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Perder, tem um significado excessivamente terreno, sem a dignidade que um momento de dor deveria ter, quando algu�m querido parte. Eu sei que a dor nos maltrata numa dimens�o muito forte e esta dor enorme percorre todo o nosso sentimento, nossas lembran�as, nossa saudade e nossos aspectos interiores se transformam em aspectos cinzentos, perdem totalmente a cor. � como se a dor trouxesse uma chuva negra para nossa saudade. Este sil�ncio que toma conta da nossa dor � solene, l�gubre e muitas vezes desesperador.
Eu cada vez mais, a cada amigo que "perco", sinto nitidamente que meu tempo est� indo junto com eles, que tudo o que foi vivido, saboreado e desfrutado, fez parte de um momento onde Deus nos aproximou e nos deu a grande presen�a de cada um deles, como presente a ser cultuado, admirado e regozijado para sempre. Como se fossemos um time de futebol organizado por m�os s�bias, para que disput�ssemos os grandes campeonatos da vida, jogando lado a lado, para vencer. Como o pr�prio Manfredo gostava de dizer: - "Pery, nunca esque�a, Papai do C�u n�o joga, mas, fiscaliza."
Perder � a primeira palavra e sensa��o que se tem, quando morre um amigo. Mas n�o deveria ser. O amigo � o seu, o meu, � o nosso tempo. O amigo � parte do que percorremos para ganhar mais vida. O amigo � o merecimento da trajet�ria, � o orgulho, � o pr�mio, � o grande trof�u. O amigo � aquele que aparece um dia na sua vida, vindo de n�o se sabe onde, vindo da vida como
voc�, e, pouco a pouco vai se tornando indispens�vel, necess�rio, �til, confidente, discordante, concordante, parceiro, c�mplice. � o nosso tempo se manifestando em outro ser humano. � o nosso tempo percorrendo caminhos e emo��es tendo ao lado outro cora��o para partilhar deste mesmo caminho. � o tempo dele, escolhendo
voc�, para receber o que de melhor voc� possa ser merecedor. O seu tempo! A sua amizade!
O meu amigo Manfredo se foi, e com ele as m�os maravilhosas de um m�sico excelente, de um pianista digno de ser comparado aos melhores do mundo, em qualquer �poca.
Manfredo Fest, um excelente pianista brasileiro, um digno representante da moderna e ainda inteligente m�sica do meu pa�s, faleceu,
h� poucos dias. Trabalhamos juntos, cantei muitos anos acompanhado por ele, juntos vivemos um momento de tormenta quando �ramos contratados pelo S�rgio Mendes. Estivemos juntos em todos os momentos que o nosso tempo permitiu. Era o auge da Bossa no Brasil, toc�vamos e cant�vamos o que o Brasil produzia de melhor, numa ess�ncia musical que tamb�m j� morreu hoje. Nos tornamos amigos, t�o amigos que aos poucos comecei a cuidar dos passos do Manfredo (ele era cego), embora ele fosse de uma
auto-sufici�ncia inacredit�vel. Nas viagens com o S�rgio por todo os Estados Unidos e Jap�o, era sempre eu a dividir o quarto com Manfredo, e, dessa �poca eu digo sem sombra de d�vida: foi um tempo em que eu mais aprendi na minha vida.
O Manfredo era de uma lucidez e intelig�ncia, n�o muito compat�veis com certos momentos e pessoas integrantes do nosso conv�vio. Era espirituoso, mordaz, cr�tico e o que era mais importante em meu aprendizado de vida: ele era de uma do�ura e vis�o como poucas vezes encontrei em outro ser humano. A minha vis�o de mundo n�o chegava aos p�s da vis�o do Manfredo. Mas eu aprendi a ver o mundo atrav�s da sua �tica. E aprendi que o mundo precisa de muito mais amor do que o que eu estava dando. Ele me ensinou a dar mais.
Meu amigo se foi. Sem dor, sem sofrimento. Sentiu um mal estar, entrou em coma... e n�o viu, n�o sentiu, n�o participou de nada que aconteceu consigo a partir da�. Eu n�o preciso nem agradecer a Deus o fato de n�o haver sofrimento em sua morte. Sei que Deus jamais daria sofrimento a uma alma ou a um corpo como o do Manfredo. Deus j� havia lhe tirado a sua vis�o durante a vida. Era a hora de dar uma compensa��o na hora da morte. E deu! Deu uma morte serena e celestial. Sem dor! S� a Lili, sua mulher, � quem viu ele morrer. Ele n�o viu nada.
Manfredo celebrou a vida com toda a grandiosidade espiritual que um ser possa ser merecedor. Totalmente em paz!
Definitivamente eu n�o perdi um amigo, a eternidade - que eu pe�o a Deus me receba tamb�m na minha hora - � que est� em festa, com um piano branco entre as nuvens e uma plat�ia dos maiores m�sicos que comp�em a eternidade, na espera do Manfredo chegar, mudar sua roupa, sentar no piano e tocar. Divinamente. Deus, no camarote principal, saber� que o talento que deu a um de seus filhos foi t�o grande, que o fez subir at� Ele no c�u, desprovido de qualquer ressentimento com a vida, sem rancores, nem m�goas.
Manfredo agora subiu ao c�u, est� sentado, a m�o direita guia a m�o esquerda. H� um sil�ncio maravilhoso a espera de que seus dedos �geis transformem o c�u em m�sica e tragam tudo o que de melhor e mais sens�vel se possa mostrar atrav�s da sua arte.
E eu, para n�o causar dist�rbio ao seu destino santo, vou rezar bem baixinho, somente para que Deus me ou�a, aben�oe muito o meu amigo, que o abrace muito como ele merece e como eu gostaria de o estar abra�ando. Afinal de contas, Deus, eu sou seu filho e feito � sua imagem e semelhan�a. Quando abra��-lo, Deus, por favor, ponha um pouco da minha imagem e semelhan�a neste �ltimo abra�o!
Que seja o come�o de tudo pra voc�, meu amigo!
12 / outubro / 99
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