A arte precisa de um banho de beleza

Arnaldo Jabor

Em outubro, fui a Veneza. Estava precisando mesmo de um pouco de arte, depois de dois anos sem sair, impregnado de todos os bodes do Brasil e do mundo, pois minha profiss�o atual � ser esponja das not�cias e dos fatos que elas escondem. Oito dias em Veneza foram um banho de purifica��o; na �gua das banheiras europ�ias boiavam esc�ndalos da Justi�a, bandidos do PCC, flutuavam balas perdidas, frases pomposas de ministros, mentiras de fisiol�gicos, ladr�es de casaca, afundavam detritos que acumulo na dura fun��o de comentarista. At� Sharon e Bush sumiam no redemoinho do ralo.

Mergulhei na espantosa beleza da cidade e nas obras da Renascen�a que atulham aquela antiga Rep�blica do com�rcio entre o Oriente e o Ocidente e bateu-me a verdade �bvia: a grande obra de arte s� floresce onde h� dinheiro. Sim, puros rom�nticos, nos pal�cios dos Doges, nas igrejas bizantina-crist�s, nos tetos, portais, afrescos, em tudo jorram as encomendas da vaidade dos poderosos ou dos sacerdotes de Deus, que empresavam as oficinas de artes�os, comandadas por g�nios como Tintoretto, Veronese, Ticiano. Fiquei dias dentro da Scuola Grande di San Rocco, na Academia, tudo.

Depois eu fui ver a casa de Peggy Guggenheim, onde est�o tesouros da arte moderna dos primeiros 40 anos do s�culo XX. E, em seguida, fui ver a arte contempor�nea na Bienal de Veneza. Assim, em oito dias eu vi a Renascen�a, Modernismo e �p�s-modernismo�, se esse nome cabe. Foi um show de contrastes que me deu uma certeza: h� qualquer coisa de podre na arte contempor�nea. Rosnem de �dio, netinhos de Duchamp, gritem �militantes imagin�rios�, uivem instaladores de nada, mas h� uma terr�vel aus�ncia, uma �hi�ncia�, como dizia Mallarm�, um grande vazio em museus e bienais. H� uma aus�ncia que danifica a obra de arte: a esperan�a. Isso mesmo: esperan�a. Mesmo nas obras de encomenda de duques e cardeais do s�culo XVI, feitas por empregados que podiam ir at� em cana se n�o satisfizessem os poderosos, havia um fervor religioso ou meramente fabril, havia um desejo de retratar uma mudan�a, uma f� na beleza, nos ventos novos que humanizavam a figura, que criavam a �perspectiva�, uma id�ia de tempo, de progresso, longe da platitude medieval. A genialidade de artistas como Tintoretto n�o buscava mais a representa��o est�tica de uma imobilidade submissa, mas a capta��o de um momento de agonia ou de triunfo, de �esperan�a�.

Fui tamb�m � Funda��o da Peggy Guggenheim, em sua casa � beira do Canal. L� est�o Picasso, Matisse, Kandinsky, Magritte, Pollock, tantos... E � tamb�m deslumbrante ver o entusiasmo da nova arte que se desenhava no in�cio do s�culo XX, a arte como a milit�ncia por uma beleza construtiva, o olho humano sendo enriquecido, na �esperan�a� de que a modernidade se aperfei�oasse, unida �s grandes utopias do s�culo XX, como o socialismo e at� mesmo o �fascismozinho� do futurismo italiano. Os artistas modernos queriam repensar o mundo nas suas formas, mesmo quando um conceito fosse deprimido, havia na forma e na atitude um desejo vis�vel de mudan�a para melhor.

Depois, fui ver a Bienal de Veneza. A sensa��o dominante � a de um vasto dep�sito de lixo ou de ru�nas ou de despejos da civiliza��o. Os pavilh�es de todos os pa�ses repetem os mesmos c�digos e repert�rios: terra arrasada, materiais brutos e sujos, desarmonia, assimetria, uma busca deliberada da fei�ra, uma recusa de qualquer poiesis , uma clara vergonha de ser �arte�, vergonha de provocar sentimentos de prazer. A frui��o po�tica � impedida, por ser �burguesa�, como se o prazer fosse uma coisa reacion�ria, �alienada�, ignorando o �mal do mundo�, que tem de ser esfregado na cara do espectador para que ele n�o esque�a o horror social e pol�tico que nos assola. O problema � que esse desejo de den�ncia n�o deixa um espa�o para algo que possa viver, renascer. � como se a pr�pria arte fosse uma babaquice a ser evitada, na linha direta da heran�a mal-entendida e descontextualizada de Duchamp, o estraga-prazeres dos anos 20.

S� que o mundo mudou muito. Depois do 11 de setembro, principalmente, ficou n�tido que o mundo � hoje muito pior que qualquer representa��o deprimida. A destrui��o que vemos na vida, o imp�rio da sordidez mercantil, a ignor�ncia no poder, o fanatismo do terror, a bo�alidade da ind�stria cultural, o beco-sem-sa�da do racismo e do fundamentalismo, a destrui��o ambiental, em suma, toda a tempestade de bosta que nos ronda, est� muito al�m de qualquer �den�ncia� art�stica; o mal � t�o profundo que denunci�-lo mecanicamente destruindo a pr�pria arte como uma �prova do crime� est� virando uma ociosa cumplicidade.

A Bienal de Veneza (furada, aqui e ali, por alguns talentos individuais, claro) virou um parque tem�tico de deprimidos, um hospital de paran�icos, um muro de lamenta��es in�teis. N�o adianta mais �chocar� ningu�m, pois nada � mais chocante que as chuvas de bombas, a mis�ria global e a estupidez universal do inferno de hoje. O absurdismo do p�s-guerra, nos anos 50, a arte pop, todo o desespero cr�tico ou par�dico tinham um claro alvo construtivo em sua milit�ncia. Havia esperan�a na ang�stia. Hoje, sobrou apenas a psicose como bandeira, a melancolia como �den�ncia� de uma vida sem solu��o. Nada que haja na Bienal nos choca mais que uma explos�o da discoteca onde morrem 300 jovens, nada � pior ou mais cr�tico do mundo que homens-bomba ou a �frica ou a lama das favelas e periferias. Nada. E, a�, vemos a verdade: a arte contempor�nea est� muito aqu�m da realidade. Que performance ou happening ser� mais contundente ou expressivo que a destrui��o de Nova York, do WTC? Que cad�ver exposto dentro de garrafas ou latinhas de merda ou cavalos mortos ou latas de lixo ou ru�nas s�o mais assustadoras que a eternidade da guerra Israel-�rabes ou do inferno do Iraque? Sobrou uma den�ncia tola (que ali�s absolve gentalha sem talento), muito aqu�m da complexidade do horror de hoje.

Nunca esque�o da frase de Stravinsky �A obra de arte deve ser exaltante �. N�o se trata de uma cegueira complacente com o erro, mas uma a��o exaltante da vida, da exist�ncia humana, exaltante de algo que est� se perdendo. Muitos artistas se acham �militantes�, mas est�o abrindo m�o da reflex�o na arte para o eixo do mal capitalista. Cr�ticos e curadores seguem de cabe�a baixa, sem coragem de denunciar oportunismos, por medo de serem chamados de caretas ou reacion�rios. Ser� que o �novo� n�o pode ser um �belo� que denuncie, com sua luz, sua esperan�a, a injusta vida?

Digo isso, porque, se o neg�cio for eventos de destrui��o e cr�tica do capitalismo, ningu�m � melhor artista que os homens-bomba e o Osama bin Laden.

Publicado no Jornal O GLOBO - 11 de novembro de 2003