Direto do front

 

Cora R�nai

Botafogo, Avenida Pasteur, s�bado, 22h30. Quando o t�xi em que eu estava com a Mam�e e a Laura entrou no mergulh�o da Avenida Pasteur, dois carros que vinham na contram�o, feito loucos, fecharam a passagem. Do que parou � nossa frente desceram dois homens, o do lado direito com um fuzil � o que me deu a impress�o que est�vamos diante de uma �corriqueira� persegui��o policial. O outro levava uma 45. Mas ambos (e os do segundo carro) n�o estavam de uniforme. E todos estavam aos berros.

A� caiu a ficha. Era arrast�o. Minha primeira rea��o foi pegar o celular para fotografar os elementos quando, gra�as a Deus!, me lembrei da luz de aux�lio do foco, e achei que poderiam ficar contrariados em ser flagrados durante o expediente. Larguei o celular no ch�o do t�xi, enquanto os bandidos se espalhavam. O que nos coube gritou para que abr�ssemos os vidros, apontou a arma para a cabe�a da minha irm�, sentada ao lado do motorista, e mandou que entreg�ssemos as bolsas.

Laura pedia desesperada para ficar com os documentos; o bandido gritava; o motorista do t�xi, nervoso, dizia para termos calma, n�o fazermos movimentos bruscos e, possivelmente, nem respirarmos (brincadeirinha: isso ele n�o disse, mas foi por pouco).

Mam�e, sentada atr�s do motorista, im�vel estava e im�vel ficou, apesar de eu ter sugerido a ela que se jogasse ao ch�o. Quando olhei, estava disfar�ando a bolsa preta junto � roupa idem, como se aquilo fosse muito normal. Nada que minha M�e fa�a me espanta mais; sei que � capaz de tudo, mas essa foi a primeira vez que vi o truque da Mulher Invis�vel. Fiquei boba.

Depois de salvar o outro celular, tentei pescar a carteira, com pouco dinheiro mas muitos documentos. O cara apontou a arma para mim e aumentou o volume:

— Passa essa bolsa, porra, passa essa bolsa!

O cano de uma 45 virado na sua dire��o � um argumento eloq�ente. Ele nem precisava ter gritado.

O pessoal dos carros � nossa volta teve menos sorte. Os bandidos mandaram que descessem e deixassem tudo, tiraram carteiras e celulares dos bolsos dos homens e fugiram cantando pneu. Acho que pelo menos um dos carros com que nos fecharam ficou abandonado, mas n�o tenho certeza porque, a essa altura, o t�xi j� ia em desabalada carreira rumo � 10 DP, onde os policiais foram gentis, mas nada puderam fazer al�m de registrar a ocorr�ncia. Aos poucos, outras v�timas iam chegando, em diversos graus de como��o e perplexidade.

A mistura de sentimentos gerada por uma situa��o dessas � t�o complexa e pessoal que praticamente desafia descri��o. N�o senti medo nem raiva durante o assalto. Ao contr�rio, fiquei estranhamente calma. Pensava: �Caramba, que cr�nica! Mas tomara que n�o atirem...� Quando nos safamos ilesas, senti um misto de al�vio e euforia, como se tiv�ssemos escapado, por um triz, de um caminh�o de desgra�as. E escapamos mesmo.

Cerca de uma hora depois, j� com os registros para come�ar a romaria atr�s de documentos novos na segunda-feira, fomos a p� para a casa da Laura, que fica logo ali na esquina. Agora, que passou e que estamos todas a salvo, tudo est� relativamente bem.

Pelo menos, at� o pr�ximo assalto.


