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Como sabem os conhecedores da Hist�ria do Brasil, houve diversas tentativas de
tornar a ilha de Itaparica uma na��o independente. Dizem que a famosa
Conspira��o da Gameleira esteve perto disso, mesmo porque os portugueses, at�
ent�o donos do peda�o, queriam um porto livre e o equivalente ao que hoje se
chamaria para�so fiscal e, portanto, at� encorajaram o movimento. Nada se
consumou, contudo, porque os conspiradores viviam adiando tudo para a pr�xima segunda-feira,
at� que todos os envolvidos encheram o saco, o que acontece ainda hoje, quando
algu�m puxa o assunto.
N�o conto, assim, com a soberania da ilha para proteger-me e, portanto, continuo
s�dito baiano, sujeito a todos os riscos que isso envolve, os quais agora me
parecem grav�ssimos. Soube primeiro pelo telefone. Uma r�dio queria entrevistar-me
sobre a burrice dos baianos. Estranhei um pouco, porque estou acostumado �
pregui�a e sou obrigado a confessar que n�o tenho o menor treinamento para perguntas
sobre burrice. Admiti meu despreparo e pedi esclarecimentos, que me vieram n�o
s� desse entrevistador como de outros, durante o resto do dia.
A vener�vel Faculdade de Medicina da Universidade Federal da
Bahia, que completa agora 200 anos, tirou notas baix�ssimas nuns exames que o Minist�rio
da Educa��o faz por a� e que nunca entendi (agora sei que por burrice). Mas o
fato � que as notas foram min�sculas e, claro, um tanto vexat�rias para tanta
tradi��o. Procurado para explicar a situa��o, o coordenador do curso de
gradua��o da Faculdade foi muito claro. Disse que a raz�o � que os baianos t�m
baixo QI. O instrumento t�pico deles, por exemplo, � o berimbau, que s� tem uma
corda. Se tivesse mais, a baianada se enrolaria e n�o aprenderia a tocar. E a
m�sica deles � o Olodum, que para ele n�o passa de barulho.
At� a�, tudo muito certo, viva a liberdade de opini�o. Mas o
professor deu a entender, ou disse claramente, algo um pouco mais s�rio. Disse
que n�o podia fazer nada quanto ao assunto, porque �n�o tenho como mudar a
gen�tica�. Considerando-se que ele se referiu a manifesta��es culturais de
origem africana e que praticamente todos os baianos t�m ascendentes africanos,
quando n�o s�o negros mesmo, creio que ele quis dizer que os baianos s�o burros
porque negros, em maior ou menor grau. Silogismo perfeito: a)todo baiano � negro;
b)todo negro � burro; c)logo, todo baiano � burro.
Fiquei meio assim com esse neg�cio, independentemente da lei Afonso Arinos e correlatas,
porque se torna patente que o professor
acredita na superioridade de ra�as e o �ltimo livro que leu sobre o assunto foi
o c�lebre �Ensaio sobre a desigualdade das ra�as humanas�, do Conde Gobineau,
no s�culo XIX. De l� para c�, n�o tomou conhecimento da irrelev�ncia do
conceito de ra�a e de todos os avan�os cient�ficos e sociais sobre o assunto.
Temos ent�o, segundo a palavra p�blica de uma autoridade m�dica e educacional,
na esculhamba��o que � este desafortunado pa�s, a revalida��o de id�ias
nazistas e �eugenistas�, a afirma��o de que existe pelo menos uma ra�a
inferior, a negra.
Acho que, em outras circunst�ncias, esse cientista devia ser
chamado para novo exame no Conselho Regional de Medicina, da mesma forma que o
pediatra que tratar pacientes de caxumba com inje��es de bismuto e aplica��o de
sanguessugas na queixada. Mas claro que ele n�o � um charlat�o e talvez at�
seja um profissional competente. Portanto, na condi��o que ocupa, � irrespons�vel,
leviano, arrogante, inconseq�ente e n�o parece seguir o s�bio conselho de
primeiro ligar o c�rebro e s� depois acionar a boca. E espelha, talvez para
entrar no clima geral, a atitude de desd�m que qualquer pessoa com o m�nimo de
autoridade no Estado tem para com os governados.
Imagino que, se o tempo e o lugar fossem diversos, ele n�o
se oporia a que, em mais um herc�leo esfor�o desse governo em prol da sa�de
p�blica, se fizesse um cadastro geral dos baianos, com a avalia��o do QI (outro
conceito obsoleto e equ�voco) de cada um e, a depender do resultado, castra��o
ou esteriliza��o de todos e todas que n�o se encaixassem no padr�o m�nimo
oficial, assim n�o proliferando e dando o �nico jeito que se pode dar na
gen�tica, que � impedir a reprodu��o dos menos dotados. (Aten��o, s� estou
falando numa hip�tese, n�o estou sugerindo nada, pois de repente algu�m l� em
riba gosta da id�ia e, antes de que se possa fazer alguma coisa, uma Medida
Provis�ria ter� propiciado a capa��o de um vasto n�mero de meus hoje cabreiros
conterr�neos).
Posso estar agora errado, porque o professor pode vir a
p�blico retratar-se e pedir desculpas, ou, mais habitual ainda entre
autoridades, mentir com o mesmo charme que o presidente da Rep�blica e seus
auxiliares e negar tudo. Mas, na hora em que escrevo (e o que escrevo serve
para o futuro), esse professor devia ser punido pelo CRM e pelo servi�o
p�blico, destitu�do do cargo, preso e processado por professar convic��es
racistas e ilegais. Mas n�o vai haver nada disso, � �bvio. E, se por acaso
alguma atribula��o adviesse a ele, n�o ter�amos raz�o de ter pena, n�o s� por
n�o se tratar de um pobre homem como porque ele arranjaria, mole-mole, o
emprego de Cirurgi�o-Chefe da Ku-Klux-Klan.
Espero, no pr�ximo ano, poder voltar a Itaparica. Como n�o me agradaria muito ser capado
(nada do que voc�s est�o pensando, � que eu gostaria de morrer inteirinho
mesmo), vou me informar antes sobre como vai a coisa l�, inclusive sobre se n�o
v�o criar o Campo de Concentra��o de Ax�-Witz para QI�s desprez�veis e
inaugurar um busto do Dr. Mengele na frente do Hospital das Cl�nicas.
Cr�nica publicada no GLOBO em 04 de maio de 2008
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