o da Lagoa. Seu Conde, seu Conde, manda logo dragar essa parte, urgentemente, antes que nos seq�estrem mais um peda�o de azul.

E mande tamb�m dragar aquela terra que se ajuntou em volta da est�tua do indiozinho pescador, feita pelo Pedro Correio de Ara�jo, hoje exilado em Ouro Preto. Do jeito que est�, aquele indiozinho est� dando flechada n�o na �gua e nos peixes, mas na esperan�a da gente.

Circundar a Lagoa.

Circundar a vida.

Arredondar a manh�.

Passam corpos falantes:

- N�o sei o que ele viu nela.

Passa outro:

- Nunca mais terei outro amante com o mesmo nome do meu marido.

E passa outro:

- Isto tudo depende de como voc� faz o download.

H� um fasc�nio no corpo humano. Fico a olh�-lo de soslaio. O das adolescentes com a barriguinha e bundinha no lugar, sob o short leve ou a malha colada � perna. H� os j� ajuntando gordurinhas na cintura. H� os sarados e h� os desdobrando barrocas volutas.

Ah, se plantassem cerejeiras sob as quais me pus sonhando nesses dias, aquelas que est�o florindo roseamente l� nas montanhas enxameadas de vorazes beija-flores, que tamb�m s� querem o mel das not�cias. Ah, se os jardineiros desta cidade gostassem mais de flores que de folhas.

E circundando a Lagoa, circundando a vida, arredondando a cr�nica e a manh�, dentro de mim ressoa aquela can��o na qual a Elizeth - a Divina - ia dizendo: "Luminosa manh�, pr� qu� tanto azul? Luminosa manh�, tanto azul � demais pro meu cora��o".

28/6/2000