A lei e a ordem no Primeiro Mundo

Cora R�nai

Voltando um pouco no tempo e no espa�o, um pequeno Ford Fiesta, dirigido por duas intr�pidas brasileiras, chegou, tarde da noite, � min�scula localidade de Rajka, na fronteira da Hungria com a Eslov�quia. O guarda louro, alto, de olhos azuis e impecavelmente trajado -- a pr�pria imagem da autoridade -- pegou os passaportes e conferiu as fotos. Depois apontou para o carro:

-- Trstzvstz sticker?

-- I beg your pardon? -- disse a senhora ao volante.
 

-- Sticker strvzstjic.

-- Hein?

-- No sticker.

Aparentemente, faltava um sticker, ou seja, um adesivo, em bom eslovaco. Mas que raios de sticker? E para qu�? O guarda fez sinal para que estacion�ssemos na �rea apropriada e o acompanh�ssemos � salinha da alf�ndega. As duas brasileiras, nem preciso dizer, �ramos a Bia e eu, j� no caminho de volta. Est�vamos no meio do nada, numa escurid�o de breu, quebrada apenas pelas luzes do posto da alf�ndega. Na salinha acanhada, o guarda entregou nossos passaportes a um colega igualmente imponente, que se dirigiu a n�s com grande cortesia e clareza:

-- Trstwzstri strwzjv�i sticker. Trsjvzci?

-- Sorry, we don't understand. Do you speak English?

-- Ne.

-- Italiano?

-- Ne.

-- Fran�ais?

-- Ne.

O guarda conferiu os passaportes sem pressa, olhando os carimbos. Tudo o que consegu�ramos entender � que, ao que tudo indicava, est�vamos numa fria por causa de um sticker. Depois de um di�logo de surdos travado em gestos e consoantes, apareceu um terceiro guarda, que produziu um papelucho xexelento e meio rasgado, onde se lia, em v�rias l�nguas identific�veis, que, para circular pelas estradas locais, era necess�rio um certo sticker colado no parabrisa. Este terceiro guarda era um poliglota.

-- You no sticker. Sticker good one year. No sticker ten sticker fine.

Ah: o sticker valia por um ano. Sem sticker, multa equivalente a dez stickers. Segundo a autoridade, o sticker custava uma quantia de coroas que, convertida, correspondia a quase 29 euros. O guarda desenhou um quadradinho num papel ainda mais seboso do que o outro e apontou com o l�pis:

-- Sticker! Trsjvzci?

Sim, sim, isso hav�amos entendido. Ele riscou o quadradinho.

-- No sticker. Trsjvzci? 286 euro.

-- O QU�???????????????????????!!!!!!!!!!!!!

-- No sticker, 286 euro.

-- I don't have money, no tiengo plata, pas d?argent, trsjvzci?

-- Ne sticker, 286 euro.

-- Do you accept credit cards? Visa, Mastercard, Diners?

-- No. Euro.

Nesse instante, a Bia, que vinha acompanhando o di�logo com o respeito devido �s autoridades de um pa�s s�rio, chegou � correta decis�o de que aquele n�o era assunto para amadores.

-- M�e! Voc� est� doida?! Eu cuido disso.

Ato cont�nuo, fez cara de quem ia desatar em prantos e assumiu a lideran�a das negocia��es.

-- We Brazil. No money.

Tomou o l�pis do guarda e o papel seboso, escreveu NO MONEY e desenhou uma carinha triste. Em seguida tirou um real horr�vel, todo amassado, de dentro da bolsa.

-- See? Brazilian money. No euro.

Os guardas se entreolharam, riscaram os 289 euros que tinham escrito no papel e escreveram 120.

-- 120 euro. We like Brazil good!

-- Brazil good sim, -- disse a Bia -- mas money que � bom n�s num have. Ronaldinho!

Os guardas riram. Isso eles trsjvzci.

-- Pel�!

-- Pel�! -- exclamou a Bia, como se tivesse ouvido o Terceiro Segredo de F�tima. Um dos guardas riscou os 120 euros e escreveu 80. A Bia riscou, escreveu 40 e fez um gesto tipo ?fechamos em quarentinha e n�o se fala mais nisso?.

-- Roberto Carlos!

Eu n�o duvidava mais de nada, mas mesmo assim n�o me contive:

-- Bia, esses caras nunca ouviram o Rei!

-- � outro Roberto Carlos, m�e...

Isso com uma l�grima cinicamente escorrendo pelo rosto, junto com um sorriso c�ndido e ing�nuo para os guardas. Que, imaginem s�, toparam a parada. A Bia entregou uma das notas de 50 euros que tinha na bolsa.

-- Thank you -- disse o guarda.

-- Thank you nada, man�, falta o troco. Ten euro!

-- Trstzcvjic prstzcjv sprztjc euro -- disse um dos guardas para o outro, que tirou a carteira do bolso e, conforme o combinado, deu o troco. Nossos passaportes nos foram devolvidos, junto com a nota de um real.

-- No, no, you keep this! -- disse a Bia, devolvendo o real. -- Brazilian money. My gift. For luck. Ronaldinho Ga�cho, Kak�, Robinho!

-- Pel�! Roberto Carlos!

Os guardas nos levaram at� o carro, a cordialidade em pessoa. O poliglota nos recomendou vivamente que compr�ssemos o sticker tcheco, porque os tchecos, explicou, s�o conhecidos ladr�es, e sem o sticker ter�amos um big problem pela frente, trsjvzci?

-- Trsjvzci! -- exclamou a Bia, dando adeusinho. Tenho at� medo de perguntar qual foi a praga que ela rogou naquela nota de real que deixou com os guardas; e nem ouso imaginar o que nos teria acontecido se eles soubessem que eu estava sem a carteira de motorista.

(O Globo, Segundo Caderno, 22.09.2005)