|
Affonso Romano de Sant'Anna
Meu carro p�ra numa
esquina da praia de Copacabana �s 9h30m e vejo um velho vestido de branco
numa cadeira de rodas olhando o mar � dist�ncia. Por ele passam pernas
portentosas, reluzentes cabeleiras adolescentes e os b�ceps de jovens
surfistas. Mas ele permanece sentado olhando o mar � dist�ncia.
O carro continua parado,
o sinal fechado e o estupendo calor da vida batia de frente sobre mim.
Tudo em torno era uma �vida solicita��o dos sentidos. Por isto,
paradoxalmente, fixei-me por um instante naquele corpo que parecia
ancorado do outro lado das coisas. E sem fazer qualquer esfor�o comecei a
imagin�-lo quando jovem. � um exerc�cio estranho esse de come�ar a remo�ar
um corpo na imagina��o, injetar movimento e desejo nos seus m�sculos,
acelerando nele, de novo, a avareza de viver cada instante.
A gente tem a leviandade
de achar que os velhos nasceram velhos, que est�o ali apenas para assistir
ao nosso crescimento. Me lembro que menino ao ver um velho parente relatar
fatos de sua juventude tinha sempre a sensa��o de que ele estava
inventando uma est�ria para me convencer de alguma coisa.
No entanto, aquele velho
que vejo na esquina da praia de Copacabana deve ter sido jovem algum dia,
em alguma outra praia, nos bra�os de algum amor, bebendo e farreando
irresponsavelmente e achando que o estoque da vida era ilimitado.
Teria ele algum desejo ao
olhar as coxas das banhistas que passam? Olhando alguma delas teria se
posto a lembrar de outros corpos que conheceu? Os que por ele passam
poderiam supor que ele fazia maravilhas na cama ou nas pistas de dan�a?
Me lembra ter lido em
algum lugar que o inconsciente n�o tem idade. Ah, sim, foi no livro de
Simone de Beauvoir sobre "A velhice". E ali ela tamb�m apresentava
uma estat�stica segundo a qual por volta dos 60 anos poucos se declaram
velhos; depois dos 80 anos, s� 53% se consideram velhos, 36% acham que s�o
de meia-idade e 11% se julgam jovens.
N�o sei porque, mas toda
vez que vejo um senhor de cabelos brancos andando pela praia penso que ele
� um almirante aposentado. �s vezes, concedo e admito que ele pode ser
tamb�m da Aeron�utica. Por causa disto, durante muito tempo, vendo esses
senhores passeando pela areia e cal�ada, sempre achava que toda a Marinha
e Aeron�utica havia se aposentado entre Leblon e Copacabana.
Mas esses senhores de
short e bon� branco que passam �s vezes em dupla pelo cal�ad�o, s�o mais
atl�ticos que aquele que denominei de velho e, sentado na cadeira, olha o
mar.
Ele est� ali, eu no meu
carro, e me dou conta que um n�mero crescente de amigos e conhecidos tem
me pronunciado a palavra "aposentadoria" ultimamente. Isto � uma s�ndrome
grave. Em breve estarei cercado de aposentados e for�osamente me
aposentar�o. Ent�o, imagino, vou passear de short branco e bon� pelo
cal�ad�o da praia, fingindo ser um almirante aposentado, aproveitando o
sol mais ameno das 9h30m at� cair sentado numa cadeira e ficar olhando o
mar.
Me lembra ter lido
naquele estudo de Simone de Beauvoir sobre a velhice algo neste sentido: "Morrer,
prematuramente, ou envelhecer: n�o h� outra alternativa." E,
entretanto, como escreveu Goethe: "A idade apodera-se de n�s de
surpresa." Cada um �, para si mesmo, o sujeito �nico, e muitas vezes
nos espantamos quando o destino comum se torno o nosso: doen�a, ruptura,
luto. Lembro-me de meu assombro quando, seriamente doente pela primeira
vez na vida, eu me dizia: "Essa mulher que est� sendo transportada numa
padiola sou eu." Entretanto, os acidentes contingentes integram-se
facilmente � nossa hist�ria, porque nos atingem em nossa singularidade:
velhice � um destino, e quando ela se apodera de nossa pr�pria vida,
deixa-nos estupefatos. "O que se passou, ent�o? A vida, e eu estou
velho", escreve Aragon.
Meu carro, no entanto,
continua parado no sinal da praia de Copacabana. O carro apenas, porque a
imagina��o, entre o sinal vermelho e o verde, viajou intensamente. Vou ter
de deixar ali o velho e sua acompanhante olhando o mar por mim. Vou viver
a vida por ele, me iludir que no escrit�rio transformo o mundo com
telefonemas, projetos e pap�is. Um dia, talvez, esteja naquela cadeira
olhando mar � dist�ncia, a vida distante.
Mas que ao olhar para
dentro eu tenha muito que rever e contemplar. Neste caso n�o me
importarei que o mo�o que estiver no seu carro parado no sinal imagine
coisas sobre mim. Estarei olhando o mar, o mar interior e terei alegrias
de nenhum passante compreender�.
Do site
RELEITURAS, do meu
amigo Arnaldo Nogueira Jr.
|