AGORA S� FALTA UM ATO INSTITUCIONAL

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Em epis�dio que n�o sei mais se se estuda na Hist�ria do Brasil, pois nem mesmo sei se ainda se estuda Hist�ria do Brasil, nos contavam, �s vezes com admira��o, que D. Pedro, o da Independ�ncia, irritado com a primeira Assembl�ia Constituinte brasileira, por ele considerada folgada e ousada, encerrou a brincadeira e outorgou a Constitui��o do novo Estado. Decerto a raz�o n�o � esta, � antes um sintoma, mas vejo a� um momento exemplar da tradi��o de encarar o Estado (que, na conversa, chamamos de �governo�) como nosso mestre e os nossos direitos como por ele dadivados. Os governantes n�o s�o mandat�rios ou representantes nossos, mas patr�es ou chefes.

Claro, h� muito o que discutir sobre o conceito de praticamente cada palavra que vou usar � isto sempre, de alguma forma, � poss�vel �, mas vamos fingir que existe consenso sobre elas, n�o h� de fazer muito mal agora. Nunca, de fato, tivemos democracia. E a Rep�blica n�o trouxe nenhuma mudan�a efetivamente b�sica para o povo brasileiro, nenhuma revolu��o ou movimento o fez. Tudo continua como era dantes, s� que os defeitos, digamos, de f�brica, v�o piorando com o tempo e ficam cada vez mais dif�ceis de consertar. Alguns, na minha l�gubre opini�o, jamais ter�o reparo, at� porque a Humanidade, pelo menos como a conhecemos, deve acabar antes.

Os tempos recentes t�m sido um pouco menos ruins, levando-se em conta um bom indicador de democracia, que � a liberdade de informa��o e de express�o, bem como de opini�o e cria��o art�stica. Nisto, vimos sendo felizes, pois de fato, dando-se o abatimento das limita��es que qualquer um poder� arrolar indefinidamente, fala-se o que se quer e se manifesta o que se quer, dentro dos limites da lei. Se isso n�o � conseguido por algu�m ou por grupos e setores, n�o se deve � a��o direta do governo. No que diz respeito a ele, cada pessoa ou grupo pode pensar como quiser e dizer o que quiser. N�o � assim?

N�o, n�o �. Era, quando o governo atual estava na oposi��o, como, ali�s, tudo mais em pol�tica. Naquela �poca, n�o havia denuncismo, n�o s� na imprensa quanto entre os oposicionistas, como o presidente mesmo (n�o canso de lembrar: que excelente candidato foi o nosso presidente!), que chamava uns e outros de ladr�o a torto e a direito e, sobre os deputados, cujo trabalho atualmente elogia, disse que n�o passavam de 300 picaretas, sem que ningu�m, o que podia ter sido feito, procurasse a Justi�a, para que ele provasse que pelo menos crime de inj�ria ou difama��o n�o havia cometido. Mas, como alieno culo piper refrigerium est continua princ�pio basilar da vida, agora campeia a den�ncia irrespons�vel e leviana, a que urge dar cobro.

Sim, repita-se a cantilena. A imprensa comete erros e excessos, como toda atividade humana. Para coibi-los, existem leis. Mas n�o foi o governo que deu ao cidad�o o direito de estrilar publicamente contra o que ele faz ou n�o faz. O direito a pensar e opinar � b�sico para a plenitude humana. O direito a expressar esse pensamento tamb�m n�o � uma benesse do governo, faz parte da dignidade e da liberdade de cada um de n�s. Agora, a pretexto de regulamentar uma atividade profissional bastante diferente, por exemplo, da de um m�dico ou advogado, o governo revive uma id�ia de odor mussol�nico e encaminha ao Congresso (ainda bem que n�o foi uma medida provis�ria, instrumento legislativo ditatorial hoje costumeiro e que o presidente, quando ainda n�o havia denuncismo, prometeu n�o usar e acabar e n�o s� n�o a acabou como a usa mais do que faz embaixadinhas) um projeto que cria o Conselho Federal de Jornalismo, para �orientar, disciplinar e fiscalizar� o exerc�cio do jornalismo. Tudo na melhor das inten��es, � claro. � s� com a trivial finalidade de regulamentar uma profiss�o como qualquer outra.

N�o �. � o come�o do arrolhamento da imprensa. E � um caminho para o peleguismo. J� existem, no projeto, os embri�es completos de um sistema de censura e tutela, que poder� calar a boca de qualquer jornalista, mesmo que n�o fa�a den�ncias, mas apenas cr�ticas consideradas, digamos, destrutivas ou de mau gosto, como � o meu caso e o de incont�veis outros � nunca se sabe a que limites chegar� o burocrata. Podemos esperar at� ouvir de novo que o povo brasileiro ainda n�o est� preparado para a democracia. Ou seja, eles nos deram o direito de falar, alguns de n�s talvez tenhamos abusado e eles v�o tirar esse direito, pronto.

V�o tirar uma conversa, n�o v�o tirar coisa nenhuma. O povo, assim ou assado, por esse canal ou por aquele, por um jornal mambembe ou jornal�o, numa r�dio fuleira ou em cadeia, na tev� do condom�nio ou em rede nacional, vai continuar a poder falar mal do governo e a dar curso ao que ouve e v� escancaradamente todo santo dia, em tudo quanto � canto para que olhe.

O governo n�o tem nenhum direito, quem tem direito � o cidad�o. N�o se cumpre, mas est� escrito e um dia se cumprir�: �Todo poder emana do povo e em seu nome ser� exercido.� Qualquer coisa que o governo faz s� tem legitimidade se alicer�ada na vontade popular. Dir�o que tal vontade � expressa pelos representantes eleitos. Est� certo, mas representantes eleitos que est�o a� porque sua exist�ncia institucional contou com uma imprensa capaz de avaliar, criticar e denunciar. Vamos ter responsabilidade com den�ncias, n�o vamos antecipar julgamentos, mas n�o vamos calar a boca, nem obedecer a manual de burocrata. Eu n�o vou calar a boca, ainda mais diante de um Estado que n�o s� toma essa iniciativa como preparou, quase � sorrelfa, um plano cultural solertemente dirigista e assustadoramente policialesco. Mas que n�o h� de prosperar. Porque, como mostrou a imprensa, nesse e em tantos outros casos, temos mente, boca e voz livres, e n�o foram um presente do Estado. O direito a elas � parte de nossa ess�ncia e nenhum conjunto de aspirantes a tiranetes o vai cassar.

Publicado no GLOBO em 15 de agosto de 2004

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06-jun-2008