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Hoje de tarde fui � Bol�via, que fica logo ali. Encontrei Lima Duarte e
C�ssio Gabus Mendes bebendo umas Pace�as no boteco da esquina, enquanto,
na pra�a em frente, centenas de maritacas fofocavam antes de se recolherem
�s palmeiras onde dormem. Conversamos e rimos muito; na volta, parei na
beira do rio para me despedir de tr�s jovens capivaras que avistei ontem.
N�o, n�o estou de pileque. Estou na cidade de Brasil�ia, a poucos
quil�metros de Xapuri. Vim de enxerida, ver as grava��es da segunda fase
de "Amaz�nia", a fant�stica miniss�rie de Gl�ria Perez -- e estou
totalmente apaixonada pelo Acre.
A exuber�ncia da natureza na Regi�o Norte nunca deixa de me surpreender,
mas no Acre h� bem mais do que isso -- h� um amor pela terra que se
manifesta nas centenas de bandeiras do estado que tremulam em mastros
oficiais, que se mostram nas lojas e nas casas, e que percorrem as ruas
como adesivos de autom�veis, motos e bicicletas. Isso quando n�o v�o
coladas ao pr�prio peito dos acreanos, como estampas de camisetas.
Em nenhum outro lugar do mundo, nem mesmo na Nova York dos tempos da
campanha "I love New York", vi tanta gente usando camisetas com s�mbolos
locais.
Faz um bem danado � alma da gente ver isso.
Depois h�, por toda parte, paredes pintadas nas cores mais alegres. No
come�o achei que isso fosse coisa da capital, privilegiada por
administra��es de matar qualquer carioca de inveja; mas n�o. Percorrendo
os mais de 200 quil�metros que levam de Rio Branco � fronteira com a
Bol�via, onde quer que se pare h� uma janela vermelha, uma porta azul, uma
fachada verde.
Esse gosto pelo colorido se v� igualmente nas roupas estendidas para
secar. Qualquer varal humilde perdido pelo interior parece adere�o
cenogr�fico. Isso, ali�s, criou um interessante paradoxo para a equipe que
faz "Amaz�nia", e que acabou deixando de lado muitas loca��es importantes,
porque pareceriam bonitas demais, limpas demais para serem verdadeiras.
O grau de limpeza surpreende, mesmo. Em Rio Branco, cheguei a pensar que
as ruas t�o bem tratadas fossem apenas o resultado de um esfor�o ocasional
para transmitir uma boa imagem, aproveitando a visibilidade proporcionada
pela miniss�rie; mas em Brasil�ia e em Epitaciolandia, onde encontra-se a
equipe da Globo, h� cuidado igual com os espa�os p�blicos. As cidades n�o
s�o ricas, em alguns lugares o asfalto est� esburacado por causa das
chuvas, mas quase n�o se v� lixo nas ruas ou picha��es nas paredes.
Confesso que, diante dessa pobreza digna e asseada, me envergonhei pelo
estado lastim�vel em que se encontra o Rio. Como todo carioca, estou
cansada de saber que n�o h� turista americano ou europeu que n�o fique
chocado diante de tanta sujeira e falta de manuten��o; agora sei, por
constata��o pr�pria, que, neste quesito, fazemos feio tamb�m diante dos
acreanos.
Percorrer este interior, que o pessoal gosta de definir como "Brasil
profundo", sempre me comove. Entra-se em outra dimens�o do tempo, num
mundo mais simples, menos consumista, mais apegado aos valores da terra.
Vejo as casinhas modestas de madeira, de um ou dois c�modos, limpas e
aconchegantes, onde as pessoas vivem com t�o pouco, e me assusta o
contraste com as cidades grandes, onde cada vez juntamos mais coisas
in�teis � nossa volta.
� claro que h� tamb�m o reverso da medalha. Tenho uma tend�ncia natural a
buscar o lado bom do que me cerca, mas � imposs�vel ignorar a devasta��o
pela qual passou este estado ao sobrevo�-o, ou a atravessar quil�metros e
quil�metros de pastos e mais pastos.
A paisagem � linda e buc�lica, com certeza -- mas ali, onde pasta o gado,
houve, um dia, uma floresta inteira que veio abaixo.
Isso corta o cora��o.
Passeando por Rio Branco de bicicleta com Jorge Viana, ex-prefeito e
ex-governador, tamb�m era imposs�vel ignorar a presen�a ultra-discreta dos
guarda-costas, que n�o estavam l� como s�mbolos de um eventual poder, mas
como necessidade fundamental de sobreviv�ncia de um homem que teve coragem
de desafiar os bandidos que controlavam a regi�o.
Quem l� jornal sabe que este � um lugar onde as desaven�as continuam a ser
resolvidas a bala.
O Acre n�o � um destino tur�stico como Manaus ou Bel�m, mas deveria
ser. N�o tem teatros mirabolantes plantados na selva (quase n�o tem mais
selva, a bem da verdade) mas, entre seus defeitos e qualidades, entre as
trag�dias do passado e o gigantesco esfor�o de recupera��o da auto-estima
do presente, re�ne uma quantidade �nica de li��es de Brasil.
Cheguei h� tr�s dias, vou embora logo, mas tenho, desde j�, duas certezas:
a de que esta foi uma das mais extraordin�rias viagens da minha vida, e a
de que este � um recanto do meu pa�s que levarei para sempre no cora��o.
(O Globo, Segundo Caderno, 15.03.2007)
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