(O Globo, 29.07.2008)

 

Considera��es sobre um assalto

Hoje, exatamente hoje, 31 de julho de 2008, fa�o 55 anos, quase todos passados no Rio de Janeiro. At� s�bado passado, nunca tinha sido assaltada aqui, na minha cidade, o que deve ser uma esp�cie de recorde, especialmente considerando-se que costumo andar por todo canto, em toda esp�cie de hor�rio. Fui v�tima, com minha irm� e minha M�e, de um arrast�o acontecido logo ali, na Avenida Pasteur, quando volt�vamos do Rio Sul. Perdemos algum dinheiro, bolsas, cart�es e documentos, mas escapamos vivas, o que vale dizer que, a rigor, n�o nos aconteceu nada. Foi uma viol�ncia? Com certeza. Um susto? Podem apostar. Um azar? Pelo contr�rio: como tudo na vida, at� um assalto pode ter seus lados bons, o principal deles sendo, obviamente, sair com vida, e sem um arranh�o, de uma cena potencialmente letal.

* * *

H� muitos e muitos anos, como habitante de cidade conflagrada, tinha essa d�vida comigo, de como reagiria a um assalto. Agora j� sei, e me confesso aliviada. Meu maior medo era ter raiva, �nico sentimento que me faz, literalmente, perder o controle; mas o que senti foi um misto de espanto e de curiosidade, aliado ao medo indireto de que algu�m � pol�cia, v�tima ou assaltante � perdesse as estribeiras.

Felizmente, todos cumpriram o seu papel. A pol�cia n�o apareceu, as v�timas portaram-se com a humildade que conv�m �s v�timas e os assaltantes, ainda que nervosos, portaram-se como assaltantes -- e n�o como assassinos. Como nenhuma dessas escolhas � de caso pensado, continuo me achando pessoa de grande sorte.

* * *

N�o sou a Madre Teresa de Calcut� nem o Dalai Lama, mas, com sinceridade, n�o tive, nem tenho, qualquer raiva dos bandidos. N�o sei se pensaria assim se tivesse sido seq�estrada ou se a a��o tivesse descambado para uma desgra�a; mas sentir raiva de elementos em que n�o se percebe mais qualquer vest�gio de humanidade equivale, a meu ver, a sentir raiva do proverbial sof� da anedota.

A indigna��o que senti mais tarde, quando enfim deitei a cabe�a no travesseiro e tratei de p�r as id�ias em ordem, foi, apenas, uma amplifica��o da raiva surda que sinto contra a degrada��o constante do meu pa�s. O que me sufoca � o governo: este, o outro, o pr�ximo, o federal, o municipal, o estadual -- toda a corja respons�vel pela completa aus�ncia do estado na cidade e no pa�s.

Esses canalhas, que a cada m�s me roubam, s� em impostos diretos, muito mais do que me roubaram os assaltantes da Avenida Pasteur, s�o os verdadeiros merecedores do meu �dio, do meu desejo mais profundo e visceral de que ardam, para sempre, no fogo dos infernos.

* * *

N�o sofro da patologia contempor�nea de achar que todo bandido � v�tima da sociedade. N�o �. Pelo contr�rio. A sociedade, como um todo, trabalha muito duro para pagar aos seus funcion�rios, �queles que deveriam cuidar para n�o houvesse crian�as na rua, para que as escolas fossem n�o s� suficientes como eficazes, para que toda a popula��o tivesse assist�ncia m�dica e iguais condi��es de planejamento familiar. �Aqueles, enfim, que, falhando todas as medidas preventivas, garantissem ao cidad�o de bem o m�ximo de seguran�a, e ao malfeitor um m�nimo de puni��o.

O diabo � que, olhando em torno, n�o vejo nenhuma �autoridade� imbu�da de esp�rito p�blico. Todos querem se eleger �nica e exclusivamente para garantir o seu, para gozar a perp�tua sala vip do poder e para passear pelo mundo em tapetes vermelhos. S�o perversos cruzamentos de pav�o com avestruz, desfilando l� fora a sua vaidade e enterrando, aqui, a cabe�a na areia. Agora, ali�s, inutilmente provida de wi-fi.

