EST� FICANDO DIF�CIL

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Como j� sabem meus pacientes leitores, escrevo esta coluna com enorme anteced�ncia. E, embora talvez n�o pare�a, procuro n�o estragar o domingo de ningu�m. H� sempre alguma amenidade no domingo, pelo menos para quem n�o est� enfrentando problemas s�rios. Se faz sol, pode-se ir � praia ou passear em algum parque relativamente seguro. Se n�o faz sol, os amigos podem juntar-se para tomar uns drinques ou simplesmente jogar conversa fora sem compromisso. E ainda podem-se ler as amenidades que os jornais costumam publicar neste dia, uma fofoquinha ali, outra acol�, uma aula de cultura in�til, uma croniqueta bem-humorada - enfim, coisas de domingo.

Mas est� ficando dif�cil. Escrevo na ter�a-feira e quase n�o posso sentar-me diante do teclado, porque os jornais tratam do que todos testemunhamos na segunda-feira pela televis�o e n�o se pode ligar a tev� sem se rever o espet�culo aterrorizante que se passou aqui perto de casa, na Rua Jardim Bot�nico, cidade do Rio de Janeiro. Acho que, mesmo que fosse palha�o de circo, desmereceria as tradi��es da profiss�o e n�o compareceria ao picadeiro. Considero-me de luto e tomo a liberdade de sugerir que quem, neste instante, tamb�m n�o est� abalado ou � uma alma anormalmente insens�vel ou come�a a se tornar a esp�cie de monstro em que a vida urbana no Brasil nos procura transformar a cada dia. Fa�o for�a para ver as imagens na televis�o, n�o consigo ag�entar. Como todos voc�s, tenho filhos, amigos, parentes ou pelo menos semelhantes e concidad�os. E, como certamente a maioria de voc�s, n�o posso deixar de horrorizar-me diante da selva que nos cerca, do medo, do desprezo pela vida e pela dignidade humana a que descemos.

Aconteceu realmente tudo aquilo que vimos minuto a minuto, segundo a segundo - e que poderia acontecer tamb�m a qualquer um de n�s? � poss�vel viver assim, numa sociedade acuada, intimidada, desprotegida, descrente e j� se habituando a uma atmosfera de desconfian�a e pavor? Volto � televis�o, ou�o parte da entrevista de um perito. "O momento pr�prio para a rea��o n�o foi apropriado", diz ele. � isso o que diz o perito: o momento pr�prio n�o foi apropriado. E ser�o variantes dessa "explica��o" tautol�gica e infeliz que teremos escutado, desta ter�a ao domingo em que voc�s me l�em. E ainda vamos escut�-las durante muito tempo, porque novamente ningu�m ser� culpado, a vida � assim mesmo. A mo�a que morreu, depois de cruelmente martirizada durante horas, n�o vai voltar, a paz n�o vai voltar, continuaremos nossa caminhada em dire��o � bestialidade, a esta guerra civil que n�o queremos ver, mas que est� a� em andamento.

N�o, a vida n�o � assim mesmo. Ou�o at� gente recordar, talvez numa tentativa meio insana de consolo, que, nos Estados Unidos, loucos metralham lanchonetes e escolas e o que vimos na semana passada acontece em toda parte. N�o, n�o acontece em toda parte, n�o � verdade, acontece aqui e em pa�ses em guerras internas declaradas. Barbaridades ocorrem, sim, em toda parte, mas n�o como aqui, terra em que temos medo de chamar a pol�cia e esse medo se revela fundamentado, numa demonstra��o extraordin�ria de in�pcia e incompet�ncia da autoridade que constitu�mos para nos proteger. Quem hoje nos protege, quem nos garante que voltaremos para casa, depois de ir � padaria da esquina? Exagero, ouviremos tamb�m dizer, a situa��o n�o � t�o horrenda assim. Mas como poderia ser mais horrenda? Que mais dever� acontecer, para mostrar que ela � horrenda? Que mais precisamos presenciar, para nos convencermos de que o pa�s est� doente, de que n�s todos estamos doentes, neurotizados e acossados? Por quanto tempo poderemos prosseguir nesta situa��o, que n�o aflige somente as cidades, aflige a todos e uma trag�dia no campo de vastas propor��es, muit�ssimo maior do que as que j� aconteceram, poder� eclodir a qualquer momento?

Hoje (ter�a), se suspeita que foram tiros da pr�pria pol�cia que assassinaram a jovem cuja tortura e morte s�o insuport�veis de ver e avaliar. Mas n�o temos um problema somente de pol�cia, a pol�cia � uma parte do problema. E � inconseq��ncia achar que o Ex�rcito deveria patrulhar permanentemente as ruas. Isso n�o existe, n�o pode existir. N�o s� o Ex�rcito n�o � pol�cia, como n�o h� Ex�rcito que remedeie uma situa��o como a que vivemos. Talvez, pois h� gente que pensa tudo neste mundo, exista quem ache que dev�amos bombardear os morros e chacinar os pobres, suspeitos pela pr�pria condi��o, enquanto a classe m�dia procura aglutinar-se em guetos fortificados e os ricos (lembro ricos mesmo, n�o Rom�rio ou Roberto Carlos, que s�o os vistos como ricos pelos bobos que constituem a nossa maioria) ou v�o morar fora ou andam cercados de mil�cias particulares. Somos uma sociedade que, como vai, est� na rota da anarquia e da dissolu��o total dos valores m�nimos indispens�veis � coexist�ncia. Antigamente, eu talvez fosse preso como comunista e subversivo por dizer este tipo de coisa, mas agora n�o h� como negar as evid�ncias, at� porque nunca fui comunista, nem me dou mais a bravatas subversivas.

Ou se reforma o pa�s radicalmente, mas radicalmente mesmo, ou n�o temos futuro sen�o a inseguran�a, o desespero e provavelmente o caos.

Ningu�m quer abdicar de privil�gios, nenhum dos que est�o em situa��o indecentemente favorecida h� s�culos acha que tem algo a ver com o que se passa, as iniq�idades fazem parte inerente de nossa realidade e devem continuar assim. Nem se a pol�cia n�o fosse essa calamidade que conhecemos, se fosse at� exemplar (argumento absurdo, pois n�o pode haver pol�cia exemplar numa na��o corrupta e semi-esfacelada, onde o mau exemplo est� toda hora a vir de cima), os problemas de seguran�a seriam resolvidos.

Nosso grande problema n�o � de pol�cia, � de pol�tica. E pol�tica vai desde pacatas elei��es municipais em vilarejos long�nquos, at� a mais irracional, desabrida e descontrolada viol�ncia. At� quando a explos�o n�o ser� geral e irrevers�vel? Deus nos ajude.