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Pelo menos no dia e na hora em que escrevo, faz um lindo dia outonal, como
espero que tamb�m neste domingo. Os ares parecem puros, o c�u est� azul e
l�mpido e a orla da Ba�a de Guanabara, que fica aqui t�o pertinho de onde eu
moro, l� permanece em sua formosura esplendorosa e irrespond�vel. Devemos,
portanto, estar felizes. Claro, a bela leitora (n�o � machismo ou discrimina��o,
s�o h�bitos de antanho, pois diz a lei que sou do tempo dos afonsinhos) e o
inteligente leitor (idem) podem ser agn�sticos ou ateus, mas tamb�m podem fingir
por um momento que n�o s�o e pensar como de fato o Senhor Bom Deus caprichou ao
nos dadivar a nossa terra � e n�o somente o Rio, � claro, mas t�o grande parte
de toda ela.
E nos deu tantas coisas mais que at� piadas criamos sobre
isso. Todo mundo conhece esta, mas eu a repito, estou amparado pelo Estatuto do
Idoso. Durante a Cria��o, estava Deus dando tanto ao Brasil, que um anjo
certamente argentino (desculpem, n�o estou encampando a nova babaquice
binacional, que � ficarmos brigando, argentinos e brasileiros, ambos no caso
est�pidos, preconceituosos e atrasados � estou somente querendo fazer uma
gracinha da moda mesmo) reclamou da injusti�a para com os demais pa�ses. No que
Deus teria replicado que esperassem o povinho ordin�rio que Ele ia botar naquela
terra magn�fica.
N�s somos esse povinho. De modo geral, devemos
reconhecer que a piada tem l� seu fundamento. Meu papagaio de Itaparica (vivia
solto, eu n�o prendia nada, ele apenas morava l� em casa; n�o quero incorrer em
crime inafian��vel e passar cinco anos na cadeia, pois aqui no Brasil somos
muito rigorosos, vejam s� como todos os ladr�es e falcatrueiros importantes
est�o por tr�s das grades e n�o mandando na gente) uma vez fez coc� de uma
semente de mam�o numa fresta do cimento do p�tio e, no meio dessa frestinha,
brotou um mamoeir�o t�o feraz que eu tinha trabalho para distribuir mam�es entre
os amigos, ningu�m ag�entava mais. Aqui h� plantas que d�o duas, tr�s safras por
ano. Na Europa, � dureza. Nascer, nascem, mas o sujeito praticamente tem de
dormir com as plantas, para que elas n�o definhem por falta de algum dos
in�meros cuidados de que necessitam. E duas safras eles pensam que � mentira,
quando a gente conta. Mas, mesmo assim, a pobreza aqui � grande, a mis�ria
aumenta, o medo cresce.
A culpa, naturalmente, n�o � nossa. � da
coloniza��o portuguesa, essa desgra�a que nos caiu sobre as cabe�as, quando
pod�amos estar t�o bem quanto o Suriname, colonizado pelos holandeses,
Bangladesh, colonizada pelos ingleses, o Senegal, colonizado pelos franceses ou
a Eti�pia, colonizada pelos italianos. Ou poder�amos n�o ter sido descobertos
pelos europeus e continuarmos com a nossa verdadeira identidade brutalmente
invadida, que � a de �ndios, como constata quem quer que olhe para qualquer um
de n�s, pois brasileiro � tudo igual um ao outro, impressionante. E tamb�m �
culpa dos americanos que, bem verdade, j� foram uma na��o menor, mais pobre e
mais atrasada que a nossa, mas tiveram a sorte de contar com Errol Flynn, John
Wayne, Gary Cooper e tantos e tantos outros, enquanto n�s mal podemos ostentar
um Lampi�o muito do fuleiro. E n�o esque�amos tampouco os comunistas, que nunca
exerceram poder pol�tico ou econ�mico por aqui, mas estragaram, com sua
ideologia ex�tica, a flor dos c�rebros de pelo menos umas tr�s gera��es.
Azar, azar, azar. Povo t�o bom que n�s somos, fomos arranjar, por
exemplo, pol�ticos abomin�veis, como �s vezes nos parecem ser quase todos eles.
Claro, � porque n�o s�o brasileiros, est�o aqui para roubar a gente e ver a
gente se lascar mesmo. De onde ser� que ter�o sa�do esses desgra�ados? � um
mist�rio profundo que, se resolvermos, extirparemos de vez nossos problemas. �
s� trocar esses pol�ticos sa�dos n�o se sabe de onde por brasileiros iguais a
n�s, leg�timos, honestos, trabalhadores, aplicados, s�rios e, al�m disso, de
grande cordialidade e extraordin�ria musicalidade. Desmascaremos e deportemos
esses ETs, juntamente com funcion�rios (perd�o, servidores) lar�pios, in�teis ou
incompetentes, que tampouco s�o brasileiros, maus policiais, prefeitos
corruptos, assaltantes, traficantes e assim por diante. O Brasil � nosso, vamos
tir�-lo das m�os desse pessoal que n�o tem nada a ver conosco, nem foi criado
como n�s, nas mesmas cidades, comendo a mesma comida, falando a mesma l�ngua e
partilhando a mesma Hist�ria.
O brasileiro � como eu ou voc�. J� n�o
digo como o presidente, pois este nem pecado tem, mas como eu, voc� ou o
vizinho. O povo � bom e honesto. Como demonstrou um programa para auxiliar
fam�lias pobres do interior. Os pobres n�o receberam a ajuda, que ficou com as
fam�lias remediadas ou ricas mesmo. E, quando algu�m que n�o precisa recusa essa
ajuda, a gente d� uma festa e bota no jornal, apesar de ser acontecimento t�o
trivial. N�o somos n�s que fazemos gatos para furtar energia el�trica ou �gua,
ricos ou pobres. N�o mentimos nem mesmo quando respondemos �quelas enquetes �que
voc� est� lendo?�, onde se nota que entre n�s pouca gente l�, todo mundo rel�:
�Estou relendo Proust.� �Estou relendo Dante.� Assim como nenhum de n�s jamais
deu a cervejinha do guarda, nem o guarda jamais achacou ningu�m. Aqui n�o existe
o PF, o famoso �por fora�, para ajudar uma tramita��o. Nunca furamos fila ou
adotamos o pistol�o, Deus nos guarde e, quando eu era examinador nos
vestibulares antigos, havia diversos candidatos que n�o traziam um cart�o de
recomenda��o. At� hoje, quando tomo parte no j�ri de um concurso, s� recebo
pedidos de favorecimento em menos de 90 por cento dos casos, percentual
rid�culo. Que dia lindo, n�o? M� num p� tropi, aben�o� por D�.
Cr�nica publicada no GLOBO, em 22 de maio de 2005.
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