A DURA VIDA DE QUEM BEBE GUARAN�

Cena do filme "L�ngua - Vidas em portugu�s", de Victor Lopes

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Todo mundo, pelo menos todo mundo com quem converso, sabe que tive problemas com �lcool e, de certa forma, sempre terei, porque ele � meu inimigo permanente. Saiu at� minha cara toda inchada na capa de uma revista, apareci igualmente inchado e meio b�bedo num programa de tev� em que eu era o assunto e, quando ia falar no sofrimento que estava enfrentando, as luzes se apagaram. Todo mundo, do Bial, que me entrevistava, ao pessoal da equipe, ficou impressionado, h� quem at� hoje ache que foi intencional. E as pessoas n�o se esquecem do passado, mas s�o gentis, ao se referirem ao assunto.

� E a sa�de, como vai? � indagam sempre, me dando um olhar de avalia��o.

A pergunta � a forma codificada de saber se eu continuo um pau-d��gua e � num clima de al�vio e satisfa��o (desgosto somente nuns poucos) que ressoa minha resposta de que a sa�de vai bem. Belas not�cias e, ali�s, minha apar�ncia est� muito boa, estou uns dez anos remo�ado. Alguns, talvez em maior n�mero do que eu penso, n�o acreditam, mesmo porque compare�o ao boteco com regularidade todos os s�bados e domingos. Fa�o parte de uma roda de chopistas de responsa, alguns raros uisquistas leves e um solit�rio cachacista, sofisticado e morigerad�ssimo, que bebe um copinho somente e nem todo fim de semana. O pessoal manda ver e eu tamb�m, s� que guaran� diet. No meu copo parece que tem u�sque, porque o guaran� � com gelo e sem aquela abomin�vel rodela de laranja que aqui no Rio resolveram que acompanha obrigatoriamente guaran�.

Poderia dizer, para valorizar meu comportamento, que fa�o um esfor�o de vontade para resistir ao �lcool, mas n�o fa�o. Creio que sei o que houve comigo, mas tenho certeza de que n�o estou sendo ego�sta, ainda mais em assunto t�o s�rio quanto este, quando digo que foi por uma via muito pessoal, que na verdade n�o posso dividir com ningu�m, ou quase ningu�m. O fato � que, tendo passado quase toda a vida adulta centrado de alguma forma no �lcool, com tudo de prazeroso de uma forma ou de outra ligado � bebida, embora negasse minha condi��o de alco�latra at� que fui for�ado a reconhec�-la, n�o sinto falta dele. N�o fa�o, honestamente, for�a para n�o consumi-lo. Simplesmente n�o quero mais, � como se meu corpo e meu esp�rito o rejeitassem � quem quiser que explique como quiser.

Sempre procurei evitar hipocrisia e recusei-me a agir hipocritamente em rela��o ao problema. Falei nele abertamente, dividi minha experi�ncia com outros doentes e suas fam�lias, que tamb�m costumam passar o diabo por causa deles. Internei-me para tratar-me em regime, digamos, carcer�rio, freq�entei os Alco�licos An�nimos, fui a uma cl�nica no interior de S�o Paulo, submeti-me a tratamento psiqui�trico, vivi um pesadelo horrendo. Mais ou menos oito anos, com um de abstin�ncia intercalado, ap�s o qual pensei, burramente, tornar-me um �bebedor social�, resolu��o que s� subsistiu por algumas semanas. Cheguei a ter pancreatite e quase morrer � quinze dias numa unidade de tratamento semi-intensivo e mais cinco de hospital comum. Depois disso tudo, ainda continuei a enfiar o p� na jaca, at� que, um belo dia, me veio a gra�a � s� posso usar esta palavra � e, ao amanhecer, pensei que ia tomar a talagada habitual j� �s seis horas da manh� e n�o tomei, perdi de vez a vontade. Ou, pelo menos, perdi at� hoje e n�o penso em voltar a beber nada, me d� at� uma certa repulsa. Isto, � claro, n�o se estende � bebida dos outros, nem mesmo � dos bebedores extremados, contanto que n�o fiquem chatos ou agressivos. S� deixei de dar entrevistas sobre o assunto quando me transformaram numa esp�cie de alco�latra-padr�o e bastava algu�m embriagado envolver-se numa encrenca para um rep�rter querer me entrevistar. Tive que passar a responder que n�o era o Pingu��logo Geral da Rep�blica e fossem procurar outros.

Para mim, a vida ficou extraordinariamente melhor. Quem pode beber, sabendo desfrutar do que a bebida tem de bom e sem permitir que ela lhe seja ruinosa, que beba. Eu n�o posso e tenho a felicidade de n�o me ressentir disso. Mas a fama criada � dif�cil de erradicar e, como eu disse, tem muita gente que n�o acredita. �s vezes � meio chato. No boteco mesmo, um cavalheiro desconhecido passou certa feita por minha mesa, me viu tomando meu guaran� e declarou que me admirava porque, diab�tico como eu (n�o sou diab�tico, nem pare�o ter tend�ncia), ele tamb�m bebia o u�sque dele � vontade. Respondi que era guaran� e ele, para provar que eu sou um farsante, enfiou o nariz no meu copo, fazendo uma caprichada lavagem nasal, que me obrigou a pedir outro, porque tenho obje��es a ingerir lavagem nasal.

Em outros ambientes � freq�ente que aconte�am coisas parecidas e, faz poucos dias, numa festa, quase tenho de brigar porque um convidado n�o se conformava que eu estivesse bebendo guaran� e outro insistiu que eu tomasse pelo menos um vinhozinho, quando eu recuso at� bombom recheado de licor ou sorvete de passas ao rum. E sofro um pouco com outras coisas, porque, nas raras festas a que compare�o, n�o s� os gar�ons costumam estranhar que eu pe�a guaran�, como o servem na mesma bandeja mete�rica em que trazem o u�sque dos companheiros. O resultado � que os outros passam um temp�o bebericando e eu consumo minha dose homeop�tica de guaran� em no m�ximo cinco minutos, tendo que realizar verdadeiras expedi��es para conseguir outra. Agora tomei uma provid�ncia. Vou a festinhas levando um pacote de latas de guaran�, que conservo a meu lado e consigo acompanhar as liba��es alheias de forma abst�mia e farta. N�o � f�cil fugir da norma, mas a gente, com inventividade e persist�ncia, consegue. Brindemos.

Cr�nica publicada no GLOBO, em 03 de abril de 2005.