O golpe j� come�ou

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Voc�s vejam como, em volteios e ironias, a vida nos d� constantes li��es de humildade. Faz poucas semanas, argumentei aqui que n�o havia golpismo nenhum no Brasil, a n�o ser numa cabe�a desvairada ou outra. Gira o mundo, passam os dias, e agora me encontro na obriga��o de engolir minhas palavras. Fosse l� no bom sert�o de onde vem o dr. Renan Calheiros, talvez um coronel me obrigasse a literalmente comer o jornal, como � de veneranda tradi��o regional. Pois n�o � que, num relampejo deflagrado pela Provid�ncia, numa reprodu��o modest�ssima do estalo de Vieira, acaba de me aparecer com grande vividez toda a verdade, em sua nudez t�o clara quanto imunda? Mas � �bvio que h� golpismo, como asseveram os governistas. Mais que isso, o golpe j� est� se desenrolando, com uma sorte e uma maestria sem rivais.

S� que o pessoal, o que, nas circunst�ncias, � perfeitamente desculp�vel e compreens�vel, esqueceu de falar que o golpe n�o vem do lado de c�, dos descontentes como eu e muitos outros, at� mesmo a odiosa Zelite, que, ali�s, vai se dar bem como sempre, golpe ou n�o golpe. O golpe � do governo mesmo. Sei que com esta afirma��o me arriscaria a ser acusado de cal�nia. Mas n�o � cal�nia, porque est� tudo t�o bem feitinho, t�o arrumadinho, vai ser tudo t�o dentro da lei e do apoio popular, que, ao dizer que o governo est� dando o golpe, n�o o estou � o que caracterizaria cal�nia � acusando de crime, estou � achando esse pessoal sabido que � danado.

Jornal � lido por gente de todo tipo e me desculpo com aqueles que j� sabem o que vou resumir simplificadissimamente. O Brasil tem um sistema bicameral, a C�mara de Deputados e o Senado Federal. A C�mara representa a popula��o e, portanto, os Estados mais populosos t�m mais deputados. Para evitar que esses Estados dominem inteiramente os minorit�rios, o Senado tem um n�mero igual de membros para cada Estado. E cumpre fun��es important�ssimas em nosso sistema. Entretanto, o dr. Berzoini, outro dia, praticamente declarou como projeto do PT a extin��o do Senado. Sendo a cabe�a do PT em S�o Paulo, a coisa ficaria muito facilitada, se n�o houvesse Senado.

Agora, num julgamento que se pode rotular de clandestino, malocados como bandidos numa cafua em que a atmosfera mais se assimilava a uma reuni�o da Cosa Nostra com direito a porrada na entrada, os senadores, escondidos do povo que desrespeitam, envergonham, enganam, furtam (ponham a� o �raras exce��es� de praxe, por favor, pois c� me impede momentaneamente a n�usea) e atrai�oam, os senadores decidiram votar contra as convic��es de praticamente toda a na��o. Ou seja, a esmagadora maioria do povo brasileiro, tenho certeza, considera hoje o Senado n�o mais que uma furna de parasitas, lar�pios incompetentes, negociantes da honra, hip�critas inexced�veis, aproveitadores descarados e uma despesa desnecess�ria para o pa�s. O Senado, finalmente, conseguiu firmar seu processo de putrifica��o e assim cumpre sua parte no golpe. Tenho certeza de que, se n�o a maioria, parte muito significativa do povo brasileiro votaria ou sairia � rua pela extin��o do Senado. Portanto, ele est� cumprindo muito bem seu papel no golpe, esfor�ando-se ao m�ximo para mostrar que s� serve para atrapalhar e vai continuar a atrapalhar, envolvido em processos e dissens�es, para daqui a pouco o presidente dizer, com geral concord�ncia p�blica, que o Senado n�o o deixa governar. D�-se um jeito, perfeitamente legal e com feroz apoio popular, de acabar com o Senado.

Depois, acabar com a C�mara de Deputados � mole. Sabe qualquer um que, se cuspir no ch�o fosse h�bito brasileiro para expressar desprezo e repulsa, nadar�amos num mar de saliva, pois seria o que aconteceria sempre que se falasse em deputado e senador. Na nossa Hist�ria recente, a C�mara tem empreendido uma campanha sem quartel para tornar �deputado� e �pol�tico� xingamentos desses de reagir com um murro na cara e um processo por difama��o e inj�ria. O povo despreza todos eles com equanimidade (botem as raras exce��es outra vez, � s� para n�o me prenderem com muita facilidade � j� basta que o respons�vel por tudo o que estou atacando sou eu mesmo, como integrante da famigerada m�dia) e muita gente tem de tomar um antiem�tico quando um deles aparece na TV. Transforma-se (� f�cil, � s� dar um empreguinho aqui, uma graninha l�, uma garota de programa acol�) a atual C�mara numa Assembl�ia Constituinte e se aprova-se uma nova Constitui��o de truz. Nem � preciso trabalhar muito, porque a de 37 est� a� mesmo, para ser copiada ou servir de modelo, retiradas as partes mais progressistas. A admira��o do presidente Lula por Get�lio Vargas vai ficar bem mais fervorosa.

Renan Calheiros, � custa de enorme desgaste pessoal, desempenhou e certamente desempenhar� bravamente sua parte (n�o a sua parte em dinheiro, que nada disso est� provado e � por fora � tirem esse bicho da�!). Est� quase tudo feito para se demonstrar cabalmente que tanto o Senado Federal quanto a C�mara de Deputados s�o desnecess�rios e mesmo perniciosos, simulacros descart�veis de verdadeiras institui��es democr�ticas. Creio que a maioria dos senadores e deputados continuar� colaborando, tendo � proa o brioso senador Alo�sio Mercadante (que falou por si e assim sacrificou a biografia pela causa, pois, como se ment..., quer dizer, como se sabe, o PT liberou os votos de todos os seus membros) e aquela outra cujo nome ora me escapa, uma que sempre me lembra uma recepcionista de gafieira com problemas sint�ticos.

E finalizo com um elogio aos antigos e � sabedoria que atravessa os s�culos. Tudo isso me veio � mente quando me fiz a velha pergunta romana, que tantos eventos j� esclareceu: Cui prodest? � a quem aproveita? A mim, no momento, s� me ocorre um Grande Aproveitador. A voc�s ocorre quem?


Cr�nica publicada no GLOBO, em 16 de setembro de 2007.


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06-jun-2008