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Todo mundo, pelo menos todo mundo com quem converso, sabe que tive problemas com
�lcool e, de certa forma, sempre terei, porque ele � meu inimigo permanente.
Saiu at� minha cara toda inchada na capa de uma revista, apareci igualmente
inchado e meio b�bedo num programa de tev� em que eu era o assunto e, quando ia
falar no sofrimento que estava enfrentando, as luzes se apagaram. Todo mundo, do
Bial, que me entrevistava, ao pessoal da equipe, ficou impressionado, h� quem
at� hoje ache que foi intencional. E as pessoas n�o se esquecem do passado, mas
s�o gentis, ao se referirem ao assunto.
� E a sa�de, como vai? � indagam
sempre, me dando um olhar de avalia��o.
A pergunta � a forma codificada
de saber se eu continuo um pau-d��gua e � num clima de al�vio e satisfa��o
(desgosto somente nuns poucos) que ressoa minha resposta de que a sa�de vai bem.
Belas not�cias e, ali�s, minha apar�ncia est� muito boa, estou uns dez anos
remo�ado. Alguns, talvez em maior n�mero do que eu penso, n�o acreditam, mesmo
porque compare�o ao boteco com regularidade todos os s�bados e domingos. Fa�o
parte de uma roda de chopistas de responsa, alguns raros uisquistas leves e um
solit�rio cachacista, sofisticado e morigerad�ssimo, que bebe um copinho somente
e nem todo fim de semana. O pessoal manda ver e eu tamb�m, s� que guaran� diet.
No meu copo parece que tem u�sque, porque o guaran� � com gelo e sem aquela
abomin�vel rodela de laranja que aqui no Rio resolveram que acompanha
obrigatoriamente guaran�.
Poderia dizer, para valorizar meu
comportamento, que fa�o um esfor�o de vontade para resistir ao �lcool, mas n�o
fa�o. Creio que sei o que houve comigo, mas tenho certeza de que n�o estou sendo
ego�sta, ainda mais em assunto t�o s�rio quanto este, quando digo que foi por
uma via muito pessoal, que na verdade n�o posso dividir com ningu�m, ou quase
ningu�m. O fato � que, tendo passado quase toda a vida adulta centrado de alguma
forma no �lcool, com tudo de prazeroso de uma forma ou de outra ligado � bebida,
embora negasse minha condi��o de alco�latra at� que fui for�ado a reconhec�-la,
n�o sinto falta dele. N�o fa�o, honestamente, for�a para n�o consumi-lo.
Simplesmente n�o quero mais, � como se meu corpo e meu esp�rito o rejeitassem �
quem quiser que explique como quiser.
Sempre procurei evitar hipocrisia
e recusei-me a agir hipocritamente em rela��o ao problema. Falei nele
abertamente, dividi minha experi�ncia com outros doentes e suas fam�lias, que
tamb�m costumam passar o diabo por causa deles. Internei-me para tratar-me em
regime, digamos, carcer�rio, freq�entei os Alco�licos An�nimos, fui a uma
cl�nica no interior de S�o Paulo, submeti-me a tratamento psiqui�trico, vivi um
pesadelo horrendo. Mais ou menos oito anos, com um de abstin�ncia intercalado,
ap�s o qual pensei, burramente, tornar-me um �bebedor social�, resolu��o que s�
subsistiu por algumas semanas. Cheguei a ter pancreatite e quase morrer � quinze
dias numa unidade de tratamento semi-intensivo e mais cinco de hospital comum.
Depois disso tudo, ainda continuei a enfiar o p� na jaca, at� que, um belo dia,
me veio a gra�a � s� posso usar esta palavra � e, ao amanhecer, pensei que ia
tomar a talagada habitual j� �s seis horas da manh� e n�o tomei, perdi de vez a
vontade. Ou, pelo menos, perdi at� hoje e n�o penso em voltar a beber nada, me
d� at� uma certa repulsa. Isto, � claro, n�o se estende � bebida dos outros, nem
mesmo � dos bebedores extremados, contanto que n�o fiquem chatos ou agressivos.
S� deixei de dar entrevistas sobre o assunto quando me transformaram numa
esp�cie de alco�latra-padr�o e bastava algu�m embriagado envolver-se numa
encrenca para um rep�rter querer me entrevistar. Tive que passar a responder que
n�o era o Pingu��logo Geral da Rep�blica e fossem procurar outros.
Para
mim, a vida ficou extraordinariamente melhor. Quem pode beber, sabendo desfrutar
do que a bebida tem de bom e sem permitir que ela lhe seja ruinosa, que beba. Eu
n�o posso e tenho a felicidade de n�o me ressentir disso. Mas a fama criada �
dif�cil de erradicar e, como eu disse, tem muita gente que n�o acredita. �s
vezes � meio chato. No boteco mesmo, um cavalheiro desconhecido passou certa
feita por minha mesa, me viu tomando meu guaran� e declarou que me admirava
porque, diab�tico como eu (n�o sou diab�tico, nem pare�o ter tend�ncia), ele
tamb�m bebia o u�sque dele � vontade. Respondi que era guaran� e ele, para
provar que eu sou um farsante, enfiou o nariz no meu copo, fazendo uma
caprichada lavagem nasal, que me obrigou a pedir outro, porque tenho obje��es a
ingerir lavagem nasal.
Em outros ambientes � freq�ente que aconte�am
coisas parecidas e, faz poucos dias, numa festa, quase tenho de brigar porque um
convidado n�o se conformava que eu estivesse bebendo guaran� e outro insistiu
que eu tomasse pelo menos um vinhozinho, quando eu recuso at� bombom recheado de
licor ou sorvete de passas ao rum. E sofro um pouco com outras coisas, porque,
nas raras festas a que compare�o, n�o s� os gar�ons costumam estranhar que eu
pe�a guaran�, como o servem na mesma bandeja mete�rica em que trazem o u�sque
dos companheiros. O resultado � que os outros passam um temp�o bebericando e eu
consumo minha dose homeop�tica de guaran� em no m�ximo cinco minutos, tendo que
realizar verdadeiras expedi��es para conseguir outra. Agora tomei uma
provid�ncia. Vou a festinhas levando um pacote de latas de guaran�, que conservo
a meu lado e consigo acompanhar as liba��es alheias de forma abst�mia e farta.
N�o � f�cil fugir da norma, mas a gente, com inventividade e persist�ncia,
consegue. Brindemos.
Cr�nica publicada no GLOBO, em 03 de abril de 2005.
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