O QUE � ISSO, COMPANHEIRO?

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Abordando o que vou abordar, corro o risco de desinteressar os leitores. Culpa minha, claro, pois estarei tocando num assunto velho. J� � comum escreverem-se ensaios polissil�bicos sobre como a massa de informa��o que nos bombardeia sobrecarrega a mente e nem temos tempo de pensar direito. E a tecnologia, cada vez mais c�lere, torna tudo obsoleto de um dia para o outro. Consumimos novidades, n�o queremos sen�o novidades, tudo envelhece em poucos dias, �s vezes horas. O massacre de ontem hoje n�o mais interessa e a corrup��o denunciada hoje cansa, se repisada amanh�. Tudo, at� a not�cia, virou uma esp�cie de mercadoria e o consumidor quer o �ltimo lan�amento.

Acrescente-se a isso a revela��o vertiginosa de falcatruas e crimes. � um caleidosc�pio enlouquecido, um carrossel desgovernado, uma lanterna m�gica de trambiques, mentiras e arma��es s�rdidas, apresentada em compasso t�o desenfreado que n�o se pode acompanh�-lo. Puxa-se um fio e a meada, em lugar de diminuir, aumenta e leva a outra e esta ainda a outra, numa rede diab�lica de manobras delinq�entes, trazendo a sensa��o de que o pa�s � conduzido por gangues ou fam�lias mafiosas. O esp�rito do homem de bem acaba por chegar a seus limites, o que se expressa em dezenas de formas, at� mesmo evitando esses assuntos, por uma quest�o de sobreviv�ncia psicol�gica e emocional, pois, afinal, para muitos, j� so�obraram os valores, as cren�as e os padr�es incorporados � sua forma��o, o que pode tornar a vida insuport�vel.

Tenho ci�ncia desse problema, mas n�o vou deixar de fazer meu registro de algo que n�o gosto de dizer, mas que algu�m tem que dizer, porque estou seguro de muita gente pensa da mesma maneira. N�o gosto de dizer o que vou dizer porque queria acreditar no contr�rio, achar fatos ou ind�cios que me desmentissem convic��es que a cada dia mais se solidificam na minha cabe�a e na de in�meros concidad�os. Mas n�o encontro fato ou ind�cio algum e, assim, entendo que cabe afirmar que o presidente Luiz In�cio Lula da Silva desrespeita e subestima os governados, despreza-lhes a intelig�ncia, julga-os cegos diante dos acontecimentos e surdos-mudos depois deles.

Infenso ao contato com a imprensa, a n�o ser para monologar, escolheu um m�todo singular para dirigir-se ao pa�s, em sua visita � Fran�a. Com ar despreocupado, at� fagueiro, que, em lugar da imagem de tranq�ilidade que talvez quisesse projetar, dava a impress�o de deboche quanto aos que v�em gravidade em nossa situa��o pol�tica, disse, com um cinismo que me assustou, pois era a �ltima cara em que esperava v�-lo estampado, que era aquilo mesmo, que o PT tinha feito apenas o que � feito �sistematicamente�, no Brasil. Portanto, conclui-se, n�o h� raz�o para espanto ou desilus�o.

Mas h� raz�o para espanto e desilus�o. Ficam agora dizendo por a� que n�o se suporta mais um presidente oper�rio e se quer depor um presidente oper�rio. Em primeiro lugar, n�o estou apoiando e muit�ssimo menos propondo, sua deposi��o, at� mesmo por vias legais. Em segundo lugar, votei no presidente oper�rio, votou a esmagadora maioria do povo brasileiro e o que eu queria era ter orgulho de dizer isso, era encher o peito como cheguei a encher nos primeiros tempos. N�o fizemos uma revolu��o, optamos pela mudan�a por vias democr�ticas, levamos ao poder um oper�rio, um her�i de origem humilde, um lutador, um desbravador, um que se proclamou ser aquele que mudar�.

E de fato mudou. Quer dizer, mudou ele. Hoje temos a nos presidir um assassino de sonhos e esperan�as, um que diz, com o semblante jovial, que o partido que vinha para mudar j� come�ou por n�o mudar coisa nenhuma, ou melhor, ao que tudo indica, aperfei�oou os mecanismos do embuste e da ladroagem, a partir da pr�pria campanha. � isso mesmo, que quer�amos, que o PT efetivamente representasse mudan�a, que ingenuidade � essa, que ot�rios somos? Portanto, o presidente devia saber do que se passava, certamente n�o em detalhes, mas em linhas gerais. � assim que se faz, quem n�o sabe disso?

Numa entrevista que dei, referi-me a ele como ignorante. Confirmo. Mas a entrevista, por quest�o de espa�o, precisou ser editada e, no muito que se teve de excluir, deixei claro que, quando disse �ignorante�, o fiz apenas para ilustrar uma afirmativa e utilizo a palavra no sentido de formalmente inculto. Pois ignorante, infinitamente ignorante em rela��o a ele, sou eu, naquilo que ele � que, al�m de tudo, � muito inteligente, apesar da pregui�a intelectual ou geral � domina magistralmente, o tornou art�fice principal de uma obra pol�tica sem precedentes e o conduziu � posi��o em que est� e que agora o revela como na inquietantemente prof�tica frase do Bar�o de Itarar�: �Queres conhecer o In�cio, coloca-o num pal�cio�.

O candidato da mudan�a, do partido diferente dos demais, � o presidente de um pa�s onde seu partido n�o muda nada, antes conserva com afinco e esmero. O companheiro, afinal, n�o passa de mais uma Vossa Excel�ncia, das quais, ali�s, j� vimos melhores. N�o tenho provas e por isto mesmo n�o acuso. Apenas digo que, na minha opini�o, que s� retiro se um juiz ordenar, Vossa Excel�ncia sabia da bandidagem de seus auxiliares e, vai ver, tacitamente a aceitava, ou seja, calava e, pois, consentia. E digo, interprete Vossa Excel�ncia como lhe for servido, que corrupto n�o � s� quem frauda diretamente ou p�e dinheiro no bolso: � tamb�m quem v� e ou finge que n�o v�, ou n�o liga e n�o faz nada, sabendo que � seu dever fazer algo. Sobretudo em casos assim, a coniv�ncia ou neglig�ncia faz alarmante fronteira com a cumplicidade. Se o racioc�nio � correto, Vossa Excel�ncia est� pr�ximo da suspeita de corrup��o. Por favor desculpe a franqueza, mas acredito, embora n�o tenha certeza, que Vossa Excel�ncia ainda prefere a sinceridade � bajula��o e � hipocrisia.

Cr�nica publicada no GLOBO, em 24 de julho de 2005.