* * *

Enquanto isso, garotas de 13 anos seguem tendo filhos na rua, que por sua vez ter�o filhos na rua aos 13 anos e assim sucessivamente, gera��o ap�s gera��o, j� que, entre outras coisas, a Igreja d� um piti sempre que qualquer pol�tico vagamente progressista ousa falar em planejamento familiar. Mas eu gostaria, honestamente, que a diocese me esclarecesse o destino que aguarda uma crian�a nascida nessas circunst�ncias. Acaso a Igreja as recolhe? Alimenta? Veste? Orienta? Educa? Se mesmo crian�as nascidas em fam�lias com recursos, at� bem estruturadas emocionalmente, volta e meia viram bandidos, o que se pode esperar de crian�as que crescem soltas na rua sem exemplo, sem escola e sem qualquer chance de aprender um of�cio? O que esperar de crian�as cujos her�is s�o traficantes, cuja alegria � cheirar cola e cujos s�mbolos de status s�o armas de uso exclusivo das for�as armadas?

Tenho muita pena dessas crian�as, assim como tenho pena dos adultos em que se transformam � isso, quando chegam a adultos. Seria hip�crita, por�m, se n�o reconhecesse que mais pena ainda tenho das crian�as e dos adultos que poderiam construir um pa�s melhor se, por infelicidade, n�o tombassem mortos ao cruzar seus caminhos.

* * *

O grande resumo da nossa, digamos, �experi�ncia s�cio-antropol�gica�, foi feito pela minha irm�, que conseguiu achar v�rios pontos positivos no assalto. O d�cimo e �ltimo foi: �Poder pensar -- sinceramente -- que bom que eu sou a v�tima, e n�o o assaltante.�


(O Globo, Segundo Caderno, 31.7.2008)

 

Pequeno manual de sobreviv�ncia na selva


Como toda pessoa que mora no Rio, eu tamb�m ouvi, mais de mil vezes, a recomenda��o de que nunca, jamais, em tempo algum, sa�sse de casa com os documentos na bolsa � e, como toda pessoa que nunca foi assaltada, sempre deixei para o dia seguinte a tarefa de tirar as tais c�pias autenticadas que, agora, estariam me poupando de muitos aborrecimentos. Como n�o sou de todo tonta, pelo menos a identidade ficou em casa e se salvou; mas l� se foi a carteira de motorista, que mal uso posto que n�o tenho carro, mas que tem valor legal como identifica��o.

Seguindo a tradi��o de instalar a tranca depois do arrombamento, elaborei uma lista de precau��es para o pr�ximo assalto. Espero do fundo do cora��o que ela jamais tenha utilidade para qualquer um de voc�s, mas acreditem: se eu tivesse feito tudo o que agora recomendo, teria tido um bom ganho de tempo, de tranq�ilidade e at�, quem sabe, de dinheiro.

O primeir�ssimo item � levar a s�rio a recomenda��o universal dos j� assaltados: nunca, jamais, em tempo algum, sair com os documentos originais. Passem hoje mesmo no cart�rio da esquina, fa�am logo tr�s c�pias de cada documento, autentiquem, guardem os originais em casa e passem a usar as c�pias. Por que tr�s? Simples: poupam idas ao cart�rio. A segunda � para evitar a tenta��o de usar os originais em caso de perda da primeira; a terceira � o backup extra de seguran�a que sempre recomendei e que pratico religiosamente com meus documentos digitais, e que achei de bom tom transferir para a, digamos, �vida real�.

Segundo item: aproveite a ida ao cart�rio ou � loja de Xerox e tire c�pia de tudo o que estiver na carteira, dos cart�es de cr�dito �s fotos das crian�as. Guarde essas c�pias em casa em lugar f�cil de lembrar. Saber o que estava na carteira e, sobretudo, o n�mero dos cart�es roubados poupa muito tempo e estresse, assim como ter � m�o aquele n�mero de telefone quase ileg�vel que eles trazem na parte de tr�s para emerg�ncias.

