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"Em todos os tempos,
para quem vem de avi�o ou navio, a chegada ao Rio costuma ser t�o
espetacular que provoca essas altera��es na percep��o. J� devia ser
assim no ver�o de 1502, quando uma esquadra portuguesa, comandada por
Gon�alo Coelho, adentrou pela primeira vez a ba�a de Guanabara. Seu
piloto-mor, o florentino Am�rico Vesp�cio, pensou que a ba�a fosse a
foz de um rio. E, como est�vamos em 1� de janeiro, chamou o lugar de
Rio de Janeiro - nome que todos adoramos e imediatamente simplificamos
para Rio. Mas os historiadores at� hoje se perguntam como Vesp�cio, um
piloto escolado nos sete mares, bamba em cosmografia, conseguiu confundir
uma ba�a com um rio. Bem, ele pode ter se sentido esmagado pelo cen�rio
da Guanabara, e, nesse caso, n�o teria sido o �nico - apenas o
primeiro. Mas h� tamb�m uma tese segundo a qual, em portugu�s arcaico,
"rio" seria apenas um outro nome para "ba�a". Donde,
se for o caso, Vesp�cio n�o errou. E, considerando-se seu curr�culo,
era bom n�o subestim�-lo em mat�ria de nomenclatura. Por exemplo:
Colombo pode ter descoberto a Am�rica - mas quem inventou a express�o
"Novo Mundo" e acabou por emprestar o nome ao rec�m-descoberto
continente? O audaz Am�rico Vesp�cio - o mesmo que batizou o Rio.
Se Vesp�cio voltasse hoje � cidade, quinhentos anos
depois, como seria? Em 1502, ao defrontar-se com o P�o de A��car, ele
vira na Guanabara algo muito parecido com a id�ia que os antigos faziam
do Para�so: um carnaval de montanhas, serras, ilhas, dunas, restingas,
manguezais, lagoas e florestas, tudo sob um c�u que n�o tinha fim. Uma
obra-prima da natureza, habitada por uma gente feliz, bronzeada e amoral:
homens e mulheres viviam cantando e dan�ando ao sol, todo mundo nu,
fornicando alegremente nas matas e areias, dormindo em redes ou em
rom�nticas choupanas de palha, e com uma abund�ncia de frutas,
p�ssaros e peixes ao alcance da m�o - ningu�m precisava plantar, s�
colher, e vida que segue. Uma vida t�o feliz e paradis�aca que deixava
muito mal a id�ia, ent�o corrente entre os jesu�tas, de que os
selvagens n�o tinham "alma".
Em 2002, Vesp�cio veria semelhan�as e diferen�as na
insuper�vel cole��o de cart�es-postais. A ba�a seria o mesmo
espet�culo, s� que agora, se estudada de perto, turvada por corpos
estranhos como garrafas pl�sticas, pneus velhos ou mil toneladas de
�leo vazadas no mar por um petroleiro. O recorte do litoral continuaria
um esc�ndalo, mas Vesp�cio, que o conhecera virgem, perceberia que
sofrera altera��es - aonde teriam ido parar as dezenas de mimosas
enseadas, ilhotas e prainhas? J� as grandes montanhas estariam firmes
como sentinelas, embora o verde tivesse diminu�do consideravelmente. A
temperatura tamb�m subira para valer, e ele ficaria louco para tirar
aquelas cal�as justas de veludo e o casac�o elisabetano. Mas nem toda
interven��o humana na paisagem seria condenada por Vesp�cio - ele
certamente adoraria o bondinho, preso por cabos, subindo e descendo o
P�o de A��car. E, para onde quer que olhasse, veria a explica��o
para tantas transforma��es: no lugar da aldeia de esparsas choupanas
surgira uma cidade, com pr�dios altos e brancos, povoada por 5.8
milh�es de habitantes, chamados de "cariocas" - quase todos
com alma.
Vesp�cio tamb�m reconheceria alguns h�bitos
antigos. Boa parte dos nativos ainda viveria praticamente nua pelas
praias. Em certa �poca do ano, n�o fariam outra coisa exceto cantar e
dan�ar ao som de tambores, s� que cobertos por estranhas fantasias e
parecendo obedecer a uma esp�cie de coreografia. E os casebres que agora
tomavam os morros pareceriam r�sticos e espont�neos como as choupanas
originais, com a diferen�a de que n�o seriam mais de palha, mas de
madeira e alvenaria. Se descesse do navio e desse um bordejo pelas ruas,
Vesp�cio ver-se-ia numa cidade antiga e moderna, acolhedora e impessoal,
recatada e permissiva, civilizada e b�rbara, com contradi��es que,
talvez mais que em outras metr�poles, o fariam sentir-se tanto no
Para�so quanto no Inferno. E, mesmo para ele, habituado aos mais ferozes
covis de bucaneiros, tremendamente excitante."
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