Informa��o: caminho certo para a depress�o

Est� muito dif�cil acompanhar o notici�rio e ser feliz

Cora R�nai

Responda r�pido: o que � mais deprimente, a reportagem do "Fant�stico" sobre o Bolsa Fam�lia ou o evidente despreparo do ministro Patrus Ananias? A cidade da coca�na e da carnificina ou o estado da pouca vergonha a R$ 1? O PT querer pegar carona no desempenho da sua campe� enjeitada Luizianne ou achar perfeitamente normal aliar-se aos malufistas? A possibilidade de Bush afinal se eleger presidente ou o fato de que esta possibilidade existe?

J� pensei muito sobre tudo isso e, sinceramente, n�o consegui chegar a nenhuma conclus�o. Tudo me parece igualmente imoral e mals�o, tudo me � igualmente nojento. Ver aquelas pobres crian�as miser�veis no interior do pa�s foi de cortar o cora��o; ver aquele ministro pat�tico tentando defender o indefens�vel foi de ferver o sangue.

A reportagem do "Independent" carregou nas tintas, mas n�o disse nada de novo; muito mais prejudicial � nossa imagem (e ao nosso amor-pr�prio) �, a meu ver, a eterna mania das autoridades "ofendidas" de enviarem cartas de protesto a governantes, produtores de desenhos animados e jornais estrangeiros. Este provincianismo cr�nico me d� vontade de ler o jornal escondida debaixo do sof�, de pura vergonha.


No caso do PT, o problema �, essencialmente, filos�fico. N�o sou petista, nunca tive qualquer simpatia pelo PT, mas, at� outro dia, era obrigada a concordar quando se dizia que ele era um partido diferente dos demais. Afinal, seguia uma linha ideol�gica bem definida e parecia avesso a fisiologismos. A sua atual desconstru��o como conjunto de pessoas unidas por um ideal (e n�o pela sede mesquinha de poder que se constatou por todo o pa�s) � t�o humilhante para petistas quanto para n�o-petistas. Em �ltima inst�ncia, ela prova aquilo que todos est�vamos cansados de saber, mas t�nhamos medo de confirmar: no Brasil n�o existe pol�tica, s� politicagem.

Para algu�m da minha gera��o, que levou a luta social a s�rio e que acreditava que a raiz de todos os males era a ditadura, � triste demais ver a que ponto chegamos. Alegremente irmanado a ACM, Sarney, Newton Cardoso, Roberto Jefferson e outros exemplares do pior entulho autorit�rio, o PT nos d� uma li��o muito objetiva: tanto faz o car�ter das pessoas, tanto faz o car�ter dos partidos. Pelo poder vale tudo, pelos fins justificam-se os meios, quaisquer que sejam.

Mas ent�o, para que partidos? Para que manter essa farsa hip�crita, essa encena��o a bom mercado? Para que -- e com que moral -- continuar a falar em "esquerda" e em direita""?

Ali�s: existe conceito mais antigo? Ser� que ainda d� para se definir o mundo em termos t�o simplistas? O camarada Putin, por exemplo, � de esquerda ou de direita? E o pragm�tico (sem perder a dureza jamais) Hu Jintao? E o companheiro Fidel? E os antigos companheiros do companheiro, que mofam na cadeia por crimes de opini�o, convenientemente esquecidos pelo mundo?

Na verdade, acho que "esquerda" e "direita" transformaram-se em termos puramente afetivos, sem qualquer rela��o com propostas ideol�gicas -- exatamente como os nossos "partidos" pol�ticos. "Esquerda", em tese, � quem est� com a gente e a gente acha bacana; "direita" s�o os outros. Tanto faz quem a gente seja, ou quem sejam os outros: a pol�tica brasileira inventou os pontos cardeais complacentes.


De todas as raz�es perfeitamente v�lidas para depress�o apresentadas pelo notici�rio, a mais sinistra e perigosa �, claro, a possibilidade da elei��o de Bush. Kerry est� longe de ser uma figura simp�tica ou carism�tica; ele � apenas um pouco mais toler�vel do que Bush e um pouco mais civilizado. � poss�vel ouvir sua voz sem sentir �nsias de v�mito, o que -- pelo menos do meu ponto de audi��o -- vai melhorar consideravelmente a qualidade dos notici�rios da CNN e da BBC.

Tenho pesadelos quando penso num Bush legalmente eleito, livre para dar r�deas � paran�ia do seu fundamentalismo crist�o, solto para correr atr�s do Ir� ou de quem Dick Cheney considere interessante para os neg�cios. Mas tenho mais pesadelos ainda quando penso que, ven�a quem vencer, metade dos americanos est� de acordo com a forma como o pa�s vem sendo conduzido, e vai continuar se lixando para o resto do mundo.


Para n�o dizer que n�o falei de flores, termino com um ponto de luz: ou�am 'Can��o transparente', o maravilhoso CD da Ol�via Hime, lan�ado pela Biscoito Fino! Gostoso, inteligente, bonito de doer -- um b�lsamo contra a baixaria do cotidiano, ant�doto certo para a falta de delicadeza que nos cerca.

(O Globo, Segundo Caderno, 21.10.2004)

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