RENDI��O DE UM DESLEAL COVARDE

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Minha primeira profiss�o, iniciada aos 17 anos, foi o jornalismo, motivo de grande orgulho. No meu tempo, n�o havia escola de comunica��o, a gente se formava no tapa mesmo. N�o sou diplomado, mas tenho a carteira do Minist�rio do Trabalho, velhusca por�m digna, onde meu registro profissional � consignado. E uma das coisas que a gente logo aprende � que a conviv�ncia da imprensa com o poder � problem�tica. O poder, principalmente em pa�ses de tradi��o autorit�ria como o nosso (� isto mesmo o que estou dizendo), � muito melindroso quanto a qualquer cr�tica feita pela imprensa e, por ser ami�de corrupto ou delinq�ente, costuma n�o ter grande apre�o por uma imprensa livre.

O governo atual vem tendo problemas com a imprensa, como se sabe. O ministro Gushiken, pelo menos para alguns, chegou a deixar claro que imprensa boa � imprensa a favor e quem n�o colabora � desleal. Eu, que n�o tenho rabo preso, n�o cultivo apego religioso a pol�tico nenhum e reclamo e critico porque, como milh�es de outros brasileiros, n�o estou satisfeito com o governo que elegemos, sou desses desleais. N�o me sinto desleal a nada, mas � como acho que ele v� meu tipo de jornalista e a� n�o h� o que fazer, pois cada um pensa como quer, direito que insisto em defender, aparentemente ao contr�rio de muita gente no governo.

O presidente da Rep�blica disse em algum lugar (s� tenho certeza de que n�o foi em Bras�lia, porque l� ele nunca est�) que os jornalistas s�o covardes. Como fizeram outros, vou dar uma respostinha. Mas antes tenho de repetir o que muitas pessoas consideram imperativo, sempre que um jornalista toca neste assunto: sim, a imprensa comete erros, tem maus elementos, perpetra abusos e, certamente, conta com uma parcela de covardes mais ou menos equivalente � de outras categorias profissionais etc. etc. Cumprido o ritual e assim, com f� em Deus, evitada a carta de protesto de um leitor ultrajado, digo que n�o entendi direito por que somos covardes, do mesmo jeito que n�o entendi a deslealdade. Todos os dias, jornalistas morrem no exerc�cio da profiss�o, s�o encarcerados, espancados, vilipendiados, patrulhados, caluniados e censurados. Sem a colabora��o desses covardes, mais por ades�o moral a princ�pios do que por outros interesses, o presidente mesmo poderia estar em situa��o bem diferente da de hoje. E os covardes, ao que parece, est�o metendo medo no valente governo, que agora almeja �orientar�, �disciplinar� e �fiscalizar� a imprensa, embora diga que n�o.

Ia escrever com bastante indigna��o, mas a�, como na semana passada, me acalmaram novamente. Eu de fato ando ranzinza demais, onde j� se viu. Ele estava brincando, ele � brincalh�o. Vamos esfriar a cabe�a e p�r as coisas no devido lugar. Era um chiste, um gracejo. Assim como foi um chiste sua observa��o de que tinha ido ao Gab�o para ver como � que um sujeito permanece no poder por 37 anos e ainda vai reeleger-se. Claro que foi brincadeira e devemos at� ser gratos por termos um presidente que, como se dizia no nosso tempo de menino, � um �n�mero�, impag�vel mesmo.

E que � que eu queria, ir novamente contra a realidade brasileira, com minhas besteiras habituais? Pensasse eu no cidad�o comum, da classe m�dia para baixo. Afli��o do aumento do condom�nio � fila no INSS, bala perdida, plano de sa�de, aposentadoria descontada, seq�estro rel�mpago, cheque especial vencido, filas em toda parte, esse ros�rio intermin�vel, enfim. Agora imagine: de repente n�o existe mais nenhum desses problemas, nenhum mesmo, nunca mais vai existir, nada do que possa acontecer vai me prejudicar, a n�o ser uma hecatombe. Minha vida est� arrumada, sob todos os aspectos poss�veis. Trabalho chato, nunca; s� mesmo o que eu gosto de fazer. Tudo do bom e do melhor. E todo mundo em torno concordando, elogiando e aplaudindo. Nunca mais a perspectiva de nada a n�o ser de primeira classe, nenhum, nenhum, mas nenhum mesmo dos problemas do cotidiano de pessoas comuns. Ia ter gente que nem conseguiria se acostumar � id�ia ou � nova vida.

Mas ele se acostumou, e � natural. Que queria eu? � f�cil julgar os outros, mas pusesse-me eu no lugar dele, bem no lugar dele e veja se n�o estaria agindo da mesma forma, ou at� mais entusiasticamente. O camarada nasce muito pobre, n�o estuda, n�o tem perspectivas, mas, atrav�s de enorme talento, vai ver g�nio, vira um l�der de propor��es fenomenais e deu no que deu. Eu vou negar que ele se fez magistralmente, dando uma aula de craque sobre como � que se chega l�? Claro, nem todo mundo vai ser presidente, mas sempre d� para arrumar a vida, a dele j� est� arrumada, o exemplo n�o pode ser mais vis�vel. E sem roubar nada, o que ainda real�a mais a proeza!

Argumentei que isso est� longe de ser suficiente para deix�-lo feliz, pois o pa�s enfrenta problemas grav�ssimos, que com toda a certeza o angustiam. Sim, sem d�vida, mas a ocupa��o ajuda a esquecer os problemas e ele se entret�m em muitos afazeres que lhe tomam o tempo. Para n�o falar que, do ponto de vista dele, nada vai t�o mal, pelo contr�rio. Ou eu achava que o procuravam para criticar ou dar m�s not�cias? Claro que n�o, d�o � a medida provis�ria para assinar, o discurso sobre quest�es com que ele n�o tem familiaridade e a chance para o exerc�cio de sua simpatia em p�blico. Ele j� tem uma pequena aposentadoria isenta de imposto de renda (mas de rico, segundo crit�rios do pr�prio governo), ter� a pens�o de ex-presidente, direito a honor�rios elevados por palestras depois (ou �se�, conforme o resultado da li��o africana) de deixar o poder e muito mais. Agora, se pudesse, respondesse eu � pergunta: quantos neste pa�s podem gabar-se de situa��o parecida? Cada um procura suas melhoras e, se todo mundo, em vez de ficar se queixando, fosse � luta como ele, n�o estar�amos neste atraso.

Publicado no GLOBO em 29 de agosto de 2004