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Um dia, vinha eu calmamente andando pela Visconde de Piraj� quando, na
esquina da An�bal de Mendon�a, vi uma cabra em cima de um muro. Isso
foi h� muito tempo. Tanto, tanto, que a gente podia andar calmamente
pela Visconde de Piraj�. Ali, onde hoje h� um hotel, uma casa com
jardim e quintal vivia seus �ltimos dias. Voc�s a� nem eram nascidos.
N�s ach�vamos Brizola o pior governador de todos os tempos, sem saber o
que o destino nos reservava. Ainda assim, posso garantir que uma cabra em
cima do muro n�o era um acontecimento rotineiro em Ipanema.
Ela era branquinha e amistosa, e tentava alcan�ar as folhas de uma �rvore,
equilibrando-se no muro com a facilidade e a eleg�ncia da esp�cie.
Fiquei maravilhada com o espet�culo, e feliz em estar t�o bem
posicionada para assistir. N�o tinha d�vida de que, em breve, haveria
um aglomerado no local.
Pois sim! Durante todo o tempo da refei��o, que durou uns 20 minutos,
fui a �nica a achar que cabra em cima de muro, numa das esquinas mais
movimentadas de Ipanema, merecia aten��o. A multid�o ia e vinha como
sempre, carregando sacolas e acenando para �nibus e t�xis. Ningu�m
parou, ningu�m manifestou espanto, ningu�m sequer notou a cabra. Senti
uma vontade louca de parar as pessoas, de sacudi-las:
� Vejam, h� uma cabra em cima do muro! Em plena Visconde de Piraj�!
Uma cabra! De verdade!
Como sou t�mida, fiquei s� na vontade. Quando a bichinha acabou de
comer e sumiu por tr�s do muro, fui embora, encantada com o animal e
perplexa com os meus semelhantes, que n�o tinham percebido o ins�lito
da cena. At� hoje guardo a lembran�a dessa cabra carioca como uma das
coisas bonitas que me foi dado ver.
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Fotos
de Felipe S�ssekind |
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Pois domingo passado, caminhando pela Lagoa, encontrei finalmente a
capivara. Quando come�aram a falar nela, achei que era personagem de
mais uma lenda urbana, prima distante do monstro do Lago Ness. Logo, por�m,
fotos e testemunhos me fizeram mudar de id�ia. Passei a levar a m�quina
fotogr�fica nas caminhadas, de olho no manguezal.
Os dias se passaram e acabei deixando a capivara pra l�. E no domingo,
como j� era tarde, deixei pra l� tamb�m a c�mera. N�o deu outra! �
altura do Hospital da Lagoa, noite caindo, l� estava ela, gorda,
lustrosa, refocilando na lama em toda a sua gl�ria. Um rapaz que vinha
de bicicleta parou ao meu lado, igualmente encantado. Conversamos um
pouco.
� Deviam levar para o zool�gico. Aqui n�o vai durar nada, daqui a
pouco algu�m mata para comer.
Concordei, em princ�pio, embora tenha d�vidas em rela��o � id�ia do
zool�gico: animal solto � outra coisa. Enquanto isso, v�rias pessoas
passavam batidas pela capivara, exatamente como, tantos anos antes,
passavam pela cabra. Di�logo de duas mo�as:
� N�o � cachorro, n�o, deve ser aquele bicho que falaram, como � o
nome?
� Paca, n� n�o?
� �, uma coisa assim...
Quer dizer: nem sabendo que ali havia um bicho diferente pararam! O rapaz
da bicicleta e eu nos entreolhamos, diante de tal falta de interesse.
Depois nos despedimos, e desci devagarinho para a beira d'�gua, para ver
a capivara mais de perto. Ela n�o se incomodou com a minha presen�a.
Olhou para mim brevemente, e voltou � sua magn�fica imund�cie.
Rolava no ch�o contente, esfregando as costas. Parou um pouco, bebeu �gua,
comeu mato e voltou � lamban�a. � um bicho grande. Deve ter quase um
metro, uma cara muito engra�ada. Como todos n�s, gosta de se divertir:
dava botes nos martins-pescadores, que fugiam alarmados, aos gritos, a
cada movimento dela. Mas n�o tinham por que se preocupar, os bobos. As
capivaras, maiores roedores do mundo, s�o herb�voras.
Quando minha nova amiga � j� a considero assim � mergulhou para
nadar at� o outro lado da sa�da de esgoto, voltei para a cal�ada, onde
um segundo rapaz, tamb�m de bicicleta, estava parado observando.
� � a capivara, �?
Ele ouvia falar nela h� tempos, e nunca a havia encontrado.
� Maravilhoso ver a natureza assim!
Esse era dos meus! Animados, conversamos sobre a vida na Lagoa, sobre os
bigu�s e as gar�as e tudo o mais em volta.
� Coitada dessa capivara. Deve estar muito solit�ria. Deviam botar
outras a�. J� pensou, um monte de capivaras, como as cotias do Campo de
Santana?
Gostei da id�ia: uma col�nia de capivaras na Lagoa! H� provavelmente
mil contra-indica��es ecol�gicas, e at� morais e religiosas, mas que
seria formid�vel encontrar capivaras todos os dias, l� isso seria.
� Poderia virar uma grande atra��o tur�stica, imagine quantas
pessoas viriam para c� para ver as capivaras.
Ser� que viriam? Ser� que veriam?
Nisso, a capivara mergulhou e sumiu por um tempo. Quando a vi novamente,
ia l� na frente, pronta para chatear mais um grupo de p�ssaros. O rapaz
subiu na bicicleta e ficou olhando. Eu continuei a caminhada, e completei
a volta da Lagoa em 2h45m. De noite, ouvi no �Fant�stico� que um
corredor do Qu�nia chamado Paul Tergat fez a maratona em 2h04m55s. Esse
cara n�o olha capivara.
(O Globo, Segundo Caderno, 2.10.2003)
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