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Durante as curtas f�rias que tirei com a Bia, consegui, pela primeira vez em
muitos anos, me desligar completamente do mundo. N�o vi televis�o, n�o surfei
pela internet e, por causa das l�nguas em que est�vamos mergulhadas, mal e mal
lia as manchetes dos jornais.
Tudo o que me interessava era o boletim meteorol�gico e o pr�ximo passo que
dar�amos: para onde ir�amos, como, em que condi��es? A grana seria suficiente?
Mesmo quando viajo sem destino tra�ado, costumo fazer melhor o dever de casa do
que fiz desta vez; mas fomos t�o felizes que at� os poucos contratempos que
enfrentamos foram divertidos, como o achaque na Eslov�quia e um hotel pavoroso
em Praga, onde tom�vamos caf� cercadas de armaduras, no aconchegante ambiente de
uma pris�o medieval.
O Brasil ficou muito longe, mesmo na primeira etapa da viagem, quando eu ainda
estava trabalhando, mergulhada em telas de plasma e eletrodom�sticos wi-fi. �s
vezes recebia uma not�cia ou outra atrav�s da �rea de coment�rios do blog ou de
telefonemas para casa, mas consegui a proeza de passar duas semanas sem saber o
que estava acontecendo fora das minhas redondezas geogr�ficas. Era como se
estivesse numa esp�cie de bolha inating�vel, � prova de CPIs, mensal�es,
pol�ticos corruptos, trag�dias mundiais.
A bolha m�gica foi estourada quase no fim da viagem, com a not�cia da morte do
Cesar, porteiro noturno de quem gost�vamos muito. A tristeza nos trouxe a
consci�ncia do contraste, e nos jogou na cara, como um soco, a realidade que
vivemos nesta terra de ningu�m em que se transformou o Rio de Janeiro.
Muitas vezes, ao longo dos anos, assistindo a cenas de guerra pela televis�o, me
espantava com pessoas que insistiam em continuar vivendo no inferno. N�o aquelas
pobres pessoas destitu�das, claro, que nascem e morrem sem qualquer poder de
escolha; mas as de algumas posses, que em tese poderiam vender casa e carro, por
exemplo, e recome�ar a vida em canto mais sossegado.
Enquanto eu me perguntava como algu�m podia continuar a viver em Beirute ou em
Jerusal�m, minha pr�pria cidade ia se encarregando da resposta. Salvo em guerras
declaradas, o cerco da viol�ncia � sutil, gradual. Um dia � um assalto aqui, no
outro uma morte ali. Mal reparamos quando come�amos a evitar as linhas de �nibus
mais perigosas, quando deixamos de sair a p� � noite, quando a uma da manh� j�
mal se v� gente em pontos onde, antigamente, esta era a hora em que a festa
come�ava. O som dos tiroteios vai se integrando � cacofonia urbana, e passamos a
achar normal o barulho dos fuzis e metralhadoras que vem dos morros.
Como � que algu�m pode viver numa cidade odiada pelo presidente, abandonada
pelos governadores e esquecida pelo prefeito? Como � que algu�m pode viver numa
cidade onde n�o existe mais seguran�a alguma, ou vest�gios de qualquer coisa
semelhante � ordem? Como � que se pode viver numa cidade tomada pela bandidagem
e pelas ervas daninhas, suja e esburacada, cheia de mendigos, assaltantes e
menores de rua que metem medo at� na pol�cia? Como � que se pode viver numa
cidade onde a pol�cia federal � a pol�cia federal! � � roubada diante de todos?!
Por que n�o vamos embora deste inferno para um lugar decente, onde se pode viver
em paz, andar pelas ruas a qualquer hora do dia ou da noite e usar transporte
coletivo sem risco de vida? Por que nos sujeitamos, de livre e espont�nea
vontade, ao descaso e ao cinismo das autoridades, � ang�stia, � viol�ncia?
Passei duas semanas na Europa vivendo como, em tese, deveriam viver todas as
pessoas do planeta, andando pelas ruas sem medo ou desconfian�a. Pude usar
minhas c�meras e celulares, andei em bicicletas maravilhosas que jamais sonharia
ter aqui, sa� com meu rel�gio de estima��o sem receio de que o levassem na
primeira esquina.
Vivi duas semanas feito gente e, confesso, achei muito bom.
O problema � que n�o vivi na minha l�ngua, n�o vivi na minha cultura, n�o vivi
na minha quer�ncia. Ser turista � �timo, mas ser estrangeiro n�o �.
O Rio nunca esteve t�o mal, t�o triste e t�o desamparado; nunca estivemos t�o
por baixo, t�o submissos e acabrunhados. Mas a geografia desta cidade est�
indelevelmente gravada no meu DNA, e a conversa das ruas � a trilha sonora da
minha vida. Para n�o falar na familiaridade com a beleza, este raro privil�gio
que temos n�s, cariocas, pelo simples fato de vivermos aqui.
H� gente que vem de todos os lugares para ver, por alto, o que n�s conhecemos a
fundo, o que � nosso e o que vemos e veremos todos os dias � at� que um pivete
nos mate por uma bobagem, a pol�cia nos acerte por engano ou uma bala perdida
nos encontre, s� assim.
Hoje eu entendo quem morava em Beirute, quem vive em Jerusal�m, quem insiste em
n�o sair de Bagd�.
Publicado no Globo - Segundo Caderno - 29/09/05
Cora R�nai � jornalista.
"Jornalismo � uma carreira esquisit�ssima. Tem poucas
vagas, o sal�rio geralmente � ruim, as horas de trabalho s�o
intermin�veis, os plant�es acontecem nos piores momentos... mas quem
nasce para isso acha tudo �timo. Hoje, depois de mais de 30 anos de
profiss�o (fico at� sem gra�a de dizer isso, � muito tempo!) tenho certas
regalias: n�o dou plant�o, posso fazer meu pr�prio hor�rio, escrevo
apenas sobre o que eu quero, at� publico fotos da Fam�lia Gato no jornal.
Mas o meu trabalho � t�o misturado com a minha vida que honestamente n�o
sei dizer quando estou trabalhando e quando n�o estou. Muitas coisas que
fa�o aqui no blog, para relaxar, acabam no jornal; a minha brincadeira
com os gadgets, que toma um tempo enorme, �, no fundo, uma atribui��o
profissional; e por a� vai.
S� passei a ganhar direito depois que fui pro Globo, h� 14 anos, ou seja,
com mais de 15 anos de profiss�o. E nem tudo s�o flores. Houve uma �poca
no JB, depois que o Dines saiu, que eu chegava em casa e desatava a
chorar de pura frustra��o, todo santo dia. � que o editor n�o ia com a
minha cara e resolveu me dar como atribui��o pesquisar os pre�os nos
supermercados, ou seja, algo que qualquer cretino com QI de ameba seria
capaz de fazer. Tudo o que fazia no trabalho era isso, ir de supermercado
em supermercado e conferir os pre�os de molho de tomate, arroz, a��car...
eu me sentia muito humilhada.
O Mill�r ficava indignado: "Larga esta porcaria, voc� n�o precisa desse
dinheiro!" mas era uma quest�o de orgulho, eu n�o ia fazer o que a chefia
tanto queria que eu fizesse, que era pedir demiss�o. At� que me
demitiram, pagaram o fundo de garantia (naquela �poca o JB ainda fazia
isso) e eu fui trabalhar em teatro, onde fiz amigos maravilhosos, ganhei
um dinheir�o e fui muito feliz. Mais tarde o tal chefe foi demitido e eu
voltei para o jornal."
Cora R�nai - 27 set 2005 (extra�do do seu
blog).
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