Del�rios amaz�nicos

Jo�o Ubaldo Ribeiro

As alega��es, infer�ncias e racioc�nios que se seguir�o s�o fruto de del�rios que tenho sofrido. N�o disponho de prova nenhuma de que possuem fundamento, mas, como me perseguem a ponto de, volta e e meia, algum escapulir aqui mesmo, resolvi que talvez me abandonem, se lhes der vaz�o mais intensa. O del�rio b�sico � o seguinte: dentro de algumas gera��es, talvez at� apenas uma ou duas, a Amaz�nia brasileira n�o ser� mais brasileira. Para minha cabe�a com certeza ensandecida, j� est� tudo sendo preparado diante de nossas caras abestalhadas e c�rebros lavados.

N�o h� ordem de import�ncia no que menciono, vou falando conforme os del�rios se manifestam. Como se sabe, os verdadeiros donos desta terra s�o os �ndios. Tamb�m os �ndios americanos s�o donos dos Estados Unidos, mas, em primeiro lugar, l� falam ingl�s, que � uma l�ngua superior � nossa e constitui patrim�nio inestim�vel, que nada poderia substituir. Em segundo lugar, os de l� foram praticamente exterminados em guerras leais e abertas, comandadas por gente do porte de John Wayne e Errol Flynn, sendo confinados nas piores terras que se podiam achar, como algumas �reas desertas do Arizona, ali�s tomado democraticamente do M�xico, assim como o Texas, a Calif�rnia e o Novo M�xico etc. E quase todos j� foram aculturados, pagam imposto de renda e desfrutam das benesses de serem cidad�os do pa�s mais poderoso do mundo � n�o � pouca porqueira.

Os nossos �ndios, n�o. Apesar de ainda haver problemas de demarca��o em rela��o a outros povos ind�genas, a famosa na��o ianom�mi, cuja identidade antropol�gica � posta em d�vida por alguns traidores da Humanidade, como eu, ocupa terras superiores em extens�o, fertilidade, riqueza vegetal, animal e mineral � diversos pa�ses da Europa juntos. Nada mais justo, pois, que, a esta altura do progresso humano, quando as guerras s�o coisa do passado, os preoconceitos deixaram de existir e a autodetermina��o dos povos � princ�pio basilar do direito internacional (v. curdos, por exemplo), os ianom�mis venham a ser convocados a um plebiscito em que dir�o se querem continuar a pertencer a territ�rio brasileiro, ou constituir seu pr�prio Estado independente. Caso esta �ltima hip�tese, como � mais do que prov�vel, ocorra, os americanos, paladinos da liberdade em todo o universo, fornecer�o apoio e ajuda desinteressados, assim como o far�o em rela��o a qualquer outra na��o ind�gena (dizer �tribo� n�o � mais politicamente correto) que queira autodeterminar-se. Precisaremos de passaporte e visto para ingressar no que hoje � nosso.

H� tamb�m a quest�o da �gua. Ningu�m leva isso a s�rio, mas o mundo come�a a padecer agudamente de falta de �gua pot�vel e, tamb�m como se sabe, somos incapazes de gerir nosso patrim�nio h�drico. � um esc�ndalo, um crime contra a Humanidade e somente a a��o pronta dos pa�ses mais respons�veis, como os Estados Unidos, � que poder� salvar o mundo de um destinio desidratado. Cada vez se fala mais no problema da �gua e, daqui a pouco, a situa��o se tornar� insustent�vel, com a conseq��ncia de que, at� por obriga��o moral, se constituir� a International Commission for Water Resources, constitu�da por pa�ses de todo o mundo e presidida pelo mais qualificado, ou seja, os Estados Unidos, ou sen�o a Costa Rica, que tem o poderio necess�rio para fazer valer as decis�es do colegiado. E o Brasil � o pa�s que tem mais �gua no mundo.

O problema das drogas � talvez o mais premente. � fato conhecido que, se algu�m produzir titica de barata enlatada, provavelmente enfrentar� um fracasso comercial, j� que o consumo dessa mercadoria n�o ser� dos mais promissores. Contudo, o consumo de de cloridrato de coca�na conta com vasto mercado. N�o se ignora que, desde que o mundo � mundo, se houver uma demanda, haver� quem se disponha a ter lucros satisfazendo essa demanda. Isso, entretanto, era antes de aparecerem os Estados Unidos. Na opini�o desse nosso protetor, o caso da coca�na � uma exce��o. Existe uma produ��o de coca�na e, como conseq��ncia, os americanos e europeus s�o obrigados a consumi-la, causando graves danos � sa�de p�blica. Deduz-se, portanto, que � necess�rio fazer com que os camponeses produtores de coca ganhem dez ou cem vezes menos em outras colheitas que n�o a da coca, para n�o provocar esse feio e danoso v�cio. Para isso, estuda-se uma opera��o de guerra na Amaz�nia, em que o uso de desfolhantes j� vem sendo cogitado, como aconteceu no Vietn�. E, em mais uma prova de desprendimento, os americanos v�o prejudicar sua ind�stria de �ter e outros produtos necess�rios ao refino da coca�na, embora, � claro, como decorr�ncia inevit�vel, a ind�stria b�lica, a de desfolhantes e outras se v�o beneficiar, mas nada � perfeito neste mundo. E, obviamente, ser� necess�ria a ocupa��o provis�ria dessas �reas pelos americanos (pelas Na��es Unidas, talvez, embora os americanos sejam os maiores devedores da UN, mas qualquer um pode cometer uma distra��o dessas e, no dia em que eles se lembrarem, pagam), provisoriedade esta que, dada a ruindade inata da condi��o humana, especialmente a de latinos mesti�os, poder� ser como a da CPMF e se tornar permanente.

Outra coisa � a Hist�ria. Tamb�m como se sabe, sempre houve uma Cor�ia do Norte e uma do Sul, um Vietn� do Norte, outro do Sul, um Panam� e uma Col�mbia, nada disso tendo a ver com os americanos. Quem garante que n�o h� e sempre houve um Brasil do Norte e um Brasil do Sul, ou v�rios Brasis amaz�nicos? � bem poss�vel que isto venha a ser demonstrado pelos fatos futuros e sejamos obrigados a curvar-nos ante a realidade, antes obnubilada pela nossa ignor�ncia mesquinha. Enfim, est� tudo a�, j� praticamente prontinho. E, do mesmo buraco doentio da mente do qual tirei estas bobagens, � poss�vel sa�rem muitas mais, est� a� um bocado de gente morta que n�o me deixa mentir. Mas � tudo del�rio. N�s, escritores e jornalistas, somos muito chegados a um deliriozinho; perd�o, leitores.


Cr�nica publicada no GLOBO


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06-jun-2008