* * *

As perdas que mais lamento do assalto s�o uma foto da Bia com a Keaton, feita h� dez anos numa m�quina autom�tica, e conseq�entemente sem c�pia, e o bilhetinho lindo que o meu amor desenhou, l� se vai uma vida, e que eu lia e relia sempre que me aborrecia com alguma coisa. Tinha poderes m�gicos. � vista daquelas palavras de carinho, qualquer aborrecimento reduzia-se � sua devida dimens�o, e o mundo voltava a ser belo.

Essas coisinhas que nada significam para os outros, mas que consideramos verdadeiros talism�s, n�o podem, infelizmente, correr o risco de circular por a�. � melhor o original na gaveta e uma c�pia na carteira do que a saudade que fica.

* * *

Terceiro item: fa�a c�pia de todas as chaves de casa e deixe ou num esconderijo seguro, ou com algum amigo que more perto e n�o se incomode de ser acordado �s tr�s da manh� quando voc� voltar da delegacia. Ser assaltada � horr�vel, mas ser assaltada e ficar trancada fora de casa at� que o primeiro chaveiro da vizinhan�a pegue no batente � muito pior.

Quarto item: seguro do celular. Este, j� aviso, � um item pol�mico. Algumas operadoras, lojas de varejo e seguradoras oferecem seguro, geralmente para aparelhos novos. N�o � barato. Tipicamente, ao longo do ano, paga-se cerca de 20% do valor do aparelho, e o seguro s� vale mesmo para casos de roubo, ou seja, se o usu�rio perder ou tiver o celular discretamente afanado numa festa ou num �nibus cheio, sem viol�ncia, a seguradora n�o tem nada a ver com isso. H� muitos relatos de dissabores com seguradoras de celulares na internet. Mas como alguns aparelhos s�o bastante caros, e como a sutileza h� muito deixou de ser caracter�stica de quem trabalha no ramo de separar as pessoas dos seus bens terrenos, estou pensando muito no caso.

Como sabe quem leu a coluna da semana passada, consegui salvar meus dois celulares; a perda, de qualquer forma, teria sido apenas financeira, pois o backup do conte�do de ambos est� devidamente salvo nos meus computadores. O quinto item �, portanto, a recomenda��o de fazer este backup. Quase todo celular hoje � venda pode ser conectado a um computador. Para quem n�o tem computador, recomendo os servi�os de backup da lista de contatos, feito pelas operadoras.

O sexto item � uma coisa que ainda nem descobri se existe: seguro para �culos de grau. Procurei na internet e, at� agora, tudo o que descobri foi uma �tica portuguesa que oferece aos seus clientes um seguro de lentes. J� seria meio caminho andado se existisse algo semelhante no Brasil, porque as minhas lentes (multifocais) s�o, por incr�vel que pare�a, ainda mais caras do que os celulares � e os meus �culos escuros favoritos estavam na bolsa. O mais triste � saber que quem os levou vai jog�-los no lixo, depois de experiment�-los e de ficar matutando como consegui chegar ao oftalmologista sem uma bengala branca.

Quando fizer novos �culos escuros, vou colar dentro do estojo um cart�o com meu nome, um n�mero de celular que uso relativamente pouco e a palavra m�gica escrita em vermelho: �Gratifica-se!� Nem preciso dizer que, se alguma boa alma se prontificar a devolv�-los em caso de novo assalto, vou marcar o encontro em territ�rio neutro, seguro e longe de casa. Shoppings s�o �timos para isso.

* * *

Agrade�o de cora��o aos leitores que escreveram oferecendo solidariedade. Carinho � muito reconfortante numa hora dessas, e eu bem que gostaria de responder de forma pessoal, email por email; saibam, por�m, que li todas as mensagens recebidas, e que todas foram da maior import�ncia para mim. Mais uma vez, muito obrigada.

 

(O Globo, Segundo Caderno, 7.8.2008)