Alguma alegria a�?

Jo�o Ubaldo Ribeiro

H� dias venho amanhecendo com um sorriso meio parvo estampado na cara e a disposi��o de escrever um texto leve e, com um pouco de sorte, engra�ado. Fui ler aqui o que venho escrevendo e s� vejo, tomara que com certo exagero, pensamentos soturnos ou desanimados, observa��es meio c�nicas, previs�es quase l�gubres. Durante a Copa, tentei aliviar a m�o, mas, com aquele time e mais a morte do Bussunda, ficou dif�cil. Havia dias em que era alegria de palha�o mesmo, uma for�a��ozinha de barra profissional, para tentar n�o passar ao leitor mais chatea��es do que as que j� o perseguem, ainda mais quando ele n�o tem nada a ver com elas.

E, agora de volta h� tantos dias, pego esta coluna impressa no jornal e quase sinto um h�lito de des�nimo a desesperan�a. Ser� isto mesmo? Ser� que n�o temos mais para onde olhar, que n�o h� mais raz�o de alegria, n�o se pode mais brincar sem sentir culpa? Tento reavivar o sorriso j� se esmaecendo e recorro a meu sortido estoque de filosofia de almanaque para me convencer de que n�o se deve levar esta vida rid�cula demasiadamente a s�rio. Besteira, tudo passa, at� o sistema solar vai passar num piscar de olhos c�smico, temos � que curtir t�o indolormente quanto poss�vel esta esquisita experi�ncia da Natureza com a esp�cie humana, que para mim n�o vai dar em boa coisa, pelo menos durante muito tempo ainda.

Pois �, mais f�cil dito que feito. Vou aos jornais do dia, a primeira coisa que vejo � um liban�s segurando seu filhinho morto, uma linda crian�a retirada dos escombros criados por bombardeios. N�o estou tomando partido, n�o quero entrar em discuss�es freq�entemente exaltadas, passionais e irracionais, s� quero dizer que a primeira coisa que vi foi a foto de um pai carregando no colo seu filhinho morto. Era uma criancinha morta e podia n�o ser no L�bano, podia ter sido em tantas partes do mundo onde esse tipo de coisa vive acontecendo de tantas formas, inclusive entre n�s, sempre monstruosamente.

O �dio, meu Deus, ser� mesmo esse sentimento o que mais motiva a a��o do homem? H� �dio em toda parte, buscam-se novos �dios, criam-se antagonistas onde n�o existem e nossa esp�cie se mata como se mata desde o come�o dos tempos, s� que com maior efici�ncia. Aqui, como � tantas vezes vis�vel no notici�rio, n�o se assalta mais apenas para roubar. Assalta-se com �dio, com vontade de matar, humilhar, afrontar. E alguma coisa, s�culo atr�s de s�culo, poder� apagar o �dio entre os antagonistas no Oriente M�dio? Nasce-se odiando, morre-se odiando, procria-se para odiar. Dif�cil, dif�cil manter o sorriso, tudo bem quanto ao profissionalismo, mas escritor tamb�m � gente.

Dentro dos jornais, mais mortes, mais amea�as, mais medos em todas as frentes. O crime organizado � apresentado como uma das m�quinas mais bem montadas e eficientes do mundo, j� em contatos s�rios com pol�ticos e governantes em geral. J� se �ideologiza� essa nova ordem. N�o demora, talvez, a cria��o de um partido pol�tico que defenda abertamente essa nova ordem. Alguns de voc�s, talvez muitos, pensam que estou delirando, mas n�o creio estar.

Na opini�o de voc�s, � mesmo ainda poss�vel limpar o Brasil de tanta pr�tica suja e secularmente criminosa e imoral? N�o est� tudo encardida e pegajosamente entranhado em grupos de interesses, costumes, cultura, grupos financeiros e quadrilhas diversas? N�o se tem a impress�o, pelo notici�rio, de que se trata de uma met�stase irrevers�vel e incontrol�vel, pois n�o h� setor da vida nacional em que n�o se descubram falcatruas de todos os g�neros e que n�o h� nada mais a fazer? N�o � verdade que qualquer um pode citar de mem�ria v�rios ladr�es confessos que est�o por a� soltos, muitos desfrutando largamente do que roubaram, nunca devolveram e nunca v�o devolver?

A� querem que o povo vote �certo�. Vamos ver em que condi��es educacionais e econ�micas est� a grande maioria desse povo. Quem sair fazendo perguntas sobre a realidade nacional � maior parte dos estudantes universit�rios brasileiros vai com certeza tomar diversos sustos. Imaginem voc�s os horizontes de quem nem compreende direito o que lhe falam os forasteiros ou os que usam belos termos, quem nunca leu nada, quem nunca viu nada, quem tem um vocabul�rio de umas duas ou tr�s centenas de palavras, como tantos eleitores que conhe�o?

O grande eleitorado continua a ser massa de manobra, como sempre foi, de acordo com as circunst�ncias de cada �poca. Para que lados vai ser manobrado, n�o sei, mas conhe�o o chamado �interior� e n�o posso subestimar o poder do programa de esmolas que o governo, apesar de desvios e das inevit�veis mutretas, vem conduzindo. Vale eleitoralmente muito. Assistencialismo combina com clientelismo que combina com paternalismo e tudo o que o pessoal bronco (mas esperto � sua maneira e, como qualquer um, n�o infenso � lei do menor esfor�o) espera: um salvador desses, que garanta sua sobreviv�ncia tranq�ila, na mis�ria a que est� habituado. At� mesmo a cachacinha do �bolsista� est� garantida mais do que nunca, posso assegurar a voc�s e, depois de uma visitinha �s minhas bases, em janeiro, vou ter certeza.

Ent�o, algum motivo de alegria a�? Algum candidato os entusiasma? Temos alguma coisa a comemorar? Ter�o raz�o os que prev�em (eles existem, alguns bastante convictos) que Lula vai perder? E, se perder, far� alguma diferen�a? Algu�m mais ser� nosso d. Sebasti�o, que tanto tarda em nos vir redimir? Alguma coisa far� diferen�a? N�s temos jeito? Ou o Brasil perdurar� para sempre, na nossa pr�pria opini�o, como o pa�s com o qual ou sem o qual o mundo permaneceria tal e qual? Agora que nem mais o pa�s do futebol somos, talvez. Algu�m se importa?


Cr�nica publicada no GLOBO, em 6 de agosto de 2006.