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Cronista pede, urgentemente, uma p�lula azul, para
fazer de conta que nada est� acontecendo.
H� um momento em "Zuzu Angel" em que a protagonista explode:
-- � t�o f�cil andar por a� fazendo de conta que nada est� acontecendo!
�, acho que era, sim. N�o para quem tinha 20 anos e o sentimento do mundo, claro; mas sim, havia sim uma
quantidade de pessoas que tocava a vida, pegava condu��o, ia ao cinema e bebia chope sem outra preocupa��o que
n�o a vida imediata, real, palp�vel: o sal�rio no fim do m�s, a comida na mesa, a mulher, os filhos. Uma massa
consider�vel de brasileiros n�o estava nem a� para a desconstru��o do ensino b�sico, a falta de liberdade de
express�o, a corrup��o, as pris�es, a tortura, o misterioso desaparecimento dos seus semelhantes.
Suponho que fosse f�cil andar por a� fazendo de conta que nada estava acontecendo at� porque, entre outras
coisas, a imprensa, que tudo poderia denunciar, estava sob censura. Ing�nuos, ach�vamos que, quando a liberdade
enfim chegasse ao pa�s, traria consigo uma sociedade mais consciente, mais indignada, mais disposta a lutar por
sua cidadania. Uma sociedade mais justa. Naqueles tempos bin�rios do "n�s" e "eles", do "bem" e do "mal", da
"esquerda" e da "direita", tudo era simples e �bvio.
Pod�amos nos dar ao luxo de ter ilus�es, e de achar que o pa�s tinha jeito -- apenas estava, temporariamente, em
m�os erradas.
* * *
A ditadura acabou, os militares recolheram-se aos quart�is, a imprensa n�o est� mais sob censura. E o que
descobrimos? Que n�o existe fundo no po�o. Quando achamos que chegamos l�, abre-se um al�ap�o antes escondido e
continuamos caindo. As den�ncias cotidianas estampadas nos jornais n�o escandalizam mais ningu�m; j� sabemos que
o Brasil sempre esteve, est� e estar� em m�os erradas, haja o que houver, eleja-se quem se eleger.
A essa altura, desfeitos os sonhos de juventude, bem que eu gostaria de andar por a� fazendo de conta que nada
est� acontecendo, mesmo porque ningu�m ag�enta tanta not�cia desalentadora e vejo, na cr�nica, o espa�o onde, �s
vezes, se pode refazer uma vaga sensa��o da normalidade perdida.
Mas, ao contr�rio do que diz Zuzu no filme, como � dif�cil andar por a� fazendo de conta que nada est�
acontecendo! Como � dif�cil ignorar a degrada��o do pa�s e da cidade, como � dif�cil ignorar a degrada��o das
pessoas!
Como � poss�vel andar por a� fazendo de conta que nada est� acontecendo?!
Pois a julgar pelos resultados das pesquisas eleitorais, que apontam uma ampla possibilidade de vit�ria de Lula,
uma nova massa consider�vel de brasileiros desencavou, em algum lugar, a f�rmula do anest�sico usado na �poca da
ditadura.
Como � poss�vel andar por a� fazendo de conta que nada est� acontecendo quando, em meio ao caos mais completo, o
presidente fala que o Brasil est� "todo ajeitadinho"? Quando o presidente prop�e uma constituinte sem justa
causa (e ainda encontra respaldo entre formadores de opini�o para a sua "id�ia genial")? Quando o presidente
mente sem qualquer pudor sempre que abre a boca -- e fica tudo por isso mesmo, porque, afinal, todos j� se
conformaram com a farsa da trai��o sem traidores?
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Como � poss�vel fazer de conta que nada est� acontecendo quando o supremo mandat�rio da Na��o, o nosso principal
funcion�rio, encontra apoio moral em Jos� Sarney e Jader Barbalho, faz campanha para Newton Cardoso e para
Marcelo Crivella -- e continua contando com o apoio de gente que antigamente era (ou se acreditava) de
"esquerda"?!
* * *
Acho que estou sofrendo da mesma s�ndrome depressiva p�s-Copa do Jo�o Ubaldo. N�o consigo achar mais nada
"normal", nem na rua nem no notici�rio. Tudo fede, tudo est� podre, tudo agride a quem ainda tem um m�nimo de
sensibilidade e de no��o daquilo que, antigamente, cham�vamos de "valores". Cal�adas esburacadas e "gatos" em
todos os postes da Zona Sul, em tese uma �rea "nobre"; indulto para presos numa data comercial sem qualquer
relev�ncia moral ou religiosa; S�o Paulo transformada em pra�a de guerra; o Rio na mesma situa��o lastim�vel a
que j� nos habituamos.
* * *
J� nos habituamos?
N�o, sinto muito, eu n�o consigo me habituar. Eu tamb�m quero uma p�lula azul para andar por a� fazendo de conta
que nada est� acontecendo, para esquecer a corja a que estamos entregues, para parar de chorar de raiva e de
impot�ncia pelo assassinato daquele pobre rapaz portugu�s que viajava t�o contente com os pais.
Quero uma p�lula azul para perder a vontade de escrever para todo mundo, AOS GRITOS: "Fujam daqui, n�o venham
para c�, n�o ponham os p�s neste pa�s sem lei, sem justi�a, sem vergonha na cara!"
(O Globo, Segundo Caderno, 17.08.2006)
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