Campo de exterm�nio tamb�m n�o

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Como sabem os conhecedores da Hist�ria do Brasil, houve diversas tentativas de tornar a ilha de Itaparica uma na��o independente. Dizem que a famosa Conspira��o da Gameleira esteve perto disso, mesmo porque os portugueses, at� ent�o donos do peda�o, queriam um porto livre e o equivalente ao que hoje se chamaria para�so fiscal e, portanto, at� encorajaram o movimento. Nada se consumou, contudo, porque os conspiradores viviam adiando tudo para a pr�xima segunda-feira, at� que todos os envolvidos encheram o saco, o que acontece ainda hoje, quando algu�m puxa o assunto.

N�o conto, assim, com a soberania da ilha para proteger-me e, portanto, continuo s�dito baiano, sujeito a todos os riscos que isso envolve, os quais agora me parecem grav�ssimos. Soube primeiro pelo telefone. Uma r�dio queria entrevistar-me sobre a burrice dos baianos. Estranhei um pouco, porque estou acostumado � pregui�a e sou obrigado a confessar que n�o tenho o menor treinamento para perguntas sobre burrice. Admiti meu despreparo e pedi esclarecimentos, que me vieram n�o s� desse entrevistador como de outros, durante o resto do dia.

A vener�vel Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, que completa agora 200 anos, tirou notas baix�ssimas nuns exames que o Minist�rio da Educa��o faz por a� e que nunca entendi (agora sei que por burrice). Mas o fato � que as notas foram min�sculas e, claro, um tanto vexat�rias para tanta tradi��o. Procurado para explicar a situa��o, o coordenador do curso de gradua��o da Faculdade foi muito claro. Disse que a raz�o � que os baianos t�m baixo QI. O instrumento t�pico deles, por exemplo, � o berimbau, que s� tem uma corda. Se tivesse mais, a baianada se enrolaria e n�o aprenderia a tocar. E a m�sica deles � o Olodum, que para ele n�o passa de barulho.

At� a�, tudo muito certo, viva a liberdade de opini�o. Mas o professor deu a entender, ou disse claramente, algo um pouco mais s�rio. Disse que n�o podia fazer nada quanto ao assunto, porque �n�o tenho como mudar a gen�tica�. Considerando-se que ele se referiu a manifesta��es culturais de origem africana e que praticamente todos os baianos t�m ascendentes africanos, quando n�o s�o negros mesmo, creio que ele quis dizer que os baianos s�o burros porque negros, em maior ou menor grau. Silogismo perfeito: a)todo baiano � negro; b)todo negro � burro; c)logo, todo baiano � burro.

Fiquei meio assim com esse neg�cio, independentemente da lei Afonso Arinos e correlatas, porque se torna patente que o professor acredita na superioridade de ra�as e o �ltimo livro que leu sobre o assunto foi o c�lebre �Ensaio sobre a desigualdade das ra�as humanas�, do Conde Gobineau, no s�culo XIX. De l� para c�, n�o tomou conhecimento da irrelev�ncia do conceito de ra�a e de todos os avan�os cient�ficos e sociais sobre o assunto. Temos ent�o, segundo a palavra p�blica de uma autoridade m�dica e educacional, na esculhamba��o que � este desafortunado pa�s, a revalida��o de id�ias nazistas e �eugenistas�, a afirma��o de que existe pelo menos uma ra�a inferior, a negra.

Acho que, em outras circunst�ncias, esse cientista devia ser chamado para novo exame no Conselho Regional de Medicina, da mesma forma que o pediatra que tratar pacientes de caxumba com inje��es de bismuto e aplica��o de sanguessugas na queixada. Mas claro que ele n�o � um charlat�o e talvez at� seja um profissional competente. Portanto, na condi��o que ocupa, � irrespons�vel, leviano, arrogante, inconseq�ente e n�o parece seguir o s�bio conselho de primeiro ligar o c�rebro e s� depois acionar a boca. E espelha, talvez para entrar no clima geral, a atitude de desd�m que qualquer pessoa com o m�nimo de autoridade no Estado tem para com os governados.

Imagino que, se o tempo e o lugar fossem diversos, ele n�o se oporia a que, em mais um herc�leo esfor�o desse governo em prol da sa�de p�blica, se fizesse um cadastro geral dos baianos, com a avalia��o do QI (outro conceito obsoleto e equ�voco) de cada um e, a depender do resultado, castra��o ou esteriliza��o de todos e todas que n�o se encaixassem no padr�o m�nimo oficial, assim n�o proliferando e dando o �nico jeito que se pode dar na gen�tica, que � impedir a reprodu��o dos menos dotados. (Aten��o, s� estou falando numa hip�tese, n�o estou sugerindo nada, pois de repente algu�m l� em riba gosta da id�ia e, antes de que se possa fazer alguma coisa, uma Medida Provis�ria ter� propiciado a capa��o de um vasto n�mero de meus hoje cabreiros conterr�neos).

Posso estar agora errado, porque o professor pode vir a p�blico retratar-se e pedir desculpas, ou, mais habitual ainda entre autoridades, mentir com o mesmo charme que o presidente da Rep�blica e seus auxiliares e negar tudo. Mas, na hora em que escrevo (e o que escrevo serve para o futuro), esse professor devia ser punido pelo CRM e pelo servi�o p�blico, destitu�do do cargo, preso e processado por professar convic��es racistas e ilegais. Mas n�o vai haver nada disso, � �bvio. E, se por acaso alguma atribula��o adviesse a ele, n�o ter�amos raz�o de ter pena, n�o s� por n�o se tratar de um pobre homem como porque ele arranjaria, mole-mole, o emprego de Cirurgi�o-Chefe da Ku-Klux-Klan.

Espero, no pr�ximo ano, poder voltar a Itaparica. Como n�o me agradaria muito ser capado (nada do que voc�s est�o pensando, � que eu gostaria de morrer inteirinho mesmo), vou me informar antes sobre como vai a coisa l�, inclusive sobre se n�o v�o criar o Campo de Concentra��o de Ax�-Witz para QI�s desprez�veis e inaugurar um busto do Dr. Mengele na frente do Hospital das Cl�nicas.


Cr�nica publicada no GLOBO em 04 de maio de 2008